Thamires P. é escritora, estudante de Letras na UFRRJ.

Como você começa o seu dia? Você tem uma rotina matinal?
Acho que tenho uma rotina, sim. Antes da pandemia, todos os dias eu acordava às seis, tomava meu café, me arrumava e ia à faculdade; hoje, não tenho bem um horário fixo para acordar, mas, quando me levanto, tomo café enquanto assisto TV, depois escovo os dentes e parto para minhas tarefas. A escrita dificilmente faz parte desse processo. Não acordo muito disposta a pensar sobre poesia, não.
Em que hora do dia você sente que trabalha melhor? Você tem algum ritual de preparação para a escrita?
Acredito que o melhor horário seja a noite. Esse é o período em que as ideias surgem com mais facilidade e é quando me sinto mais pilhada a escrever. Durante o dia, tenho muitas coisas a fazer e é difícil encontrar um momento de tranquilidade para elaborar melhor minhas ideias.
Pensando nisso agora, não tenho exatamente um ritual para a escrita. É um processo muito espontâneo; quando vejo, já estou escrevendo.
Você escreve um pouco todos os dias ou em períodos concentrados? Você tem uma meta de escrita diária?
Na grande maioria das vezes, escrevo em períodos concentrados. Isso mudou um pouco após entrar para o Curso Livre de Preparação de Escritores (CLIPE) da Casa das Rosas, pois praticamente toda semana temos um exercício de escrita. Percebi que propostas de escrita com temas e delimitações me são muito mais fáceis de serem pensadas do que propostas 100% livres. Em alguns momentos, poder falar sobre o que eu quiser me deixa perdida e um pouco sem saber o que e como escrever, já que as possibilidades são infinitas, então eu simplesmente travo.
Normalmente não consigo manter uma meta de escrita diária, pois, além de ter essa questão com a liberdade da escrita, nem sempre tenho ideias. Sendo assim, acho que forçar a barra pode acabar me deixando estressada e frustrada por não conseguir pensar em nada, e não quero que minha relação com a escrita seja dessa forma. Acredito muito que, pelo menos no que diz respeito à escrita, as coisas têm que acontecer naturalmente. Para mim, uma arte forçada acaba não sendo sincera, então eu prefiro um único poema que seja real do que vários que não me digam nada. Por isso, às vezes fico meses sem escrever algo e tá tudo bem. Sem pressa, hahahah.
Como é o seu processo de escrita? Uma vez que você compilou notas suficientes, é difícil começar? Como você se move da pesquisa para a escrita?
As ideias podem surgir a partir de uma leitura, de um programa de TV, durante os afazeres do cotidiano, observando a paisagem, pensando sobre a vida etc. Qualquer coisa pode acender uma faísca, mas nem sempre parto direto para a escrita; muitas vezes deixo a ideia quieta na dela e não faço nada. Eu tenho uma memória bem falha, mas não costumo esquecer as ideias que surgem. Então, se eu sentir que dá, começo a fazer um rascunho e vou desenvolvendo até onde eu sentir que consigo. Depois, vem a “lapidação”: pesquisar sinônimos, cortar ou adicionar palavras, versos ou estrofes, talvez mudar a ordem de alguns trechos do poema, ler e reler em voz alta para perceber como está o ritmo e a sonoridade e, se necessário, fazer alguns ajustes a mais. A duração desse processo varia bastante: posso terminar em alguns dias ou levar mais de uma semana, mas dificilmente esse poema vai estar pronto em um dia. Além de não ter pressa, sou um tanto perfeccionista com minha escrita, então levo o tempo que for preciso em busca do poema “perfeito” dentro dos meus critérios.
Como você lida com as travas da escrita, como a procrastinação, o medo de não corresponder às expectativas e a ansiedade de trabalhar em projetos longos?
Como acredito que a escrita é algo que deve surgir da espontaneidade e da calma, não me incomodo muito com a procrastinação. Muitas vezes é melhor prolongar a finalização de um texto que ainda não te deixa satisfeito do que finalizá-lo na pressa e dar de cara com um resultado que não está de acordo com o que você esperava. Até pouco tempo atrás, eu tinha uma preocupação muito grande em escrever e publicar poemas o mais rápido possível, mas quando revisito esses escritos, não vejo a qualidade e o potencial que eles poderiam ter tido se tivessem sido elaborados com mais calma.
Em relação às travas, elas me incomodam um pouco, sim, pois, nesse caso, já não se trata exatamente de procrastinar, mas, sim, de não conseguir dar continuidade a um rascunho. É frustrante, pois estou ali super empolgada com a ideia e sua elaboração, mas não consigo pensar em mais nada a ser feito: não encontro as palavras que quero, não vejo um encaixe entre os versos ou estrofes… nada parece fazer sentido, então fico um tanto chateada. Quando isso acontece, deixo o poema de lado e volto a mexer nele novamente em outro momento ou simplesmente descarto se perceber que de fato não vai rolar, pois uma ideia nova sempre pode surgir e fluir com mais facilidade. Em relação ao medo de não corresponder às expectativas, eu até me preocupo um pouco, mas tento não focar muito nisso. Cumprir com as minhas próprias expectativas já é difícil… No fim das contas, não há como escrever algo que corresponda ao que os leitores esperam; cada um espera algo diferente.
No que diz respeito ao trabalho em projetos longos, nunca estive em um projeto individual, mas em 2020 participei do processo formativo desenvolvido pela Festa Literária das Periferias (FLUP), intitulado Uma Revolução Chamada Carolina, onde se buscou homenagear Carolina Maria de Jesus pelos 60 anos de publicação de seu livro chamado Quarto de Despejo. O resultado final foi a publicação, agora em 2021, de uma lindíssima antologia de contos intitulada Carolinas: a nova geração de escritoras negras brasileiras, onde podemos encontras os textos de 180 autoras negras muito talentosas. Durante o processo, me senti bem ansiosa, pois não tinha certeza se meu texto entraria para o livro. Eu nunca havia escrito um conto antes, então foi um processo super desafiador. Foi um trabalho de muita escrita, feedback de pessoas próximas, revisão e mais revisão até eu sentir que estava tudo do jeito que eu queria. Por fim, enviei meu conto, que foi selecionado, e só acreditei que era real quando fui contatada sobre o lançamento. Apesar da ansiedade, foi um processo de muita partilha e aprendizado. As expectativas foram muito bem atendidas e me senti muito feliz e orgulhosa por fazer parte deste projeto.
O mesmo ocorreu com a publicação, em julho de 2021, do livro Poetas Negras Brasileiras – Uma Antologia, organizado por Jarid Arraes e publicado pela Editora de Cultura. O processo começou em 2019, então estava muito ansiosa para ver o resultado final, e quando ele chegou, senti a mesma felicidade e orgulho que senti com Carolinas ao me ver junto com tantas poetas maravilhosas.
Sendo assim, participar de dois projetos que dão destaque à nossa escrita, que foi/é silenciada, tem um significado enorme para mim. Não há ansiedade que afete isso.
Quantas vezes você revisa seus textos antes de sentir que eles estão prontos? Você mostra seus trabalhos para outras pessoas antes de publicá-los?
Muitas vezes! Como meu processo é longo, cada olhada para o poema é uma revisão nova. Eventualmente chega um momento em que o texto é finalizado e eu o deixo temporariamente concluído. Digo temporariamente, pois, se eu publicar aquele poema em algum lugar e voltar a lê-lo depois de um tempo, é provável que eu encontre algo a ser alterado. Por isso, é importante saber a hora de parar e entender quando e o poema de fato corresponde ao que eu espero dele. O perfeccionismo e o olhar duro à minha própria criação podem acabar fazendo com que eu veja coisas onde não há, então busco ser justa comigo mesma e com minha escrita.
Até mostro meus trabalhos para outras pessoas, mas é bem de vez em quando. Sinto um certo desconforto em mostrar um trabalho inacabado para alguém. Meus rascunhos podem me parecer bobos ou sem sentido, então não sei se gosto da ideia de alguém vendo essa bagunça, mas esse sentimento já foi mais forte. Ainda tenho um pouco de dificuldade de compartilhar até mesmo os poemas finalizados, mas uma hora preciso vencer os medos e me permitir ser lida.
Como é sua relação com a tecnologia? Você escreve seus primeiros rascunhos à mão ou no computador?
Na grande maioria das vezes, escrevo no computador ou no celular. As ideias ficam todas em um bloco de notas ou no Word. Eu até tento fazer meus rascunhos à mão, mas não me dou bem com esse método. Meus pensamentos correm rápidos demais, e escrever no computador me permite acompanhar as ideias novas, as correções, as adições… se eu fosse elaborar os poemas em um caderno, o processo acabaria se tornando um caos, pois faço muitas mudanças ao longo de uma criação. Acho que um caderno não dá conta disso.
De onde vêm suas ideias? Há um conjunto de hábitos que você cultiva para se manter criativa?
Elas surgem no dia a dia mesmo. Como já havia comentado anteriormente, qualquer contexto pode ser favorável para que eu tenha uma ideia: uma observação, uma fala, algum programa de TV, uma notícia, uma música, uma leitura… E geralmente são as leituras que me mantêm criativa. Ler a produção de diferentes autorias me lembra que há diversos temas a serem abordados e diferentes maneiras de escrever.
Houve um período em que eu lia bastante Drummond, e fui levada pela forma mais “dura” e implacável com a qual ele escrevia; depois, comecei a me aproximar da literatura negra e não me afastei mais. Li Vozes guardadas, de Elisa Lucinda, e me senti abraçada pela sua escrita. Em uma seção do livro, ela fala sobre questões raciais e as violências que nos atravessam; em outra, ela fala sobre amor e erotismo; em mais outra, sobre a chuva e o jardim que ela tanto gosta, e isso me fez sentir muito representada, pois é assim que me aventuro pela escrita: passeando pelos temas e falando sobre meus sentimentos sempre que achar que devo.
Li Olhos d’água e Insubmissas lágrimas de mulheres de Conceição Evaristo, e conheci suas palavras-conceitos e as adotei para a escrita. Também me senti muito contemplada pela forma acalentadora e impactante com que a autora escreve. Sua escrevivência me conscientizou de que minha subjetividade também deve ser escrita e que posso e devo falar com as pessoas através de minhas palavras.
Ao ler os Poemas antológicos de Solano Trindade, que é um grandíssimo poeta e dramaturgo, conheci uma escrita de protesto, de luta e de amor que me marcou para sempre.
Sendo assim, através deles e de outras autorias, pude entender que o fazer literário nunca se esgota e que sempre há algo a ser dito; há infinitas formas de criar e renovar minha escrita. Além disso, enquanto escritora negra, me foi importante entender que tenho direito de escrever também sobre o amor, o prazer, o ódio, a tristeza e/ou a raiva sem que isso tenha relação direta com as opressões que me atravessam. Elas vão surgir na minha escrita porque é impossível não falar em luta quando ela é fundamental na realidade em que vivemos; muitas vezes seremos atacados de forma tão violenta que não haverá como pensar em palavras de amor e paixão, mas somos todos indivíduos com sentimentos diversos que precisam ser ditos. Enquanto, em seus poemas, Solano Trindade reivindica a união dos povos em combate aos opressores, ele afirma que o amar é uma constante dentro de si. Enquanto Elisa Lucinda denuncia o racismo em seus textos e falas, também escreve sobre o desejo, o amor e a admiração. Enquanto Conceição Evaristo expõe as violências que atravessam as vidas de meninas e mulheres, também retrata o amor, o desejo, a saudade, a conexão. Tudo isso me renova, me inspira e reaviva minha criatividade e desejo de falar/escrever.
O que você acha que mudou no seu processo de escrita ao longo dos anos? O que você diria a si mesma se pudesse voltar à escrita de seus primeiros textos?
Acredito que as maiores mudanças foram em relação ao tempo que levo para construir meus poemas e na forma como escolho abordar as temáticas dentro dos textos.
Como comentei anteriormente, eu não gostava de trabalhar o poema por muito tempo. Sempre que escrevia algo, eu tentava finalizá-lo no mesmo dia para já publicá-lo. Hoje, muito dificilmente terei um poema finalizado no mesmo dia em que comecei a construí-lo. Muitas ideias novas surgem com o passar do tempo; o rascunho pode virar algo completamente diferente e melhorado se deixo minhas ideias maturarem ao longo dos dias, se vou mexendo nele com calma e alterando uma palavra aqui, um verso ali… fazer tudo corrido transformaria minha escrita em uma demanda, e não gosto disso. Não me sentiria feliz de deixar que ela se transformasse numa obrigação.
Em relação à maneira como desenvolvo os temas, acho que simplesmente amadureci. Tinha dezoito anos quando comecei a escrever, e, entre os dezoito e os 21 anos, eu estava só conhecendo melhor a escrita e a literatura. Aos 21 anos, entrei para o curso de Letras, então comecei a me aproximar ainda mais da literatura. Conheci novos autores, diferentes escritas e formas de lidar com o fazer literário, e tudo isso influenciou no meu amadurecimento e na minha mudança de estilo. Naquele momento, minha escrita tinha uma certa delicadeza, um quê de cores e flores. Hoje isso ainda existe, mas não tanto quanto antes. Acredito que essa mudança tenha acontecido porque a vida adulta me trouxe novas perspectivas em relação a tudo, desde a forma como lido com as tarefas da rotina até minha posição política, então isso acaba refletindo na forma como escrevo. No fim das contas, acredito que o amadurecimento é o ponto comum dessas mudanças no escrever, e estou certa de que, com o passar do tempo, novas características farão parte de minha escrita, já que o amadurecer é eterno.
Se pudesse voltar no tempo, apenas me aconselharia a acreditar mais no meu potencial. O medo e a baixa autoestima me limitaram muito e me tomaram oportunidades, e gostaria de poder reparar isso.
Que projeto você gostaria de fazer, mas ainda não começou? Que livro você gostaria de ler e ele ainda não existe?
Nunca tive muito tempo para pensar sobre isso. Em se tratando de um projeto ligado estritamente à minha escrita, ainda não elaborei algo, mas adoraria publicar um livro com meus poemas. Tenho recebido um reconhecimento que jamais achei que receberia. Ter um livro publicado seria um acontecimento enorme! Espero que um dia possa acontecer.
É um pouco difícil pensar em um livro que eu queira e ainda não exista. Tá aí uma coisa na qual eu também nunca havia pensado antes, mas acredito que o que quero mesmo é que mais pessoas que não tenham o espaço merecido no mercado editorial possam publicar seus escritos e serem reconhecidas pelos seus trabalhos. Certamente há muitos escritores de muito talento que ainda não puderam ter o espaço que merecem; ver isso acontecer com maior frequência com certeza me possibilitaria conhecer narrativas maravilhosas.