Sol de Paula é escritora.

Como você começa o seu dia? Você tem uma rotina matinal?
A maneira como começo o meu dia tem um divisor de comportamentos que se chama COVID 19. Antes da internação devido ao quadro grave da doença, acordava na correria para o trabalho. Despertador lembrando que meia hora não era o suficiente para a higiene pessoal, cuidado com o cabelo (sou a própria cabeleoa) etc. Saía correndo para pegar o ônibus, mas algumas vezes ele passava adiantado e o perdia.
Agora em tempos de DC (depois da COVID) o celular continua despertando cedo para as sessões de fisioterapia, caminhadas longas nos exaustivos 10 (dez) minutos, mas todos os dias abro a porta de casa e dou Bom dia ao Dia! Busco energia nos detalhes, faço a fotossíntese para purificar os pulmões.
Até hoje tenho um relacionamento duvidoso com a rotina. Em alguns momentos a rotina lúdica é o calibrador das minhas atividades, em outros, ela é abandonada, subvertida pela minha rebeldia em descumpri-la.
Em que hora do dia você sente que trabalha melhor? Você tem algum ritual de preparação para a escrita?
Adoro o sol, mas produzo melhor à noite. Prefiro o silêncio preenchendo os espaços da casa, da rua e dos meus pensamentos.
Algumas vezes a ideia central e as imagens se formam em minha cabeça durante o dia, se forem muito avassaladoras, traço o primeiro rascunho no bloco de notas do celular, mais tarde faço os ajustes, deixo a emoção fluir ou apenas acrescento o meu nome e a data.
Você escreve um pouco todos os dias ou em períodos concentrados? Você tem uma meta de escrita diária?
Atualmente tenho escrito, praticamente, diariamente devido aos projetos culturais que vivo reinventando. Também redijo para atender as demandas dos amigos que me convidam para participar de seus projetos.
Escrever é um ato político e de resistência. Adoro me entrelaçar com as palavras e senti-las vivas, em movimento. Não traço meta diária, não tenho tanta organização. Sou do tipo de escritora que a meta é a própria escrita livre, sem amarras, cumprindo prazos caso seja necessário, fluindo a emoção.
Como é o seu processo de escrita? Uma vez que você compilou notas suficientes, é difícil começar? Como você se move da pesquisa para a escrita?
Fundamentalmente escrevo poesias e minicontos partindo de uma construção mais orgânica. Gosto de visualizar a imagem que o tema sugere, a partir daí parto para as pesquisas e desenho com palavras a história no papel.
A minha narrativa também é pautada na denúncia social, retrata o cotidiano com lirismo sem mistificar e mascarar a realidade.
As injustiças, desigualdades atravessam o meu caminho de luta, por isso preciso colocar para fora.
Como você lida com as travas da escrita, como a procrastinação, o medo de não corresponder às expectativas e a ansiedade de trabalhar em projetos longos?
Tive momentos angustiantes em relação a trava da escrita, até compreender que existem pausas necessárias e simbólicas neste processo. Em vários momentos fiquei sem escrever uma poesia sequer. No entanto, estava redigindo material para fortalecer o andamento do Projeto Sextou Cultural que realizo no Instagram, ou para os programas do Canal no YouTube Ocupação AfroPoética. Em outros momentos estava dedicando maior tempo à leitura.
Associo a escrita às sensações de prazer, por isso tento controlar a ansiedade e usá-la a meu favor.
Quantas vezes você revisa seus textos antes de sentir que eles estão prontos? Você mostra seus trabalhos para outras pessoas antes de publicá-los?
Sou bastante exigente com tudo que faço. Releio até a exaustão, reviso, leio meus textos em voz alta, alguns gravo para perceber o ritmo, o fluxo do poema. Normalmente mostro os meus trabalhos para dois amigos/escritores. Compartilhar um rascunho é um gesto de extrema confiança.
Como é sua relação com a tecnologia? Você escreve seus primeiros rascunhos à mão ou no computador?
Gosto de escrever no caderno. Rabiscar a folha, inserir asteriscos e palavras entre as linhas. Mas também tenho um grupo do “eu sozinha” no WhatsApp onde registro desde frases até um texto completo.
De onde vêm suas ideias? Há um conjunto de hábitos que você cultiva para se manter criativa?
As minhas ideias encontram elementos em minha ancestralidade, nas memórias afetivas, em romances alheios, no cotidiano feroz. A invisibilidade me incomoda, a necessidade de transformação social me impulsiona.
O que você acha que mudou no seu processo de escrita ao longo dos anos? O que você diria a si mesma se pudesse voltar à escrita de seus primeiros textos?
Apesar do processo de amadurecimento individual refletir em minha escrita, percebo traços e anseios que já estavam presentes em meus primeiros registros literários.
Se pudesse retornar aos meus primeiros textos, diria para não os jogar fora, não esconder no fundo de um baú, mas para ter segurança e acreditar na força que eles têm. E o quanto essa atitude poderá encorajar a vida de outras escritoras em potencial.
Que projeto você gostaria de fazer, mas ainda não começou? Que livro você gostaria de ler e ele ainda não existe?
Pretendo fazer um livro que aprofunde a relação com as minhas raízes, meu território, meu corpo negro atravessado por tantas histórias que compõem a minha construção. Na verdade, um recorte da linha evolutiva da vida, dialogando com o material iconográfico encontrado em vários álbuns de família.
Quero ler mais livros com protagonistas negrxs, escritos por autores negrxs contando as nossas histórias reais, fantásticas, místicas, envolventes. Leio os clássicos, mas quero priorizar autores que estão no corre como estou de forma independente.
Vou encerrar citando Emicida: “Escrevo como quem manda cartas de amor.”