Tomás Chiaverini é escritor.
Como você começa o seu dia? Você tem uma rotina matinal?
Um pequeno balde de café com leite e duas torradas com manteiga. Depois gasto uma hora com as notícias, respondo e-mails e parto para o trabalho do dia.
Em que hora do dia você sente que trabalha melhor? Você tem algum ritual de preparação para a escrita?
Costumo começar lá pelas nove e esticar até o começo da noite, às vezes um pouco mais. Mas o horário não é determinante. A produtividade, para mim, tem mais a ver com uma vibração interna, com uma sintonia cerebral. Preciso de algum tempo para chegar a esse estado, e a quantidade de tempo de que preciso também varia. Há dias em que passo horas e horas com as engrenagens girando em falso. Em outros estou lá antes de abrir o editor de texto. Há alguns fatores que favorecem ou atrapalham essa sintonia – qualidade do sono, humor, outras preocupações, interrupções externas. Mas, ironicamente, o determinante é a história em si. Se as coisas estão fluindo bem, se os personagens estão convincentes, se eu releio o que acabei de escrever e acho foda, é fácil ir adiante. Mais do que isso, há uma necessidade quase fisiológica de ir adiante. A escrita se nutre da criatividade dela mesma.
Antes de começar, meu ritual é bastante simples: organizar o local de trabalho. Escrever é, basicamente, colocar ordem no caos. Na confusão interna de ideias e sensações, de vozes e referências. Por isso tenho muita dificuldade em trabalhar se o entorno não estiver organizado.
Depois, começo revisando a produção do dia anterior. Além do propósito óbvio de retomar o fio da meada, isso me ajuda a entrar naquela sintonia cerebral própria da escrita. Começa com uma vírgula, um corte, uma reformulação, e depois de algum tempo os neurônios estão no ponto. Aqui vale aquela regra: quando acho o trabalho do dia anterior bom, tenho muito mais facilidade de ir adiante.
Você escreve um pouco todos os dias ou em períodos concentrados? Você tem uma meta de escrita diária?
Meu romance mais recente, Correio do Fim do Mundo, foi escrito a conta-gotas, durante as manhãs, porque à tarde eu batia cartão na TV Cultura. Levei mais de dois anos para terminar a primeira versão, quatro até ficar satisfeito a ponto de enviar para editoras. Mas, quando posso, prefiro escrever em períodos longos de concentração, de preferência o dia todo, com um descanso semanal, até terminar o primeiro rascunho.
No começo do ano, passei seis meses trabalhando assim. Tive uma ideia para uma história e parei tudo para me dedicar a ela. Não li ficção, reduzi ao máximo a presença nas redes sociais e recusei trabalhos. Me impus uma meta diária, o que não é possível quando se está dividindo o tempo com outros trabalhos. Mil palavras por dia. Ou, em valores literários, metade da meta do Stephen King. “Ah, só metade?” Sim, metade, afinal, por Hemingway, o cara já escreveu mais de meia centena de livros. E mil palavras é muita palavra. Mas é possível. Principalmente porque quando se mergulha na história, aquilo passa a te acompanhar o tempo inteiro.
É como se uma parte do cérebro continuasse naquela sintonia literária. Estou lavando louças, tomando banho, bebendo com os amigos, com a minha namorada, brincando com meu filho, dormindo, mas a história continua correndo em paralelo, os personagens continuam comigo, num segundo plano. Então tudo passa a se relacionar com a escrita. E a literatura, afinal, é feita de vida, então tudo é matéria-prima.
Como é o seu processo de escrita? Uma vez que você compilou notas suficientes, é difícil começar? Como você se move da pesquisa para a escrita?
Muitos anos atrás, comprei uma caderneta Moleskine, na esperança de que escrever ali me deixaria mais inteligente. Não deixou. De vez em quando ainda anoto algumas ideias nele. Mas ultimamente anoto mais no celular. Em geral ideais brutas, uma frase, uma situação, um diálogo que ouvi e que pode me servir. Mas coisas específicas. E isso acontece mais quando já sei o que vou escrever ou quando estou escrevendo ficção.
A ideia geral, para as ficções, vem de repente. Bum! Esse vai ser o próximo livro. Aí passo um ou dois dias assombrado por caminhos possíveis e ideias mais pontuais. Elas vão se multiplicando obsessivamente até que sentar e escrever se torna a única opção possível.
A ficção que estou escrevendo agora, por exemplo, fala de uma relação a três – um homem e duas mulheres. Quando sentei para escrever, sabia o começo, o meio, o fim, sabia o tom que queria, sabia mais ou menos o tamanho, e sabia qual seria o tema real do livro, aquele que está além da história. Falaria sobre a dificuldade que o homem comum, da nossa classe média esclarecida, tem para se encaixar num mundo em que as mulheres estão cada vez mais no controle. Como exercer a masculinidade, como ser relevante, protagonista, num mundo em que os machos-alfa não fazem mais sentido?
Quando essa ideia apareceu, o material bruto já estava comigo (aliás, se ele não estivesse a ideia não teria aparecido). Um material que foi acumulado ao longo das minhas vivências, na observação do mundo, em leituras e reflexões que precisam ser constantes.
Depois, uma vez que o trabalho está em curso, surgem necessidades. Em determinado momento dessa nova história, por exemplo, resolvi que uma das personagens seria uma wika, uma bruxa moderna. Então tive de passar alguns dias lendo sobre essa estranha religião. Pesquisas como essa em geral são bastante penosas, porque há sempre aquela urgência para ir adiante com a história.
Como você lida com as travas da escrita, como a procrastinação, o medo de não corresponder às expectativas e a ansiedade de trabalhar em projetos longos?
Em geral, tenho mais ideias do que consigo realizar. Mas é comum que, nos períodos de escrita mais intensa, surjam nós na narrativa. Que em geral têm a ver em como ir de um lugar para o outro. Com a necessidade de resolver determinada situação e ir adiante sem apelar para a banalidade, para o lugar comum, para o clichê. Nessas horas, o que costuma funcionar para mim é o bom e velho oxigênio. Calço os tênis e dou longas corridas pelo bairro. Em geral, depois de quinze ou vinte minutos com as hemácias turbinadas de O2, com aquele problema ricocheteando de um lado pro outro na cachola, alguma solução aparece.
Quantas vezes você revisa seus textos antes de sentir que eles estão prontos? Você mostra seus trabalhos para outras pessoas antes de publicá-los?
Reviso muitas vezes. Tantas que não sei precisar. Mas diria que entre quinze e vinte. Em geral faço dois tipos de revisão. Uma que acontece numa leitura rápida e diz respeito a grandes alterações. Nesse caso, apenas tomo nota do que deve ser mudado. São, em geral, problemas de lógica, continuidade, coesão, ou de trechos que me soam preguiçosos. Isso é muito comum. Escrever por inércia, no automático, criando parágrafos e mais parágrafos que soam mornos, servem só para preencher espaço. E tudo o que eu não quero é preencher espaço. Quero que cada linha seja foda. Quero que a cada frase o leitor se sinta diante de algo único. Claro que isso não é possível, mas é um desejo, uma busca, e ela tem a ver com exterminar tudo que é automático, que é besta, mediano.
Além disso, faço outro tipo de revisão, minuciosa. Que consiste em ler um mesmo trecho várias vezes, em geral um parágrafo ou um pequeno bloco narrativo. Essa repetição faz o cérebro se desligar do sentido do que está sendo dito e da relação disso com o todo. Aí saltam os erros gramaticais, de pontuação, as palavras em excesso ou aplicadas de maneira displicente.
Além disso, deixo o texto parado por longos períodos. Pelo menos dois meses. Aí reviso de novo e os problemas saltam. Depois dou para minha namorada-superego ler, em seguida para alguns amigos. Reviso outra vez, deixo descansar mais algum tempo e volto a revisar e reescrever. Meu primeiro editor me dizia que um autor nunca termina um texto, ele abandona. É assim comigo. Cada vez que me derem a oportunidade de melhorar algo que escrevi eu vou aproveitar.
Como é sua relação com a tecnologia? Você escreve seus primeiros rascunhos à mão ou no computador?
Escrevo tudo no computador. Às vezes imagino como seria escrever à maquina ou, pior ainda, à pena. Como seria não ter o ctrl+x, ctrl+v. Imagino Tolstoi, escrevendo Guerra e Paz, mil e quinhentas páginas tendo de molhar a pena na tinta antes de grafar cada palavra. Imagino que talvez eu não fosse capaz de escrever. Que com a urgência que tenho para ver a história materializada, acabaria louco.
De onde vêm suas ideias? Há um conjunto de hábitos que você cultiva para se manter criativo?
Leio muito, procuro pensar o mundo de uma forma que não seja óbvia, procuro me cercar de pessoas interessantes, que me tragam algo, procuro viver com intensidade, não ceder à inercia do conforto.
O que você acha que mudou no seu processo de escrita ao longo dos anos? O que você diria a si mesmo se pudesse voltar à escrita de seus primeiros textos?
Meus textos são cada vez mais simples, em termos formais. Quando comecei a escrever, fui muito influenciado por nomes como Faulkner, Saramago e García Marques. Então gostava muito de experimentar técnicas narrativas inusitadas. Me preocupava em entregar as histórias numa embalagem inovadora, algo que talvez tivesse a ver com uma necessidade de testar – e exibir – o domínio do ofício. Hoje me preocupo em entregar a mensagem ao meu leitor da forma mais eficiente possível. Uma vez conheci um professor de literatura americano, numa viagem de trem pelo Marrocos (sim, é uma história real). E ele me falou que a literatura está além das palavras. Na hora percebi que ele tinha razão e a partir daí tenho trabalhando nessa busca pela simplicidade.
Que projeto você gostaria de fazer, mas ainda não começou? Que livro você gostaria de ler e ele ainda não existe?
Muitos. A maioria deles têm a ver com livros-reportagem – algo que é muito difícil de viabilizar no Brasil porque apuração jornalística de profundidade é um treco caro, que dificilmente se paga com direito autoral. Quanto à segunda parte da pergunta, não sei como responder, porque tenho certeza de que vou morrer sem conseguir ler todos os livros que gostaria, mesmo sabendo que eles já existem.