Tito Leite é escritor.

Como você começa o seu dia? Você tem uma rotina matinal?
No Mosteiro, todo o nosso horário é regido pelo sino. Eu acordo às 05h15, e, 5h35, vou ao coro rezar as laudes com os meus irmãos de hábito. “Senhor abri os meus lábios”, assim começa a nossa primeira oração do dia. Depois, participo da missa e faço minha lection divina, uma leitura orante da bíblia que consiste nestes três passos: leitura, oração, meditação e contemplação. Tenho uma rotina que começa no horário de despertar e termina à noite, depois das completas (última oração da noite).
Em que hora do dia você sente que trabalha melhor? Você tem algum ritual de preparação para a escrita?
Não há um horário do dia em que trabalho melhor ou pior. Não tenho nenhum ritual. Para fazer um poema, apenas fico à espreita de qualquer palavra ou gesto do cotidiano. Nas minhas atividades no Mosteiro, cada aceno serve de matéria para o poema. Nessa direção, percebo que um novo verso pode se fazer presente no cantochão de um salmo, nas flores de jambo (que formam um tapete quando caem e parecem ter cheiro de formiga), quando estou varrendo o claustro ou numa função que procuro executar como se estivesse cuidando de um vaso sagrado do altar. Acredito que o processo da minha escrita começa nesses momentos mencionados.
Você escreve um pouco todos os dias ou em períodos concentrados? Você tem uma meta de escrita diária?
Começo a escrever num pequeno intervalo que encontro entre às 06h15 e 6h30. Gosto de reler o que escrevi na noite anterior e burilar os poemas. No decorrer do dia, aproveito qualquer espaço de tempo para fazer um poema ou rascunho. Uma vez, estava cuidando do jardim e fiquei triste com um pássaro morto que encontrei entre a areia e as flores. A partir desse acontecimento, pensei num verso, depois saiu um poema. Não tenho meta de escrita, apenas procuro todos os dias manter uma relação de abertura com as palavras e as coisas.
Como é o seu processo de escrita? Uma vez que você compilou notas suficientes, é difícil começar? Como você se move da pesquisa para a escrita?
Como falei, fico à espreita de uma palavra ou uma imagem que abra um poema. Assim, procuro guardar um verso ou uma estrofe e começo a escrever. Acontece que, em alguns poemas, passo meses burilando. Não tenho pressa para terminar um poema. Se é difícil começar um poema? Para mim não é difícil, o desafio é deixar o poema como eu quero e não continuar no mais do mesmo. Sendo assim, procuro criar imagens e dar voz ao inusitado, muitas vezes, coloco no verso palavras que não fazem parte do mesmo campo semântico. Gosto bastante de trabalhar com imagens e tenho uma preocupação com a sonoridade, por isso, tenho o hábito de ler o poema em voz alta.
Como você lida com as travas da escrita, como a procrastinação, o medo de não corresponder às expectativas e a ansiedade de trabalhar em projetos longos?
Quando acontece a trava da escrita, que é normal, começo a revisar e burilar os poemas que estão no meu arquivo. Também aproveito para reler os autores que admiro, observando como eles resolveram suas questões. O Altazor, de Vicente Huidobro, é um dos livros que adoro reler. Além disso, procuro conhecer o que temos de melhor na nossa poesia, de modo especial, os poetas vivos. Acredito que a melhor maneira de aprender a fazer poesia é conhecendo os bons poetas. No projeto de um livro, não tenho ansiedade, conservo uma relação de mansidão, deixo que ele ganhe seu tempo de amadurecimento, mesmo quando implica num longo período de gaveta. Uma coisa é certa: a poesia não exige pressa. Além disso, eu tenho uma excelente amizade com a minha lixeira. Na medida que vou escrevendo os poemas, também já vou excluindo o que não me agrada.
Quantas vezes você revisa seus textos antes de sentir que eles estão prontos? Você mostra seus trabalhos para outras pessoas antes de publicá-los?
Eu faço e refaço várias vezes um poema, há aqueles que demoram meses para ficarem prontos. Alguns poemas ficam guardados, depois de um bom tempo retorno ao trabalho e deixo guardado novamente até ficarem como desejo. Sempre corto alguns versos porque gosto de um poema enxuto e sem excesso. Não sou de queimar cartucho e por isso vou lapidando os poemas até bater o martelo. Se mostro o meu trabalho para outras pessoas? Sim, mostro meus poemas a três poetas que conhecem minha poesia e sabem o que quero de um poema.
Como é sua relação com a tecnologia? Você escreve seus primeiros rascunhos à mão ou no computador?
Gosto bastante de refazer os poemas, por isso, nunca escrevo à mão, faço todo o trabalho no computador. Algumas vezes, quando estou fora da cela e surge uma ideia ou um verso, começo a escrever no celular. Para mim, o fundamental é ficar à espreitar, então, se estou lendo um artigo ou qualquer texto no computador, já deixo meu arquivo aberto para anotar o que chama atenção num artigo ou filme. Sempre acreditei que a melhor palavra é também a melhor imagem. Outra coisa interessante é ficar atento aos novos nomes que podemos descobrir através das revistas digitais, elas exercem um papel de grande importância para divulgação de uma boa literatura. Tenho a alegria de fazer parte como curador da revista Gueto.
De onde vêm suas ideias? Há um conjunto de hábitos que você cultiva para se manter criativo?
Gosto bastante de ler livros de filosofia e sobre crítica literária – há sempre uma questão que me provoca e salta em busca de um verso. Nunca passo um dia sem ler. Quando estou bastante ocupado e não consigo um tempo para abrir um livro, sinto que algo faltou e foi um dia incompleto. Além dos livros, procuro, por meio de jornais e outros meios, ficar atualizado das questões emergentes do mundo e acompanhar os novos autores e poetas que estão surgindo. Acho fundamental conhecer o que é produzido hoje pelos nossos contemporâneos. Mas como falei, às vezes, encontro um aceno para o poema quando estou varrendo o claustro ou até na salmodia dos salmos.
O que você acha que mudou no seu processo de escrita ao longo dos anos? O que você diria a si mesmo se pudesse voltar à escrita de seus primeiros textos?
Quando comecei a fazer poesia, minha influência era o poeta Manoel de Barros, Rimbaud e Baudelaire. Tendo como influência esses autores, comecei a escrever de forma mais imagética, de modo especial, com uma forte acentuação surrealista. Eu buscava em imagens inusitadas uma forma de falar sobre a fealdade do real. Hoje, tenho uma grande atenção com a sonoridade e um cuidado com o trabalho de linguagem. Além disso, procuro ser menos hermético e não me perder em poluições de imagens. O que eu diria a mim mesmo seria: tenha cuidado para não colocar o leitor num quarto fechado que não entra ar.
Que projeto você gostaria de fazer, mas ainda não começou? Que livro você gostaria de ler e ele ainda não existe?
Quando penso num projeto futuro, começo a estudar os trabalhos anteriores para saber onde acertei e errei, o intuito é não ser repetitivo. Sempre tive o desejo de escrever um livro de poemas inspirado na obra de Arthur Bispo do Rosário. Na obra de Bispo, enxergo vários devires de resistência e muito chama a minha atenção a luta desse artista contra o esquecimento. Sempre achei bastante subversivo o fato de que, mesmo dentro de um manicômio, onde ele e os outros eram tratados como lixo, esse homem teceu sua obra a partir do lixo da instituição, descontruindo a farda e toda a sua simbologia de força. Gostaria de ler um romance inspirado nas noites de Olinda, dos anos 70, acho que ainda não existe um romance sobre esse tema.