Stefanni Marion é poeta, escritor e editor, autor de “Portuário” (2022), “Inventário” (2014) e “Temporário” (2012).

Como você começa o seu dia? Você tem uma rotina matinal?
Acordo de madrugada. Da cama, ouço o vento misturado a um recital de grilos. Puxo pela memória o último sonho e anoto no caderninho de cabeceira. Penso em seus possíveis significados. Levanto, vou à cozinha e alimento os gatos. Guardo no armário as louças secas do escorredor. Se não choveu, águo o jardim e vou para o banho.
Preparo o café, sento e começo a escrever.
O dia amanhece e os grilos se camuflam entre pedras e árvores onde dormem suas canções – esse é meu alarme. Reviso o que escrevi, coloco um vinil pra tocar e começo outras tarefas do dia. Durante a escrita de um livro, tenho manhãs que repetem uma rotina – é um dos meus recursos para manter o encontro com a poética.
Em que hora do dia você sente que trabalha melhor? Você tem algum ritual de preparação para a escrita?
Com escrita, trabalho melhor de madrugada e próximo ao amanhecer. Mas, já que moro numa cidade de praia, às vezes visito Águas Rasas – nome inventado para um lugar secreto, onde bradei e fiz os caminhos do último projeto que estive envolvido. No processo de Portuário, meu novo livro, ficava na praia observando o ir e vir de um poeta imaginário que saiu do farol, carregando sua mala de memórias, rumo a um porto. Esse projeto provocou inúmeras mudanças em meu jeito de sentir a peregrinação que é escrever. Pela primeira vez, os rituais foram contraventores a tudo que eu sabia. Portuário é um poema longo composto por três personagens principais: livro, voz e poeta. Trabalhar as distinções dessas vozes foi um desafio e aprendi muito no processo.
Quero ter a sorte, em um próximo projeto, de ser provocado a mudar rituais e reaprender tudo outra vez, ainda que tenha algo dessa experiência que se fixou: respeitar o tempo que um livro pede para ficar pronto, respeitar o tempo dentro da urgência que o dia a dia propõe. Um pacto selado: Stefanni Marion, respeitar o tempo do livro.
Você escreve um pouco todos os dias ou em períodos concentrados? Você tem uma meta de escrita diária?
Retomando um pouco a resposta anterior, eu respeito muito o tempo das palavras. Se elas pedem pausa, não escrevo. Se elas pedem para seguir, escrevo na travessia. O livro também é trabalhado nos momentos de pausa. É algo natural pra mim, os silêncios das palavras ou os bailinhos que elas fazem em minha cabeça. Convivemos sem metas e cobranças.
Como é o seu processo de escrita? Uma vez que você compilou notas suficientes, é difícil começar? Como você se move da pesquisa para a escrita?
Quando estou escrevendo um livro, vivo intensamente o processo. Fico alerta à matéria-prima que o tempo traz nos sonhos. Pesquiso o significado de cada imagem que coloco na narrativa. Em Portuário, me cerquei de objetos e presentes que o mar trouxe: galhos, folhas, conchas, raízes, partes de embarcações, prumos de pesca, vidros de perfume, etc. Em algum momento, olhei esses objetos e eles foram parar no texto. Tudo fica registrado no inconsciente de quem silencia, observa e escuta. É preciso ser grandes ouvidos. Grandes olhos. Longas pernas. Longos braços.
Certa vez fui à praia. Da areia, vi um galho na água. Ele dava braçadas na saia de renda das ondas. Fiquei ali esperando sua chegada. O levei para casa e o deixei na mesa de trabalho. Não demorou muito e logo foi morar no corpo do poema.
O movimento que faço da pesquisa à escrita é reler o que produzi no dia anterior. Mas, durante a escrita, não revisito os estudos. Mergulho com a roupa do corpo e uso o que vier em minha memória.
Como você lida com as travas da escrita, como a procrastinação, o medo de não corresponder às expectativas e a ansiedade de trabalhar em projetos longos?
Eu não sinto como se fossem travas. Acho a procrastinação essencial, inclusive. Quando não me vejo motivado a escrever, navego minha energia para outras atividades. Tento aportar e aterrar as cobranças. Volto para as leituras, estudo, escuto canções, vejo filmes, saio para passear e fotografar as cenas do dia. Encher o mundo de pernas é escrever em movimento. Sinto que é preciso viver o processo todo e entender que ele é de fases.
Quantas vezes você revisa seus textos antes de sentir que eles estão prontos? Você mostra seus trabalhos para outras pessoas antes de publicá-los?
Cada trabalho dita como será o processo. Portuário, revisei incessantemente. Por ele, acordava às 04h40 e começava a trabalhar. Revisei no papel, espalhei o poema no chão para organizar a narrativa, li projetado na parede, li em voz alta, li tapando os ouvidos para que a leitura ecoasse em sussurros dentro de mim, li também inúmeras vezes para o mar – andando de um lado pro outro; como um ator com seu texto em mãos ensaiando no palco onde se realizaria um espetáculo. Mas a melhor revisão que fiz foi uma das últimas: de madrugada, levei um espelho grande até a praia e sentei na frente dele. Comecei a ler o poema olhando meu reflexo. Ouvi minha voz, ouvi o mar e o poema: foi poderoso. Emocionado, notei as fragilidades das vozes que compunham o poema. Todas elas carregavam marcas do tempo, que se misturavam às minhas. Precisei abraçar o poema e entender que ele estava quase no fim de uma longa jornada.
Durante a escrita de Portuário, mostrei o processo para meus leitores beta. Foi importante ouvir cada um e todos contribuíram com sugestões que me ajudaram a cortar os entraves e entender se algo não fazia sentido. Sinto que, de certa forma, quem leu se fundiu à voz que narra a travessia.
Como é sua relação com a tecnologia? Você escreve seus primeiros rascunhos à mão ou no computador?
Sinto que sou um homem de outro tempo, talvez anterior à máquina de escrever, primeiro escrevo em cadernos. Depois vai tudo para o computador, onde melhor edito e dou forma para a geografia de onde quero chegar. Nos dias de hoje, a tecnologia é essencial e dela faço uso diário. É um lugar de divulgação do meu trabalho e já trouxe ótimas oportunidades e trocas de experiências.
De onde vêm suas ideias? Há um conjunto de hábitos que você cultiva para se manter criativo?
Sou o tipo de autor atento à arte de caminhar. Sou atento aos gestos, às memórias dos outros, ao chão selvagem da cidade, à vida íntima das águas, à virada do dorso de uma folha caindo, ao recado em uma página aberta “aleatoriamente”, ao silêncio entre estrofes de uma canção, aos livros esquecidos nas estantes dos sebos, etc.
Certa vez, no porto do Recife, uma cigana me viu escrevendo num caderno de notas. Ela se aproximou e disse “Você é um marinheiro que carrega um livro entre os dedos”.
A cigana é real, mas inventei um nome para ela: Mariana. Quis nomear essa memória e, por certo, em algum momento, esse será o nome de alguma canoa que navegará dentro de um novo livro. Sinto que ela estava certa ou eu gostei tanto daquela fala que quero que assim seja.
O que você acha que mudou no seu processo de escrita ao longo dos anos? O que você diria a si mesmo se pudesse voltar à escrita de seus primeiros textos?
Cada processo é individual.
Comecei a me interessar por escrever quando criança. Em Barra do Una (Peruíbe – SP), minha terra natal, observava meu pai ler livros nos descansos entre uma pescaria e outra. Achava curioso, ele, sempre tão enérgico, ficar sereno com aquele objeto em mãos. Foi esse o começo de tudo. Em essência, ainda sou o mesmo menino que saiu de uma vila de pescadores e que mantém a curiosidade para as palavras que compõem um livro. Esse menino acredita que não sabe escrever, não sabe ler e que isso é algo que quer muito. Ele quer aprender para saber o que há de tão mágico dentro de um livro.
Que projeto você gostaria de fazer, mas ainda não começou? Que livro você gostaria de ler e ele ainda não existe?
Um livro invisível, mas que já está pulsando no catálogo dentro da minha cabeça. Em 2020, passei uma temporada em Barra do Una. Todas as madrugadas, saía com meu tio Jorge para puxar rede no rio e trazer peixes para nossas refeições. Numa dessas vezes, ele me disse “Sabia que eu também já escrevi um livro? São histórias de quando sua mãe, seus tios e eu éramos pequenos e brincávamos no quintal de sua avó. Eu só não sei onde guardei”. Insisti algumas vezes pedindo para ele procurar, sempre em vão. Eu gostaria de ler o livro “guardado” de tio Jorge. Acho fascinante que seus dedos cortados por redes de pesca, à surdina, também segurem canetas e decantem palavras no papel. Assim como quero ler Portuário, meu próximo livro que chegará em 2022. O fim de uma longa travessia.