Tággidi Mar Ribeiro é poeta, autora de “O Sonho do Tempo” (Patuá, 2020).

Como você começa o seu dia? Você tem uma rotina matinal?
Acho que minha rotina não difere muito daquilo que faz a maior parte das pessoas: levantar, arrumar a cama, preparar/tomar café da manhã, escovar os dentes, tomar banho e começar a trabalhar – não necessariamente nessa ordem e nem necessariamente tudo, sempre. Antes disso nem tudo/nem sempre, no entanto, há mais ou menos cinco anos, gravo o que restou dos sonhos do sono. Teria hoje um arquivo de centenas de narrativas oníricas não tivesse sido furtado um meu hd onde se encontrava a maior parte delas.
Ultimamente também, por conta de minhas indisciplina e procrastinação, faço uma lista mental dos compromissos do dia, de atividades gerais e atividades outras. Já por meu senso de conexão com o Todo, ou religiosidade, gosto de rezar afirmando intenções para o dia e reafirmar as intenções que todos os dias me movem, além de pedir proteção e ajuda.
Em que hora do dia você sente que trabalha melhor? Você tem algum ritual de preparação para a escrita?
Eu não me considero um escritor profissional. Não escrevo literatura todos os dias e nem pretendo fazê-lo. Não tenho ritual de preparação, mas pode ser que venha a tê-lo. Não sei. Acho às vezes que as manhãs são mais propícias ao trabalho com a pintura, as tardes com a música e o Tarô, as noites com a leitura e a escrita. Essa é, no entanto, a impressão geral de alguém que exercita com constância essas artes há relativamente pouco tempo.
Você escreve um pouco todos os dias ou em períodos concentrados? Você tem uma meta de escrita diária?
Às vezes acho que em mim a escrita se assemelha mais à gravidez, mesmo. O feto se forma e amadurece dentro – e aí vou parir um bicho já perfeito que se desenvolve no contato com o ar exterior, o tempo exterior dos leitores, das leituras. Outras vezes, parece que cato coisas externas, industriadas fora de mim – no ar, no vento. Se não me engano, Simone Weil em criança achava que os poemas estavam escritos no ar e era só pegá-los… Gilberto Gil, em entrevista ao Roda Viva de 1987, se não me falha a memória, também relata coisa parecida. E, enquanto escrevo, lembro-me de tantos artistas para quem, em raros e não tão raros momentos, a obra é uma espécie de outro cuja existência já é uma realidade, impalpável, que precisa apenas de um veículo, um tradutor, um materializador. O mundo das ideias platônico pode ser muito bem esse invisível que goteja, dentre um mundaréu de coisas, palavras rarefeitas para quem se dispõe a colhê-las e imprimi-las em tinta, em tecla.
Como é o seu processo de escrita? Uma vez que você compilou notas suficientes, é difícil começar? Como você se move da pesquisa para a escrita?
Ainda não me atrevi a escrever um romance inteiro, gênero para o qual a pesquisa e a compilação de notas são geralmente necessárias e/ou “dinamizam o processo”. De todo modo, penso que tanto as notas quanto a pesquisa são demandas da obra e, portanto, ulteriores ao início da escrita. Quanto aos contos, em mim, são fabulações internas que às vezes levam anos sendo escritos dentro e quando querem ganhar existência vêm num atropelo de multidão em fuga – preciso reescrevê-los inteiramente, dando a eles arranjo e coerência. Com a poesia, em geral, poucas notas – que são versos aos pedaços, ideias esparsas. Quanto à pesquisa… considero que a matéria de tudo que vivo, leio, penso seja poética, então tudo já é pesquisa, até modos de conhecer e viver (o que poderia ser dito em relação aos contos e romances em gestação, em que pese sejam outras formas e por isso demandem outros tempos e outros cuidados).
Como você lida com as travas da escrita, como a procrastinação, o medo de não corresponder às expectativas e a ansiedade de trabalhar em projetos longos?
A gente se acostuma com tudo. Eu me acostumei com a interrupção e com o fracasso. Não tenho a mínima ideia de como seria corresponder ou mesmo ultrapassar positivamente as expectativas do punhado de pessoas que supõem que eu tenha algo de bom a dar ao mundo. Acho que o mais honesto é mesmo dizer que ainda temo mais o “sucesso”, como reconhecimento dos pares e do público, neste tempo da vida, do que o fracasso e, nesse sentido, correspondo com sucesso aos punhados de descrentes da minha pessoa e do meu trabalho.
Quantas vezes você revisa seus textos antes de sentir que eles estão prontos? Você mostra seus trabalhos para outras pessoas antes de publicá-los?
Eu publiquei até agora apenas um livro “O Sonho do Tempo” (poesia), que saiu ano passado pela editora Patuá. Era inicialmente um compilado de dez anos de pouquíssima produção poética, uma vez que entre “o inútil do fazer e o do não fazer”, eu preferia o inútil do não fazer. Foi justamente a leitura de um amigo-leitor que me obrigou a rever o compilado e a tentar encontrar um caminho melhor, mais consistente, que transformasse o compilado em livro. Outro amigo-leitor deu-me sugestões de mudança e cortes que não acatei – hoje acataria todas.
Então, assim é, do que sei: meus contos – reviso-os apenas uma vez, dou-os por findos e os esqueço; romance – de minha procrastinada experiência, muitas revisões; poesia – tendem a zero as revisões.
Até agora, só dei a conhecer antes da publicação aquilo que já julgava pronto, mas creio que seja um hábito que perderei com o tempo. Essa entrevista, por exemplo, pretendo concluir sem findar, e que alguém a leia, e que eu a revise. (Feito.)
Como é sua relação com a tecnologia? Você escreve seus primeiros rascunhos à mão ou no computador?
No bloco de notas do celular, em geral, e depois direto no computador. Tive alguns caderninhos e muitas notinhas em post-its – maior parte das notinhas eram perguntas e reflexões pretensamente filosóficas, sociológicas etc. Um dia, há uns sete anos, relendo-as, derrubei chá sobre elas e quase nada restou. Antes e depois, também, fui debastando-as, jogando muita coisa fora ou aproveitando para um de meus projetos, o Manual da Procrastinação. A ideia é que não fique pronto nunca (mentira, mas fato é que se arrasta há uns quinze anos). Por isso, criei o Fragmentos do Manual da Procrastinação, que está em andamento, mas também não tenho ideia de quando vou finalizar.
De onde vêm suas ideias? Há um conjunto de hábitos que você cultiva para se manter criativa?
Minhas ideias vêm de paragens que desconheço. Do que posso ter consciência, sei que vêm da minha paixão pela vida, do que dá a substância da vida – o próprio sentir, pensar, senti-pensar em tudo que me provoca, sejam os livros, músicas, filmes (os artefatos humanos); sejam os bichos, as pessoas, as plantas, as pedras (outra espécie de artefato, também humano em certo sentido); sejam os deuses, outros mundos.
A busca incessante por um fundo mais fundo, a verdade, essa coisa antiga e démodé.
As perguntas me enchem de amor, criar mundos me enche de amor, a matéria densa do amor – um todo muito aceso repleto de delícias e horrores.
No mais das vezes, é preciso coragem para amar, imaginar e criar. É só isso, e é demasiado.
O que você acha que mudou no seu processo de escrita ao longo dos anos? O que você diria a si mesma se pudesse voltar à escrita de seus primeiros textos?
Comecei a escrever e a compor aos dez anos, ao ler “Ficções do Interlúdio/Poemas Completos de Alberto Caeiro”. Queimei tudo dessa época. Continuei a escrever ao longo dos anos, cada vez menos, até chegar ao deserto da criação, que era também o deserto da vida. Eu tentaria influir em mim a fé, a confiança, a aposta na vida e em mim mesma – escrever um livro não é nenhum pecado, eu diria. Coragem, eu diria. Atenção: aprenda a ouvir a si mesma.
Que projeto você gostaria de fazer, mas ainda não começou? Que livro você gostaria de ler e ele ainda não existe?
Muitos projetos. Tenho muito mais projetos curtidos dentro, ruminados ou apenas relances, como pinceladas a esmo, do que iniciados.
Eu ficaria imensamente feliz – imensamente – de ver surgir em breve no Brasil o escritor que em seu próprio tempo e pelos próximos séculos ou milênios, enquanto existirmos, figurará no cânone ocidental, como Clarice Lispector, Dostoiévski ou Dante. Seus livros, que eu quero muito ler, destrincharão e universalizarão a matéria Brasil.