Thaís Campolina é escritora.

Como você começa o seu dia? Você tem uma rotina matinal?
Eu gosto muito de dormir, então manter uma rotina matinal para mim é bem difícil. Sempre tenho planos de começar a fazer caminhadas pelo bairro bem cedinho, conquistar o hábito de tomar um café da manhã reforçado, reservar um horário pra escrever logo ao acordar, mas nada disso funciona por mais de um ou dois meses. Um dia que eu não faço é o suficiente para eu perder o hábito completamente. Acho que eu posso dizer que, no fim das contas, eu sempre começo meu dia tentando alguma coisa nova, mesmo quando eu acordo atrasada demais pra qualquer coisa. Espero que isso, de alguma maneira torta, me ajude a criar.
Em que hora do dia você sente que trabalha melhor? Você tem algum ritual de preparação para a escrita?
Sou vespertina. Prefiro escrever no final da tarde ou logo após o almoço, mas um pouco antes de meio-dia já me sinto ativa o suficiente para render bem. Depois das dez da manhã, minha mente engrena e consigo manter uma certa continuidade no ritmo até, no máximo, umas oito da noite. Com intervalos, claro. Não gosto muito de escrever durante a noite, porque me atrapalha a dormir. Fico muito agitada, com a cabeça cheia de ideias. Pode até fluir bem, ser divertido, mas no outro dia provavelmente estarei esgotada demais pra fazer qualquer coisa.
Meu ritual de preparação para escrita varia de projeto em projeto, mas, no geral, eu não gosto de criar empecilhos para começar não. Eu simplesmente abro o arquivo e vou. Basta vencer a procrastinação que eu me comprometo, ao menos temporariamente. Se não tenho ideias, mas estou com o bichinho da escrita doido dentro de mim, busco no meu bloco de notas alguma coisa. Vivo anotando frases, parágrafos inteiros, descrições de sonhos ou simplesmente conjuntos de palavras que me chamaram atenção e uso isso como gatilho de criação quando não há nada me provocando na hora. Às vezes busco o que produzi em aulas, oficinas ou atividades de coletivos de escritores para tentar desenvolver mais a ideia ou aproveitar aquilo para alguma outra coisa.
Adoro silêncio, mas no horário que gosto de escrever isso simplesmente não existe, então costumo usar fones de ouvido sem música para abafar um pouco barulhos externos mais estridentes.
Você escreve um pouco todos os dias ou em períodos concentrados? Você tem uma meta de escrita diária?
Estou com uma meta de escrita diária no momento, porque estou escrevendo meu primeiro romance. 320 palavras por dia é o que tenho buscado, sem muito sucesso, confesso. Tem vez que eu escrevo mais, vez que eu escrevo bem menos e vez que não escrevo coisa nenhuma. E isso nem me incomoda tanto assim, porque não vejo a criatividade como um processo estanque ou linear, criatividade é movimento, então é natural que essas variações aconteçam e respeitá-las, sem jamais desistir da meta geral, talvez seja a melhor forma de manter a continuidade do projeto.
Fora isso, acho que posso dizer que escrevo todo dia, mas essa escrita rotineira serve mais como um registro a ser consultado posteriormente do que como texto. Às vezes vou anotar uma ideia e vem o texto inteirinho quase pronto, mas, no geral, o que surge nessas horas é mais curto, com pouquíssimo fôlego, simplesmente um registro do que quero investigar no futuro.
Como é o seu processo de escrita? Uma vez que você compilou notas suficientes, é difícil começar? Como você se move da pesquisa para a escrita?
Eu simplesmente vou. A pesquisa que faço antes de escrever é mais intuitiva, vai acontecendo espontaneamente, vou captando o assunto sem anotar muita coisa, enquanto em segundo plano algo toma forma dentro de mim. Meu processo criativo é muito solto, interno, com pouquíssimas notas a serem consultadas por isso, mas muita elaboração por meio da fala. Vou contando pra todo mundo que conheço um pouco sobre esse novo mundo que tem chegado pra mim como se fosse causo, informação, memória ou até mesmo uma simples brincadeira lúdica. Assim descubro se aquilo me interessa mesmo ou não.
Poucas anotações acabam sendo uma vantagem e tanto para tomar coragem de começar a botar a mão na massa, mas cria necessidade de mais pausas durante a escrita. Como anoto pouco, lembro das coisas de maneira meio vaga e vivo precisando fazer um fast-checking do que restou da pesquisa na minha memória. Apesar dos desafios, gosto muito dessa mescla entre memória e pesquisa. Gosto de como uma coisa se infiltra na outra, trazendo à tona um mix único do meu eu com o mundo. Essa baguncinha me cai bem, me provoca, me interessa mais do que um fichamento, por exemplo. Acho que o “eu investigo qualquer coisa sem registro”(2020), meu livro de poemas que ficou em 2º lugar no Poesia InCrível, nasceu foi disso.
Como você lida com as travas da escrita, como a procrastinação, o medo de não corresponder às expectativas e a ansiedade de trabalhar em projetos longos?
Eu ia dizer que simplesmente não lido e deixo a autossabotagem tomar frente de tudo, mas a verdade é que eu tento me manter empolgada com o projeto de alguma forma. O meu segredo de continuidade é simplesmente alimentar esse entusiasmo ou resgatá-lo quando ele começa a sumir. Pra mim não basta disciplina, preciso desse brilho no olho vivo, senão simplesmente não vai sair nada. Nada bom, pelo menos.
Fora isso, eu tento sempre defender meus projetos de mim mesma quando eu ainda estou escrevendo. Eu desenvolvo mil argumentos a favor daquilo, mostrando para esse meu eu mais crítico e que odeia tentativas que aquilo ali faz sentido pra mim, pra nós. E, outra coisa, eu sempre tento escrever primeiro e editar depois. Nesse exercício de autoconvencimento, eu acabo entendendo que tudo que eu escrever pode ser melhorado, mas se eu não escrever não terei material nenhum para trabalhar depois.
Meu maior problema é ainda não ter desenvolvido técnica nenhuma para lidar com a sensação de insegurança que vem quando fico sabendo que estou sendo lida. Ser lida é tudo que eu quero, mas querer tanto isso não muda o fato de que isso continua sendo assustador demais mesmo após anos de exposição de textos em blogs e redes sociais. Nas redes, as coisas duram pouco tempo na prática. Uma semana depois de postado, quase ninguém mais vai chegar até aquele texto. Quando a gente fala de livro mesmo é diferente, até porque a gente nem tem mais como continuar se editando se surgir vontade/necessidade, né? Lancei o conto “Maria Eduarda não precisa de uma tábua ouija” em formato ebook na Amazon no final de 2020 tentando me acostumar com isso, mas foi só o conto fazer um ano e um mês que eu fui lá dar uma mexidinha sutil no arquivo, sabe?
Não presto.
Quantas vezes você revisa seus textos antes de sentir que eles estão prontos? Você mostra seus trabalhos para outras pessoas antes de publicá-los?
Se for para publicar na internet, como no meu site, newsletter e afins, reviso muito pouco. Tenho tentado revisar mais, inclusive, mas sou impulsiva. O desejo do clique, da curtida e da conexão me afastam do texto antes da hora, porque sei que posso me voltar pra ele depois. Se for pra publicar fora, reviso bem mais. Reviso por quase uma vida, acho.
Tenho meus leitores beta. Eles, inclusive, me ajudam muitas vezes a me manter disciplinada nos projetos e acompanham o processo desde a elaboração via fala. Geralmente são amigos literários que acabei levando pra todas as instâncias da vida.
Como é sua relação com a tecnologia? Você escreve seus primeiros rascunhos à mão ou no computador?
Escrevo sempre no computador. Às vezes no celular. Caderno uso mais pra me organizar mesmo, anotar ideias, essas coisas. Às vezes escrevo uma coisa ou outra à mão, especialmente se estamos falando de poesia, mas sou bem internauta e meu hábito principal é teclar. Troco muito com amigos literários a partir da internet, então nem sei o que seria da minha escrita sem esse retorno. Também tenho muito gatilho criativo navegando, vendo memes, acompanhando o Twitter, contemplando trabalhos visuais no Instagram. O problema do mundo online é que as ideias vêm em vendaval e vão embora do mesmo jeito, sendo o bloco de notas o meu fiel escudeiro contra esse tornado imprevisível. E, sim, muita coisa escapa dele, porque a cabeça é sempre mais rápida que a vontade de digitar e escudos foram feitos para outra serventia.
De onde vêm suas ideias? Há um conjunto de hábitos que você cultiva para se manter criativa?
Minha criatividade vem do impulso, da empolgação, da diversão, das conversas e da observação. Gosto muito de admirar imagens artísticas e fazer colagens com o que tiver em casa. Considero isso essencial para exercitar meu lado criativo, meu olhar para o mundo e meu poder de criação. Acho que sujar as mãos de cola e pedacinhos de revista ajuda a manter a mente viva. Gosto também de sair pra andar na rua sem destino, caminhar por aí buscando somente observar como as pessoas, animais e plantas interagem entre si e uns com os outros. E amo conversar. Eu nem sei me perceber no mundo sem papear com pessoas. Criar nem se fala.
Ler também é importante pra mim. Gosto da imersão do ato, do estímulo criativo presente, da sensação de que as palavras do livro estão se infiltrando na minha vida, me ajudando a elaborar coisas que eu nem vivi. E amo clubes de leitura. Essa troca com leitores é quase um vício meu. As melhores ideias surgem quando a conversa flui, qualquer leitura fica mais rica assim. Acho que a criatividade vem do movimento, então sempre estou buscando algo que desperte isso em mim e bons papos realmente mexem comigo. Foi desse jeito que acabei me tornando mediadora e organizadora do Clube Cidade Solitária e do Leia Mulheres Divinópolis.
Eu tenho a sensação que só escrevo, porque gosto muito de gente. Quero conhecer pessoas, papear, ouvir o que elas têm a dizer e depois sair contando tudo que descobri. É por isso que sempre me meto em oficinas, minicursos, encontros e coletivos. Foi assim que acabei me tornando parte das Zarafas, grupo de poetas que agora posso chamar também de amigas, e do Escreviventes. Trocar com outras pessoas é parte essencial do meu processo criativo. Criação para mim tem tudo a ver com gente.
Acho que também posso dizer que sou meio investigadora, fico de olho em tudo, procurando a estranheza das coisas, porque sei que tudo é capaz de despertar uma boa história ou mesmo um bom tweet. Gosto também de contemplar.
O que você acha que mudou no seu processo de escrita ao longo dos anos? O que você diria a si mesma se pudesse voltar à escrita de seus primeiros textos?
Eu aprendi a esperar o texto ficar pronto. Aprendi a revisar, a editar, a testar possibilidades, a trabalhar o texto além da ideia e da vontade iniciais. Mas, se eu pudesse voltar no tempo para falar comigo sobre isso, eu me deixaria cometer os mesmíssimos erros. Acho que essa impulsividade toda vinha da minha vontade de me expressar e podá-la poderia ter tido como resultado a minha desistência. Foi justamente essa impulsividade que me levou a trocar mais ideias sobre escrita, leitura e criação e assim entender melhor como se faz, como se explora, como se edita, se reescreve, como posso interagir a partir do texto sem forçar seu término.
Que projeto você gostaria de fazer, mas ainda não começou? Que livro você gostaria de ler e ele ainda não existe?
Sou viciada em pontapés iniciais, mas nunca deixo jogador disponível para receber essa bola lá na frente. Ou seja, essa pergunta me deixou desnorteada. Eu tenho uma dificuldade tremenda em finalizar projetos, porque estou sempre iniciando várias coisas ao mesmo tempo e elas vão se acumulando até perder o sentido ou simplesmente eu me esquecer que existem. Acho que posso dizer que provavelmente o projeto que eu gostaria de fazer e ainda não comecei já está iniciado em algum lugar do meu computador. Pensando nisso, me lembrei de alguns rascunhos iniciais e concluí que tenho muita vontade de escrever um romance de humor, por ver pouca coisa nessa pegada no mercado.
A angústia com pergunta anterior foi reforçada por essa pergunta do livro que eu gostaria de ler e que ainda não existe, porque eu sei que tudo o que eu quero conhecer provavelmente já existe em algum lugar, mas eu ainda não li e provavelmente não vou ler, porque existe um mundo inteiro de possibilidades de encontro e desencontro e os livros não estão isentos disso. E eu nem sei se eu quero pensar muito em como esse livro seria, porque estragaria a surpresa. Quero simplesmente tropeçar nessa leitura e ir descobrindo que ela era o que eu esperava quando eu nem sabia o que eu queria.