Taiane Maria Bonita é escritora, historiadora, idealizadora da revista literária “Travessa em Três Tempos”.
Como você começa o seu dia? Você tem uma rotina matinal?
Eu não levo uma vida muito rotineira por mais que a rotina me auxilie muito em momentos importantes, em especial quando estou com dificuldade de foco. No geral sou uma pessoa noturna e tenho bastante dificuldade para acordar cedo pela manhã, mas agora estou morando na Ilha de Moçambique, para escrever o romance que faz parte de minha tese de doutorado em Escrita Criativa, e as coisas mudaram muito. Aqui escurece muito cedo e a Dona Kero, a dona da casa onde eu moro, uma mulçumana muito acolhedora, acorda às 4h30 da manhã para fazer suas orações e começar os trabalhos do dia, por volta das 6h todos os sons da casa já estão a pleno vapor. Ouço as mulheres varrendo o pátio, a Dona Kero conversando em macua com seu filho Mamadi, as crianças jogando bola, mas o que mais me marca é o som da máquina de costura do Seu Hamati, o senhor que trabalha em frente ao meu quarto de maneira que geralmente o máximo que consigo aguentar na cama é até umas 7h30, às 8h é servido o café. Agora – estamos em agosto – é período de férias escolares e muitas crianças de cidades maiores como Nampula e Nacala vem aproveitar a praia e a tranquilidade da ilha. É o caso do Kiane, neto da Dona Kero, que me faz companhia no café da manhã e tem me pedido para ensiná-lo a falar francês enquanto me ensina um pouco de macua e às vezes brinca de pentear meu cabelo. Depois do café tomo um banho de balde já que é comum não ter água no chuveiro pela manhã. Depois disso – no cenário ideal – eu escrevo até o horário do almoço.
Em que hora do dia você sente que trabalha melhor? Você tem algum ritual de preparação para a escrita?
Já disse que sou uma pessoa noturna e, também, que tenho aproveitado as manhãs para escrever. O que tem funcionado para mim é uma constante auto-observação e adaptação ao meio, de maneira a conhecer meus hábitos, ciclo biológico e padrões cognitivos. Desde a adolescência passava madrugadas em claro, quando fui para a faculdade fazia duas graduações ao mesmo tempo e o período que tinha para estudar era inevitavelmente o período da madrugada. No mestrado identifiquei um padrão no qual só conseguia escrever depois da meia noite. De uns anos para cá tenho lutado para ter uma rotina de trabalho mais saudável e aos poucos vem dando certo, apesar da ainda constante tendência para fazer as coisas a noite. O que quero dizer com isso é que prefiro acreditar que meus horários de maior rendimento têm maior relação com o tipo hábito que eu estabeleço na minha vida – horários para dormir, acordar, alimentação, rotina de trabalho e estudo, prática de atividade física – do que uma predeterminação rígida e fixa. O período que aceitei que eu só conseguia trabalhar de madrugada parei de sofrer por não conseguir acordar cedo, agora que estou num contexto em que é inevitável acordar cedo tenho achado bom.
Gosto de ritos, então tenho muitos rituais para escrever e ao mesmo tempo não tenho nenhum. Num cenário ideal estou sozinha, ligo meu computador, coloco uma música instrumental, um óleo essencial de breu branco no difusor, faço uma térmica de chá de alecrim, espalho todo meu arsenal de anotações pela mesa, sento de frente para a janela aberta com uma vista bonita e espero que toda essa parafernália me ajude a ficar mais concentrada no meu trabalho. Mas nem a vida, nem os processos criativos são feitos de cenários ideias. Rituais podem auxiliar, mas não devem ser condicionantes. Aqui na ilha eu tenho muitas restrições desde acesso a internet à luminosidade do meu quarto. Às vezes consigo estar sozinha para escrever, mas muitas vezes estou em algum canto e chega alguém querendo conversar. O que tira minha concentração, mas em muitos momentos essas interrupções me ensinam mais do que me atrapalham, pois se estou aqui para aprender com as pessoas eu preciso ter contato com as pessoas. Ok! a escrita é um processo solitário, por mais que exista um universo de interações ao meu redor sou apenas eu e a tela do computador enquanto escrevo. Mas gosto de escrever com a porta do quarto aberta, para usar a imagem do escritor como aquela pessoa trancada sozinha atrás da porta fechada, gosto de ser afetada por todos os ruídos da vida lá fora de um jeito que faz com que eles apareçam no texto. Eu posso fechar a porta e talvez responder a essas perguntas de maneira mais rápida, mas se fizer isso também perco grande parte da luz que entra no meu quarto e nas minhas ideias. Ter alguns rituais significa ter recursos particulares que talvez transmitam uma sensação maior de conforto, foco ou segurança para fazer o meu trabalho, mas posso compará-los a artigos de luxo. Acho que a única coisa que posso considerar como essencial é o hábito de reler – na maioria das vezes em voz alta – tudo o que escrevi até onde parei. Reler me faz entrar no que já escrevi, quando estou com dificuldade releio de novo e de novo até sentir que posso avançar.
Você escreve um pouco todos os dias ou em períodos concentrados? Você tem uma meta de escrita diária?
Não escrevo todos os dias, a não ser que eu tenha um prazo. Já tive muitas crises existenciais por causa disso, estudar o processo criativo de escritores que admiro e perceber que muitas das minhas questões em relação a escrita não são apenas minhas questões me auxilia a aliviar a barra para o meu lado. Foi, de fato, uma alegria descobrir que as páginas dos diários de Kafka estão recheadas de anotações do estilo “hoje não escrevi nada”. E perceber que diferentes escritores têm diferentes mecanismos de escrita e se relacionam de diferentes maneiras com esse jogo entre urgência e paciência, como denomina Jean-Philippe Toussaint. No final das contas acredito que o que faz a escrita funcionar é, sim, prática e persistência, mas para mim isso não significa necessariamente uma prática de escrita diária. Concordo com a ideia de que escrever não está apenas no ato mecânico de enfileirar palavras, está na forma de perceber e processar o mundo ao meu redor. Ao chegar em Moçambique tudo se tornou experiência literária, estou em campo 24 horas por dia. Nos primeiros dias quis escrever todas as manhãs, tanto a narrativa do romance, quanto minhas anotações nos diários que trouxe. Depois de uma semana parei um pouco, pois queria viver a experiência ao máximo, processar o turbilhão de emoções e conflitos internos trazidos pelo fato de ter atravessado sozinha o Atlântico. Mas também preciso escrever, tenho um prazo para entregar o texto final. Agora estou procurando um lugar confortável entre aproveitar ao máximo a experiência de viver aqui e conseguir produzir. O que tem acontecido é escrever um parágrafo, meia página cada vez que consigo me concentrar. Não é muito, é menos do que eu estava escrevendo no Brasil, meu tempo de concentração na frente do computador também diminuiu. Mas também já percebi surgirem elementos na narrativa que jamais teriam aparecido no texto se eu não tivesse vindo para cá, alguns são detalhes, outros são questões estruturais. Então, não importa muito a quantidade de palavras que o Word me indica que acrescentei no arquivo.
Como é o seu processo de escrita? Uma vez que você compilou notas suficientes, é difícil começar? Como você se move da pesquisa para a escrita?
Não sei se existe um momento que a pesquisa acaba, mesmo depois da escrita. Isso porque geralmente escrevo sobre temas que me interessam estudar para além da escrita do texto, temas que fazem sentido para o meu crescimento enquanto pessoa. Muitos dos projetos que penso para o futuro são desdobramentos das coisas que venho pesquisando agora. O romance que estou escrevendo para o doutorado é o desdobramento de uma personagem que criei em 2012 para a revista literária que eu editoro. O que existe é um constante diálogo. Faço muitas anotações em cadernos, arquivos digitais, fichas, notas no celular, mapas mentais, mas a maioria das vezes não releio as anotações. O que me auxilia é o próprio ato de anotar, é quando encontro soluções, formas de começar ou avançar o texto. Cada vez que empaco em algum lugar, paro e tento entender o que travou o processo. Posso dizer que tenho como método uma espécie de caos organizado.
Como você lida com as travas da escrita, como a procrastinação, o medo de não corresponder às expectativas e a ansiedade de trabalhar em projetos longos?
Terapia! É sério. Procrastinação, bloqueios e inseguranças são mecanismos de defesa, entender o que está escondido por trás desses mecanismos me ensina a encontrar maneiras de lidar com eles. Não existe uma fórmula mágica, existe uma constante busca por autoconhecimento e uma persistência no meu objetivo. Escrever é meu trabalho, encarar a escrita como uma profissão mudou minha forma de me relacionar com a literatura – que antes era muito idealizada. Às vezes é só falta de sentar a bunda na cadeira e insistir no trabalho duro mesmo, mas às vezes um bloqueio específico fala sobre coisas dentro de mim que eu preciso entender. Para mim o importante é estar aberta para encontrar soluções, algumas vezes inesperadas. No início do ano houve um período que não estava conseguindo avançar no meu romance de jeito nenhum, então comecei a escrever poemas. Nunca achei que eu tinha jeito para poeta, mas fui fazer uma oficina de poesia com o Diego Grando e foi incrível. O que à princípio parecia ser um desvio de foco acabou impactando no meu projeto de um jeito muito positivo.
Quantas vezes você revisa seus textos antes de sentir que eles estão prontos? Você mostra seus trabalhos para outras pessoas antes de publicá-los?
Meus textos não têm muitas versões, mas reviso o tempo inteiro. Só passo para o parágrafo seguinte quando estou satisfeita, ou minimamente satisfeita, com o que estou escrevendo. Às vezes isso significa reescrever a mesma frase umas cinco vezes. Como sempre releio o que escrevi no dia interior, acaba que essa leitura também serve como uma revisão. Terminada a primeira versão eu costumo enviar o texto para pessoas de minha confiança e a partir dos comentários delas, faço uma revisão final. O que tenho publicado até agora são contos e textos curtos, todos produzidos dentro de um prazo delimitado, é diferente de escrever uma narrativa longa onde tenho um espaço maior para me afastar da narrativa, deixá-la amadurecer e depois revisar tudo de novo. Ainda estou escrevendo, não cheguei nesse momento de revisão da obra completa, então, ainda não sei como será.
Como é sua relação com a tecnologia? Você escreve seus primeiros rascunhos à mão ou no computador?
Prefiro escrever no computador, mas uso o que estiver ao meu alcance. Ano passado fiz uma viagem de quatro dias para participar da Bienal do Livro de São Paulo e fiquei hospedada na casa de uns amigos no bairro Perdizes, iria de Guarulhos até lá de ônibus/metrô. Já não gosto de carregar muita bagagem, tendo que atravessar São Paulo sozinha então, não valia pena levar computador. Carreguei um caderno de anotações e escrevi cenas importantes do romance nesse caderno, tanto dentro do avião quanto no trajeto entre Guarulhos e Perdizes, mas no geral não costumo escrever a mão. Gosto de escrever poesia no meio da madrugada quando não estou conseguindo dormir, então uso muito o bloco de notas do celular. Não posso negar a geração em que nasci adoro todo tipo de tecnologia.
De onde vêm suas ideias? Há um conjunto de hábitos que você cultiva para se manter criativa?
Minha primeira formação é como historiadora e, apesar de ter me formado em Letras também, a História é o que move meus interesses e processos criativos. Quando não sei o que fazer estudo história, quando estava perdida no romance fui estudar a guerra civil moçambicana e encontrei respostas que não estava encontrando na literatura. Mas também leio muita literatura, gosto de ler autores de países e culturas diferentes, meus preferidos são os africanos, óbvio. Outra opção é arrumar as malas e vir morar numa ilha de 3km de extensão no meio do Índico.
O que você acha que mudou no seu processo de escrita ao longo dos anos? O que você diria a si mesma se pudesse voltar à escrita de seus primeiros textos?
Hoje me vejo mais atenta ao texto, sua estrutura narrativa e linguagem. O que me é mais perceptível é uma mudança interna que, obviamente, reflete no texto. Hoje encaro a escrita com mais seriedade e, talvez, um pouco menos de encantamento. Aceitei que a única maneira de melhorar minha forma de escrever é escrevendo e isso me dá maior liberdade para me arriscar. Se não funcionar existe revisão para isso, se continuar não funcionando jogo tudo fora e começo de novo, mas o importante é não deixar de escrever.
Que projeto você gostaria de fazer, mas ainda não começou? Que livro você gostaria de ler e ele ainda não existe?
Tenho uma facilidade para inventar moda e criar novos projetos, o que pode se tornar uma dificuldade em concluir projetos existentes. Por isso, tenho procurado me manter focada em terminar o romance que estou escrevendo. Uma história que aborda relações entre Brasil e Moçambique e as memórias traumáticas do período da guerra civil moçambicana, em especial as memórias de violência contra o feminino. É o que me trouxe até a Ilha de Moçambique, mas tem sido tão incrível a experiência aqui que já sinto que um livro apenas não daria conta de tudo o que tenho aprendido aqui e, então, sinto vontade de escrever outras histórias daqui. Mas bem, isso não é um projeto é um sentimento.