Tiago Alves Costa é escritor, ensaísta e tradutor, autor de “Žižek vai ao ginásio” (Através, 2019).
Como você começa o seu dia? Você tem uma rotina matinal?
Tento começar com algo fundamental que é a vontade, a curiosidade, o entusiasmo pelo novo. Uma boa leitura pode ser um bom exercício para esse início de algo que em nós lentamente nos anima e não sabemos bem o que é. O livro é fundamental para perscrutar esse estro. Ler é uma necessidade que existe muito antes da escrita. É uma rotina que imponho a mim mesmo.
Antes da pandemia começava o meu dia com uma longa caminhada, porque gosto de andar no meio das pessoas, nesse murmúrio da cidade e observar, colocar em marcha uma espécie de operação rumo ao improvável, uma sedução à distância e deixar-me enredar por esse estado labiríntico e perverso que a escrita precisa, essa solicitação violenta que não sabe o que quer e que tudo exige. Mas de repente tudo mudou nas nossas vidas e estou a tentar adaptar a escrita a este novo tempo.
Em que hora do dia você sente que trabalha melhor? Você tem algum ritual de preparação para a escrita?
A escrita é uma necessidade orgânica. Não tenho propriamente uma hora do dia para escrever. Para mim o início e o fim do dia são tempos essenciais para pensar, não significa necessariamente que vá escrever. É preciso sentar e perscrutar aquilo que o corpo quer ou não. É o corpo que manda. Mas é certo que me atraem muito esses inícios e esses fins, essa alva, e esse crepúsculo em que o mundo parece estar no seu estágio mais perfeito. Esse tempo fora do tempo que é fundamental para o escritor habitar-se. Posso, no entanto, escrever a qualquer altura. Ritual, se assim posso considerar, é ter um bloco de notas que levo para todo o lado. Aí é onde se desencadeia todo o mecanismo da minha escrita.
Você escreve um pouco todos os dias ou em períodos concentrados? Você tem uma meta de escrita diária?
Eu tento escrever todos os dias, mas normalmente não tenho um plano prévio, nem para um livro individualmente, nem para os livros no seu conjunto. Escrevo muito instintivamente, às vezes com quatro ou cinco notas, quatro ou cinco ideias, uma ou duas imagens, e a partir daí começo a escrever algo que, muito sinceramente, não sei catalogar em termos de género. A escrita não tem hora marcada. Escrevo muito para investigar e gosto de não saber o que vou fazer. Isso para mim é essencial, escrever sem saber o que vou fazer. Se tenho algum prazer na escrita será o da pura descoberta, ser surpreendido por esse território do espanto. Para mim uma fórmula não abre caminhos. A arte é uma constante des-regra.
Como é o seu processo de escrita? Uma vez que você compilou notas suficientes, é difícil começar? Como você se move da pesquisa para a escrita?
Bastante caótico. Quando estou obcecado por uma ideia, um texto, escrevo como se não houvesse tempo, sem me submeter a qualquer tipo de horário. Sei, quase de forma intuitiva, que o texto já está escrito e só precisa de se converter em idioma. A fase que me dá mais prazer é quando se entra nesse etat second, esse estado hipnótico que nos impele como uma força poderosa para a escrita. A pesquisa passa sempre por esse trabalho inicial, esse jogo sedutor sem qualquer tipo de finalidade, anotando aqui e ali para depois passar ao processo final. Reconheço que por vezes é difícil recomeçar no computador. Gosto muito desse processo primordial. A pesquisa no fundo está relacionada com a própria experiência, é um processo orgânico e vivo, uma escrita-vida, o meu bloco vai testemunhando como um sismógrafo as minhas sensações diárias com o mundo.
Como você lida com as travas da escrita, como a procrastinação, o medo de não corresponder às expectativas e a ansiedade de trabalhar em projetos longos?
É muito raro que me suceda o célebre pavor pela página em branco. Quando parto para esse suposto vazio da página já tenho alguma ideia ou nota prévia e não corro o risco de ficar a olhar a página. Mas as travas acontecem. Quando assim é, o melhor é deixar o texto respirar e voltar quando este pedir. Sinto muito prazer quando me encontro com um texto passado algum tempo, é nesse momento que sei se vale algo ou não, quando consigo ser o outro dos outros, no fundo ter esse pathos da distância sobre a criação. Confesso não ter medo de não corresponder às expectativas. Viver já é um exercício que nos exige muitos processos catárticos e de sobrevivência. Tento, dentro das suas dificuldades inerentes, desfrutar ao máximo da palavra.
Quantas vezes você revisa seus textos antes de sentir que eles estão prontos? Você mostra seus trabalhos para outras pessoas antes de publicá-los?
Tenho textos que estão prontos após um dia. Tenho outros que ando anos há volta deles porque algo me diz que ainda não é o momento. É algo muito intuitivo, instintivo. Tento sentir essa respiração natural das coisas. Ou é ou não é. E confesso que normalmente não mostro a ninguém os meus textos. Bom, tenho uma pessoa da minha confiança a quem por vezes mostro um ou outro texto, e tem normalmente um efeito muito curioso porque essa pessoa, e utilizando uma expressão muito portuguesa, torce-me quase sempre o nariz… no entanto, esse olhar distante e severo sobre o texto, faz com que de alguma forma ganhe uma nova perspectiva sobre aquilo que escrevo. Por outro lado, também aproveito as leituras em público para testar algumas ideias, são, sem dúvida, grandes caixas de ressonância. Mas a maior parte das vezes sou muito eu e o texto.
Como é sua relação com a tecnologia? Você escreve seus primeiros rascunhos à mão ou no computador?
A relação com a tecnologia é ambígua. Hoje com todo o fenómeno da internet e das redes sociais parece que estamos metidos numa espécie de realidade aumentada que faz com que o pensamento e a escrita se disperse, escreve-se muito menos e lê-se ainda menos, para não dizer que, parecendo que não, vive-se muito menos. A febre do imediato está a fazer com que avancemos sobre o tempo rapidamente; ao atomizarmos o tempo estamos a tentar que as sensações se sucedam cada mais depressa, há uma aceleração cada vez mais histérica dos acontecimentos que se estende a todos âmbitos da nossa vida. A escrita, ou qualquer forma de arte, precisa de uma certa lentidão. Eu tento manter um certo equilíbrio, o tempo para ler, o tempo para escrita e também o tempo para viver e me conectar. É fundamental para a minha sobrevivência, não só como escritor mas como habitante deste mundo.
De onde vêm suas ideias? Há um conjunto de hábitos que você cultiva para se manter criativo?
As ideias estão intimamente relacionadas com o ritmo dos acontecimentos que sucedem no meu quotidiano. Tento sempre esse jogo entre a abstracção e a concentração e estar sempre predisposto ao novo, esse fértil campo de sedução e jogo que só as crianças sentem. Posso considerar-me um distraído terrivelmente atento. A minha distracção é pura economia. Por outro lado estou sempre à procura do avesso das coisas, do sem-sentido, do absurdo. Busco o paradoxo neste mundo estranho, um mundo que parece cada vez mais programar as nossas percepções. Talvez assim abrir uma linha de fuga contra o vulgar, a avareza de espírito, o tecnicismo ou a ditadura da economia, quem sabe, o caminho da verdade, a verdade poética. Resvalar os olhos vagos pelo que já se viu e reviu e conseguir encontrar algo que nos faça acreditar que algo de diferente é possível.
O que você acha que mudou no seu processo de escrita ao longo dos anos? O que você diria a si mesmo se pudesse voltar à escrita de seus primeiros textos?
Penso que estou muito mais paciente, no entanto sinto a escrita cada vez mais livre, intensa e rebelde. Procuro uma ética na escrita. A mesma ética que procurava nos meus primeiros escritos, essa constante inquieta observação do mundo. Não sou capaz de me ler e muito menos os meus primeiros trabalhos. Sou um feroz crítico de mim mesmo. Sei que foi uma fase de grande importância no meu processo de escrita e no fundo um tempo de alguma inocência e algum deslumbramento pelo mundo literário. Depois o tempo vai passando, vai-se lendo mais e melhor e a ideia que o melhor desta humanidade já foi escrito começa a ganhar forma em nós. O mais curioso é que, apesar de sabermos disso, continuamos a escrever e aumentar o número de escritores no mundo. A tese da minha escrita talvez esteja intimamente relacionada com a minha vida, avanço na vida e a escrita avança com ela, todos os fenômenos, todos os afetos, sentidos, inquietações, são registados pela escrita.
Que projeto você gostaria de fazer, mas ainda não começou? Que livro você gostaria de ler e ele ainda não existe?
Estou com uma peça de teatro há já algum tempo, foi uma obra que tardei em começar mas que neste momento me entusiasma muito. Muito sinceramente penso que os livros que gostaria de ler já os li. No entanto, sei que me faltam outros tantos. Aliás, o mestre Almada Negreiros afirmava algo muito curioso sobre isto mesmo: “Entrei numa livraria. Pus-me a contar os livros que há para ler e os anos que terei de vida. Não chegam, não duro nem para metada da livraria. Deve haver certamente outras maneiras de se salvar uma pessoa, senão estou perdido”.