Tavinho Paes é poeta e editor independente desde 1973.
Como você começa o seu dia? Você tem uma rotina matinal?
depende muito do dia, porque ele pode começar de manhã ou não … mas, estando em casa ou viajando, tenho uma rotina há 10 anos de uma poção fitoterápica de 6 comprimidos simples.
Em relação ao exercício literário, minha disposição maior, embora, em muitas noites avançadas, as ideias estejam fervilhando, costuma ser pela manhã, que é quando me acostumei a selecionar as anotações feitas em vários caderninhos – o que não significa apenas coisas recentes, podendo rever caderninhos antigos – que eu chamo de “Unique Books” – e dar de cara com algo que aiunda não havia sido aproveitado convenientemente…
Em que hora do dia você sente que trabalha melhor? Você tem algum ritual de preparação para a escrita?
…não tem muito horário fixo (nem relógio de ponto), pois depende de situações que me afetam os sentidos, as emoções e a visão; mas, para escrever meus livretos (publicados ou não), o ritual é a escolha do “software”, que no meu caso é o inDesign (já foi o PageMarker), onde o poema ou o texto em prosa, acaba lidando espacialmente com os limites da página de cada um dos arquivos disponíveis para tal (vou criando arquivos de acordo com o tamanho das páginas), o que me dá um senso crítico de “espaço diagramado” que me proporciona uma noção do tempo de leitura e, no caso do poema-prosa (na verdade, apenas uma diagramação em versos de sentenças e frases), esclarece e auxilia o leitor na pontuação e na respiração das leituras, o que tem a ver com a formatação do pensamento lógico e do entendimento de um texto realizados num perímetro visível – prática que veio do meu trabalho em jornais, onde havia um limite de caracteres similar ao do “twitter”, no tempo em que não havia computadores e as colunas e a tipologia escolhidas eram impressas em tiras a serem coladas nos espaços de diagramação das páginas mestras que gerariam os fotolitos.
Você escreve um pouco todos os dias ou em períodos concentrados? Você tem uma meta de escrita diária?
…escrevo todo santo dia, a qualquer hora, sem meta ou objetivo prévio ou sob encomendas fiduciárias … ao longo de tempos imprecisos, coleciono textos diversos, variando do simples (apesar de complexo) aforisma filosófico ao poema propriamente desenhado graficamente como tal; escorrendo através da prosa estilística (conto, novela, diálogo teatral) à carta; e, na mais simples tarefa, da anotação sistemática de temas à frases incompletas, a serem finalizadas oportunamente, a partir de um núcleo significativo…
Como é o seu processo de escrita? Uma vez que você compilou notas suficientes, é difícil começar? Como você se move da pesquisa para a escrita?
… o processo é conscientemente
intuitivo, embora obedeça a uma série de critérios temáticos e absorva
sugestões que podem vir da leitura de artigos, reportagens, resenhas ou de
teses compartilhadas em alguns bons
sítios da internet. As anotações, base pragmática do processamento dos dados,
são processadas aleatoriamente e, posteriormente, distribuídas em conjuntos
(arquivos e sub-arquivos) a serem classificados ora em torno de índices formais
de movimentos literários (romântico, modernista, futurista, jornalístico,
político), ora em função do lugar que ocuparão na sequência de um livro sendo
editorado.
… na hora de formatar um livreto,
variando de 60 a 128 páginas, em tamanhos que vão do padrão 210x140mm ao
folhetim de bolso (120x100mm), sempre em torno das dobras de tamanho Legal ou
A4, aí entram outros sensores de assuntos e de modulação da escrita corrida. Há
muito tempo que desenvolvo um, digamos, estilo na composição final de um livro
de poemas … decerto que um livro de poemas, ao contrário as prosas de enredo
consecutivo (não incluir textos como o do “Jogo das Amarelinhas”, de
Julio Cortázar; “Marco Zero”, de Oswald de Andrade, entre outros),
pode ser lido numa ordem aleatória sem nenhum prejuízo exegético; o que eu
passei a fazer, desde 2008, foi introduzir um texto aparentemente consecutivo,
que, em si mesmo, não revela nada de extraordinário, embora permita desenvolver
ideias no interior de seus parágrafos, mas modula, flexibiliza e instrui uma
prosa consecutiva. Estes textos servem como “cimento” para poemas que
funcionam como “tijolos” em um muro, sem obrigação de justificar ou
interpretar o que esteve sendo escrito nesses “blocos prosaicos” e,
caso estes blocos sejam retirados do texto geral e desfaçam o muro, nenhum dos
poemas perde seu núcleo assertivo e, no caso inverso, a prosa não vê afetado
nem seu ritmo nem sua novela descritiva.
… os únicos e definitivos pontos destes “cimentos”, bem como a
ordenação dos tijolos em um livro paginado, é achar o “primeiro” e o
“último” da série consecutiva a ser traçado num espaço tridimensional
(o pensamento tem até mais dimensões, mas fiquemos com a geometria básica para
facilitar o raciocínio e não atrapalhar boas metáforas – com essa
“reta” é possível inserir “poemas-tijolos” e
“textos-cimento” que mudem a direção dos temas e possibilitam, a partir
de qualquer ponto, retomar o prumo da “estória” que o livro conta e,
muitas vezes, justifica e inspira o “título” do livro.
…atenção: para quem ficou estranhando acabar criando um incômoda metáfora que
uniu um “muro” a um “livro“, fica uma esclarecedora
orientação semântica, filtrada pela noção do tempo quântico, que indica que a
leitura de um livro é como pular um muro e, no caso deste estilo que tentei
analisar antes, e se tratando de um “livro de poesias”, esta
travessia é feita com a habilidade de cada um inventar seu fantasma e, independente
de portas ou janelas, atravessar paredes!
…mais um tiro no escuro: ” …um livro é um muro construído de cima para baixo, sempre olhando para o céu e com os pés no chão.”
Como você lida com as travas da escrita, como a procrastinação, o medo de não corresponder às expectativas e a ansiedade de trabalhar em projetos longos?
…lido como qualquer pessoa que usa
agenda. Minha concentração no tempo quântico de “formatação de um
livro” (no meu caso, inclui a diagramação e as dedicadas ilustrações – sempre gostei de gibis) tem preocupação
fixada a cada ponto da timeline em que as peças literárias independentes ou
não, estão sendo pontualmente trabalhadas.
… tenho sempre em vista o “paradoxo dos pontos cardeais”: se você
tenta dar coerência e observa o “passado”, há grande chance de
provocar melancolia em seu desempenho: se você projeta resultados em metas
fixas, gera ansiedade em cruzar o caminho – o paradoxo, segundo Wittgenstein:
“nem tão ao norte nem tão ao sul, invariavelmente, o sol nascerá no leste
e há de se pôr à oeste” (imagem perfeita para perceber que, em coima do
muro ou você divide os lados em duas categorias ou preocupa-se em saber onde o
muro começa e até onde ira terminar – o que fazia o Muro da Guerra Fria (em
Berlim), os cercados de arame farpado militar das fronteiras de Gaza, o que
fará o futuro paredão Trump entre México-USA, paredes nas quais só se podem
instalar portas e janelas, enquanto, abrir ou fechá-las, depende de consenso
coletivo ou de ordens superiores, que, em tempos atuais, podem vir até de Deus,
na orelha de um Profeta ou da interpretação de um líder de textos
fundamentalistas, como, além dos livros sagrados, a Constituição, por exemplo).
Quantas vezes você revisa seus textos antes de sentir que eles estão prontos? Você mostra seus trabalhos para outras pessoas antes de publicá-los?
… revisão? Inúmeras (é comigo mesmo e, de tempos pra cá, é quase uma prática diária – talvez, um vício) … e no caso dos livros, a ordem, a exclusão, incçusão e readaptação dos conteúdos não acaba nem depois que foi publicado … não é raro vir a me pegar relendo um desses muitos livretos e ir no programa base de onde foi tirado seu “molde para gráfica”, e reconstituindo o “muro”, ora aumentando ou diminuindo seu tamanho; ora empurrando-o ou inclinando sua posição no tempo-espaço.
…não reviso … ás vezes, conserto (a gramática é certo que sim), às vezes, atualizo e, algumas vezes, refirmo, retifico e reescrevo tudo … tenho para mim (digamos, um norte estético bastante contundente) que, um livro, mesmo pronto, nunca acaba de ser escrito … cada vez que é lido, mudo muda … o livro fala no silêncio e é exatamente isso faz com que ele entenda o tempo melhor do ue quem está perdendo ou ganhando tempo enquanto o lê … na dimensão das cordas, um simples suspiro de um leitor numa cadeira de balanço no Nordeste brasileiro pode acordar um vulcão submerso no Índico (exagero à parte, a metáfora saiu nos trinue … a imagem que produzi, pelo menos para mim, é um brinco)…
Como é sua relação com a tecnologia? Você escreve seus primeiros rascunhos à mão ou no computador?
olho a tecnologia como o homem da caverna olhou a roda … é uma mão na roda, embora meu juízo crítico exceda essa utilidade … no mundo do algoritimo, onde o ser e o Nada são existencialistas, há de surgir uma inteligência criativa de um Deus revolucionário, cujos milagres nem sequer serão pressentidos … todos sabemos que a revolução ideológica já é, por si só, apenas uma delicada ferramenta para pregar um quadro numa parede – o que significa ser uma facilidade técnica, mas que não garante o que está pintado no tal quadro nem funciona como uma placa de aviso para emergências – resumindo e citando um poema da literatura de mão-em-mão dos poetas anos 80 (acho que seria uam das tiradas do “mitológico Kostra K) – há de vir o novo deus / para o qual se paga a promessa / antes do milagre … atenção: ele nunca tem troco).
De onde vêm suas ideias? Há um conjunto de hábitos que você cultiva para se manter criativo?
…nem o psicanalista me tirou dessa cilada: mas eu fiquei com a impressão reicheana de que minhas ideias funcionam como uma mãe para mim – o pai, quando ressuscita e pega meu Édipo pelo calcanhar de Aquiles dele, faz com que algumas dessas ideias sejam esquecidas e arquivadas e outras desenvolvidas ou reprogramadas … e aí, mamã” vem com sua valsa materna e embaralha tudo de novo … rs
…meus hábitos criativos podem ser mecânicos (anotações físicas) ou ritinas compulsória programadas para viver situações intempestivas, incontroláveis, volúveis ou, como é mais comum, inusitadas … já experimentei até provocar em mim uma “Paixão rigorosamente Inventada do nada” (tem até um livro de uma trilogia com este nome e faz parte do processo maior de onde é só um”tijolo” flutuando no ar) … este, talvez, seja o mais importante dos trabalhos que fiz e suas possibilidades ainda estão para ser surpreendidas … depois de “compulsoriamente” inventar uma paixão real (a musa é real) o trajeto do processo arquitetou paradoxos tão peculiares que o conjunto deles é uma verdadeira charada com um desafio íntimo de grandes proporções filosóficas: “provar que, mesmo platonicamente ou revirado pelo materialismo histórico, A PAIXÃO É UMA OBRA DE ARTE” … só esse alvo móvel e (apenas) espiritualmente accessível, já é o leit motif para um poeta arquitetar sua aventura de reconhecer o desconhecido onde o que ele conhece não o atende como um servo e o que o ataca não testa sua capacidade de ser um guerreiro …
… meus hábitos são inexoravelmente éticos e produzem uma estética – evito fazer o contrário, pois, agindo assim, seria melhor inventar o NOME para um partido político, ser um candidato dele que fala uma língua local e concorrer eleições públicas, condensado em um NÚMERO, matematicamente universal … a ética dos meus hábitos tem disciplina suficiente para mudar rotinas ou executar missões simples e práticas … meus hábitos não fazem o monge, mas evitam que ele esteja nu quando o inverno torna-se rigoroso.
… metodologicamente, os hábitos frequentes que identifico são: [1] observação pragmática, avaliação crítica e seleção afetiva (em inglês tem um verbo “to fix” que não significa exatamente, “fixar”); [2] interpretação mística, contemplação anarquista e mediação quântica (do latim: Carpe Diem); e, [3] polinização de núcleos semânticos; acompanhamento das fases de preparação do terreno para semear sementes híbridas, irrigação e coleta do cultivo e controle de pulsões obsessivas (agora, a máxima é minha, mas a devo a Spinoza; “você só faz o que pode se puder fazer o que quer; você só faz o que quer se fizer o que pode ser bem feito).
O que você acha que mudou no seu processo de escrita ao longo dos anos? O que você diria a si mesmo se pudesse voltar à escrita de seus primeiros textos?
…olho meu passado como alguém que olha
num telescópio e que, por acidente, fatalidade ou sorte, pode ser surpreendido
por uma explosão de uma Super-Nova …
fiz coisas demais sem ser demasiado, embora reconheça em cada uma delas, um
processo, um histórico cronométrico e uma dimensão de tempo onde o que foi
criado é alimentado por saudades existenciais profundas … já pretendi e fui
entrevistado a respeito destes “fosseis vivos” e, embora nunca tenham
sido integralmente decodificados.
… informo, a quem interessar possa,
que tenho pronta (desde a Bienal paulista de 1996) para instalação imediata de
uma exposição destes livros (são 14 telas pequenas), com suas páginas
aprisionadas em quadros que revelam apenas suas capas e promovem uma
curiosidade instantânea sobre seus conteúdos … são quadros que não cabem
exatamente numa galeria de mercado, posto que não estão à venda … a possível
Obra de Arte que eles podem representar, enquanto mercadoria ou peça de museu,
exige e sugere que aqueles quadros sejam como um saguão onde se aguarda uma
palestra…
… como não há fisicamente como voltar no tempo, sem que o tempo avance, cada vez que olho meus rastros e suponho-me ser capaz de vê-los caminhando atrás de mim, digo para mim mesmo: “…por mais que você avance, você só vai chegar onde nunca esteve antes e de onde nunca mais há de voltar…”
…mesmo que ninguém se interesse e poucos possam ter acesso às minhas pedras de linguagem cuneiforme, tão antigas quanto às esfinges, ainda acredito que deixarei “algorítimos” em nuvens de acesso livre para inteligências emocionais movidas pela curiosidade e pela imaginação … Gilles Deleuze, mesmo não sendo meu leitor, creio que teria grande interesse em participar desse estranho safari … valho-me de uns versos, para condensar minha peripatética jornada por este interrogatório suave (se comparado ao de Josef K, de Kafka, em O Processo): “…aonde fui e de onde voltei / trago novidades que me levarão / a ser quem eu sou / independente de que eu saiba quem? / depois que elas forem reveladas / continuarei a ser / ou serei … ” (2008).
Que projeto você gostaria de fazer, mas ainda não começou? Que livro você gostaria de ler e ele ainda não existe?
sem pestanejar: UMA PAIXÃO INVENTADA – A Paixão é uma Obra de Arte … são mais de 12 agendas de bolso com anotações – um verdadeiro diálogo de bordo e um trabalhão para organizar seus prótons nucleares … posso fazê-lo sozinho, mas minha intenção sempre foi tornar este “trabalho” interativo … pensei em dois psicólogos /psicanalistas, de duas linhagens distintas, para avaliarem a “fixação neurótica”, a “obsessão psicótica” e os prováveis “atos falhos esquizofrênicos” … toda a construção dos livros possíveis a partir destes arquivos manuscritos, demandaria debates e trocas de opinião entre pessoas que nunca me viram mais gordo e outras me conhecem de perto (algumas, testemunhas do processo – do qual não creio ser elegante nem sequer ético, incluir a musa) … agregue-se ao grupo um conselho para deliberar na escolhas dos textos e nas interpretações deles.
… enfim, sem me agarrar à caridade da modéstia nem abusar da soberba do orgulho, acho que este tesouro (continua preso dentro de uma mochila que o zíper do “fecho-éclair”, emperrou e se mantém lá, lacrando o malote guardado no armário, desde 2014) pode vir a ser algo como os 7 volumes (mais os apócrifos) do clássico “La Recherche du Temps Perdu”, de Marcel Proust … embora, dentro do meu raciocínio combinatório, indo além da Aritmética e chegado na Álgebra Linear, muitos e muito livros diferentes podem ser montados e publicados, sem que nem a reprise de alguns textos, dada a maneira em que esses “textos tijolos” forem reagrupados, prejudique a leitura linear de nenhum deles e as muitas interpretações continuem a ser exploradas … não chamo de minha Obra-Prima, mas de minha Obra Quântica … eu acredito mesmo que seja o meu big-bang!
…quanto aos livros que gostaria de ler e ainda não li, destaco alguns volumes de Clarice Lispector e Vineland, de Thomas Pinchon; e, quanto aos que ainda não existem (a tradução) aponto o recente “Le législateur et le poète, une interprétation des Lois de Platon”, tese da filósofa Letitia Mouze, de 2005 e a coleção dos novos poetas portugueses da Comuna de Almada…