Tatiana Cruz é poeta, jornalista e artista visual, autora de Na minha casa há um leão (Zouk, 2021).

Como você começa o seu dia? Você tem uma rotina matinal?
Estava pensando justamente sobre isso agora, enquanto tomava café e lia, na mesa da sala, em silêncio. Tenho duas filhas e pouca solitude – dois polos de energia distintos e que amo com devoção. Portanto, é muito difícil ficar só e em silêncio. Até responder esta pergunta, achava eu que não tinha nenhuma rotina de manhã porque é tudo muito corrido aqui em casa. Mas me dei conta de que, com o passar dos anos, acabei sim criando uma rotina matinal: o silêncio. Eu acordo antes da casa para poder ler e tomar café preto. Ler pela manhã é um jeito de abrir as cortinas do dia dentro da ficção: cada dia é uma ficção de resistência mesmo. Pés no chão, café quente e o livro. Engraçado: até a casa se encher de sons de novo, eu posso viver na pele de outras pessoas, admirar-me com a genialidade dos autores em suas descrições, estupendas imaginações e, por mais que eu me empolgue para escrever, vem a sensação de que não alcanço. E esse não alcançar como processo criativo não me intimida. Ao contrário, eu me acomodo por assim dizer no rastro ficcional de quem admiro e me estímulo a criar poesia. A minha poesia é um rastro de tudo o que leio e absorvo, uma sensação linda de erguer os olhos da leitura de um livro e enxergar diferente a minha manhã, meu dia, a minha vida.
Em que hora do dia você sente que trabalha melhor? Você tem algum ritual de preparação para a escrita?
Vou responder começando pela última pergunta. Eu não tenho ritual de preparação nenhum. Nenhum processo. É tudo um caos. Eu gosto de ler em silêncio ou ouvindo música instrumental. Mas escrever é uma necessidade vinda das vísceras, me engolfa, me toma, em qualquer hora. Em qualquer hora mesmo. Eu já fiz poemas cozinhando. Já fiz poema correndo na rua. A poesia vai me assaltando nas horas pequenas. É tudo misturado e caótico. E acontece frequentemente de eu dizer para alguma das filhas que guardem o que quer que queiram me dizer porque preciso terminar um poema. Elas até já sabem, fazem um hump, saem e devem ficar falando lá com seus cotovelos, lá tá a mãe escrevendo. Logo mais elas vão ler o escrito recém parido no Instagram, dar like, fazer algum comentário. É nesse caos mesmo que os poemas surgem. E acho que não é à toa que o meu primeiro livro de poemas se chama “Na minha casa há um leão”, que o espaço doméstico tenha sido cenário para o nascimento do livro. Os poemas lá estão distribuídos em cômodos de uma casa onde um eu lírico passeia, assaltado pela não-função das coisas. Uma chaleira que chia faz todo um lar, e a panela de pressão guarda uma revolta, e descascar os pães de filha banguelas me devolvem o cheiro do sexo da noite passada. Coisas assim. Talvez, se escrevesse com mais ritual, mais preparo, mais processo, eu descobrisse a prosa disciplinada. Mas ainda não consegui. Quem dera um dia. Por enquanto, é tudo bagunça ainda.
Você escreve um pouco todos os dias ou em períodos concentrados? Você tem uma meta de escrita diária?
Não tenho meta de escrita. Minha profissão, meu ganha-pão, é escrever para a publicidade. Texto operário. Escrita encomendada. Portanto, a literatura, por ora, está em um lugar sem cabimento, sem tempo, sem regra, sem regulamento. Anda solta. Rebelde. É quase uma vingança, total atrevimento meu. Querer ser escritora. Querer escrever o que me passa. Sem que me peçam. Ninguém pediu pela poesia. E é por isso que, pra mim, ela é tão cara. Por isso que ela me cura, faz bem pra minha alma. Portanto, voltando à pergunta, posso dizer que não há concentração nessa criação. E, mesmo que esteja trabalhando, na rotina pesada do dia de redatora, mesmo assim, às vezes, eu escrevo poemas. Eu paro tudo, sento no quintal, boto o pé no chão e escrevo um poema, se ele pede pra vir. Talvez, claro, talvez, estar com tempo livre ajude a criar. Por certo que sim. Fins de semana, eu cuidando das plantas, tendo silêncio, passarinhos, tempo de sobra pra ler, beber um vinho, fazer chá, ouvir música. Tudo isso sim ajuda. Mas não acontece fácil. E a poesia sim, ela meio que não espera.
Como é o seu processo de escrita? Uma vez que você compilou notas suficientes, é difícil começar? Como você se move da pesquisa para a escrita?
Eu acho que esse processo de escrita, pensando em prosa, é muito muito muito difícil pra mim. Talvez nem exista. Mas existe e é tipo um prédio caindo sobre mim. Eu tenho dezenas de pequenos pedaços de romances. Alguns inícios que eu amo e abandono no caminho. Meu drive é uma colcha de retalhos. Começar um romance eu acho que é a parte mais fácil. Difícil é prosseguir. Eu ainda tô morando dentro de um eu lírico impulsivo, um cabeçudo abrindo picadas e voltando para algum lugar de medo, sem prosseguir. De toda forma, na poesia, tenho pesquisado muito. Para o livro que lancei, pesquisei sobre arquitetura. Para o próximo, tenho pesquisado a anatomia humana, nos pássaros e dos peixes. A pesquisa é um grande prazer na poesia e abre as portas dos textos.
Como você lida com as travas da escrita, como a procrastinação, o medo de não corresponder às expectativas e a ansiedade de trabalhar em projetos longos?
Puxa. Pergunta difícil. Periga me desnudar mais do que posso. O que eu digo pra mim quando me sinto uma fraude, que não é pra mim, é de que é preciso saber esperar. Eu me acalmo dizendo que talvez eu não esteja mesmo pronta. Mas já li escritores falando que é disciplina e trabalho pesado. Se fechar em um escritório, baixar a cabeça e fazer. Eu não estou preparada para esse trabalho árduo ou digo isso pra mim mesma quando me bloqueio. Viu? Eu disse que é difícil falar sobre isso. Me desnuda demais. Tema de terapia. Mas estou sendo absolutamente sincera. Admiro demais quem consegue. Eu quero também me organizar melhor para projetos longos.
Quantas vezes você revisa seus textos antes de sentir que eles estão prontos? Você mostra seus trabalhos para outras pessoas antes de publicá-los?
Eu reviso lendo em voz alta. Desde que comecei a pesquisa poesia falada feita por mulher para a minha Especialização em Literatura Brasileira, passei a prestar mais atenção na sonoridade dos meus poemas. Dos textos em geral, pra ser sincera. Portanto, sempre revisarei lendo em voz alta para ver se funcionam em silêncio de poltrona ou em voz aberta. E nesta revisão acabo pegando vários erros. Gramaticais, frases confusas, coisas que não fazem sentido. Reviso também na leitura silenciosa. Quando não estou muito segura, mando para amigos. A Carol, minha comadre, já está acostumada a receber no WhatsApp dela poemas meus. A leitura dela, que é uma leitura apenas de prazer, me ajuda a entender se eu alcanço os desavisados com a poesia, ou se me perco. Eu mostro, portanto. E também uso o Instagram e o Facebook como formas de expor o poema recém parido, ainda envolto no líquido amniótico, mal abrindo seus olhos. Acho interessante ver como são recebidos. E tenho entendido cada vez mais isso como um processo criativo. Volto e edito. Leio e mudo de novo. É como se eu criasse, agora, aberta. E pudesse mexer, e pudessem observar. Sem problemas pra mim. A publicação no papel, no entanto, passa por muitos olhares, diferentes revisores. E é outra fase. Poema baby crescido ganhando o mundo, indo pra outra cidade.
Como é sua relação com a tecnologia? Você escreve seus primeiros rascunhos à mão ou no computador?
Eu só escrevo no computador. Eu não consigo escrever à mão. Na adolescência escrevia diários, bilhetes para o meu eu do futuro, escrevia poemas em guardanapos. Hoje é impossível imaginar isso. Impossível. Eu acho lindo a beleza das letrinhas se criado na página branca do meu computador. O desenho do texto no computador. Eu realmente acho lindo. Eu sou muito visual. A estética de voltar, limpar e ter tudo lindo e limpo e desenhado me agrada. Não consigo imaginar os garranchos de texto, os escritos por cima, riscados, eu acho que eu tenho um ataque cardíaco de ver o poema, assim, rabiscado, quando ele pode nascer tão limpo. Não sei muito explicar. Acho que era o Cazuza que amava isso de escrever na máquina e ver o registro acontecendo. Mas não tenho certeza. Vou pesquisar.
De onde vêm suas ideias? Há um conjunto de hábitos que você cultiva para se manter criativa?
Acho que minhas ideias vêm da leitura, de ouvir música e cuidar das plantas. Como disse lá, na primeira resposta, levantar os olhos de um livro absurdo faz a gente olhar tudo de forma absurda. E isso é o filtro que a arte nos dá. Ouvir uma música, ficar arrepiada e se permitir sentir? Isso é um filtro criativo que a arte nos dá. Prestar atenção no jeito que nasce uma Monstera Deliciosa, brotando toda contorcidinha, me coloca alerta para a beleza das coisas pequenas, que são estupendas, isso é arte. O que eu posso dizer é que eu amo a beleza e me alimentar da beleza da arte. Isso sim é muito consciente: eu procuro por isso. Muito. Eu sigo artistas do mundo todo no Instagram. Eu fico no Pinterest vendo arte, eu faço colagens manuais, eu gosto de ficar no quintal muito tempo. Eu preciso estar sozinha e ouvir música e me emocionar. Eu preciso da arte. A arte é que me traz arte. É tudo um giro.
O que você acha que mudou no seu processo de escrita ao longo dos anos? O que você diria a si mesma se pudesse voltar à escrita de seus primeiros textos?
Nossa. Que pergunta incrível. Certamente eu fiquei mais criteriosa e, por mais que eu ainda seja muito instinto, entendi que existe uma ciência na escrita, ciência essa que não passa por fórmulas ou regramentos, não é isso, mas uma ciência de critério, escolha de palavra. Nenhuma palavra em vão. Nenhuma palavra em vão. Eu acho que eu diria para a menina que escrevia emocionada demais ir passando várias peneiras na emoção até deixar a palavra exata. Até limpar a emoção a ponto de a palavra ser por si só a emoção derramada. Isso sim eu mudei: critério, dicionário sem fim, pesquisa etimológica, vasculhar os desvãos da palavra, ser arqueóloga, me deliciar com os segredos, com a ancestralidade, as coisas que uma palavra guarda.
Que projeto você gostaria de fazer, mas ainda não começou? Que livro você gostaria de ler e ele ainda não existe?
Não consigo nem imaginar que livro não existe e que gostaria de ler, nem me atrevo: certo que existe! Existem inúmeros autores e autoras escrevendo neste país narrativas que não chegam às editoras, que não são publicados, por inúmeras razões, a maior parte delas associada a uma questão de lugar periférico, longe de um cânone que é homem e homem branco e do centro do país. Essa literatura me interessa e me enriquece e consegue dar uma amostra mais real do que é a verdadeira literatura brasileira. Portanto, seria muito atrevimento meu dizer que algo não existe. Sobre projetos meus, eu quero escrever um livro que misture conto e poesia e colagem e que fale sobre anatomia, uma espécie de pesquisa sobre o lugar dos sentimentos no corpo humano modificado por plantas e animais. Uma ciência poética na qual eu nomeie novos lugares. Estou na fase de pesquisa ainda.