Sílvia Passos é a poeta potiguar.

Como você começa o seu dia? Você tem uma rotina matinal?
há alguns meses comecei a frequentar academia às cinco horas da manhã (não por disposição, mas porque era o único horário disponível para exercícios).
na realidade, nunca tive rotinas rígidas.
é possível que a resposta seja diferente daqui para o próximo mês.
apesar da falta de regularidade, sempre tive mais produtividade nos turnos matutinos.
na infância, as aulas, o balé e o inglês, poucas vezes foram a tarde.
nasci antes das oito horas.
não preciso de vários alarmes marcados no celular,
um já é o bastante para me despertar.
atualmente, passo o dia inteiro clinicando, pois sou psicóloga.
então, minhas manhãs obedecem ao seguinte fluxo:
alguns dias indo mais cedo pro trabalho, noutros mais tarde,
alguns dias faltando a academia, noutros me exercitando.
acordo com preguiça e queria ter mais tempo para senti-la.
mas a vida lá fora vai me sugando.
nem sempre consigo seguir planejamentos.
sou uma garota exemplar de maneira contingente.
Em que hora do dia você sente que trabalha melhor? Você tem algum ritual de preparação para a escrita?
não tenho horário favorito.
se eu delimitar escalas, acabo me frustrando.
por isso, não sei definir o momento em que trabalho melhor.
cada dia é uma vereda. sou mais responsável lidando com o trabalho de forma improvável.
gosto da noite para escrever, quando estou cambaleando de sono
e a casa no breu.
não pelo silêncio, nem pela paz, nem pela concentração,
mas pela impossibilidade de fazer alguma coisa séria.
pois meu expediente já acabou. termino escrevendo algo melhor do que quando
escrevo com intenção de dar certo.
essa entrevista, por exemplo, está sendo escrita às 22h34.
mas também não é como se eu escrevesse ruim em horários diurnos,
eu só acho que o descompromisso revela o meu poder póetico.
redigir, “grifado grafia no papel”, tem sido cada vez menos recorrente.
tenho encontrado novos modos de escrever. porque acredito que escrever é simbolizar, e isto, faço o tempo inteiro.
se quero realmente escrever algo que preste, já aprendi.
não adianta se concentrar.
nem buscar um café, um cigarro ou um quarto fechado.
apenas recorto palavras e imagens de revistas e jornais.
e tento fazer alguma coisa com isso.
Você escreve um pouco todos os dias ou em períodos concentrados? Você tem uma meta de escrita diária?
escrevo sempre.
poesia em períodos desconcentrados.
pois quando me concentro só escrevo coisa séria.
“O posicionamento nosológico será descartado, na medida em que coloca os sintomas psicóticos como erros de percepção.” (blábláblá acadêmico)
já na poesia, posso jogar tudo para o alto.
ou fazer malabarismo.
e simplesmente relembrar a origem da linguagem.
de quando não tínhamos dimensão do que a palavra poderia romper.
na poesia, posso escrever:
“quero estou faço”
sem vírgulas.
posso dizer que não aprendi a escrever. posso apagar textos já existentes.
a palavra pode tudo na poesia.
por essas e outras, não sei definir metas diárias. a não ser para as formalidades.
falando assim,
até parece que não sou quadrada.
cumpro prazos, normas, leis, abnt, essas coisas.
é na poesia que eu me coloco
em outro lugar.
Como é o seu processo de escrita? Uma vez que você compilou notas suficientes, é difícil começar? Como você se move da pesquisa para a escrita?
igualmente aleatório. não tenho passo a passo.
é muito mais provável que eu consiga criar uma boa frase no meio de uma conversa corriqueira do que em um horário destinado para escrita.
a clínica também me convoca a poesia.
na medida em que preciso devolver o que o outro disse usando as palavras dele.
nesse sentido, o analista precisa ser mais poeta do que analista.
e as vezes preciso explorar vários sentidos de uma mesma palavra para que o sujeito consiga enxergar o problema de outra perspectiva.
isso também acontece no meu próprio processo analítico.
tenho poesias que só escrevi porque fui para o divã.
meus melhores versos surgem quando estou numa discussão muito fervorosa.
uma daquelas onde preciso argumentar que saúde não é mercadoria.
ou quando preciso me opor ao uso indiscriminado de psicofarmacos.
é quando estou a flor da pele que surge meu processo de escrita.
e para estar a flor da pele, devo fugir de ambientes controlados.
vou fazendo assim: anoto a ideia no meio da situação, no dia a dia mesmo.
e vou acumulando essas notas.
depois disso, resolvo se vou para colagem, se transformo em texto ou se deixo a oração intacta.
na maioria das vezes, o verso já é a poesia.
e não insisto em tirar leite de pedra.
aquela coisa de nunca parar de ler é real.
quem escolhe esse caminho,
precisa estudar a vida toda.
embora, para mim, a pesquisa pode ser cotidiana.
acontece para além dos livros.
de modo que uma poesia pode surgir de um letreiro da parada de ônibus.
ainda mais para quem arrisca concretismo.
quando fazia iniciação científica meu orientador me recomendou escrever um diário.
isso revela muitas coisas sobre meus primeiros poemetas.
sempre tento acompanhar o que está sendo produzido de novidade por aí.
buscar referências é essencial.
mas volto a dizer que a pesquisa pode ser cotidiana e meu estilo surge na calçada.
Como você lida com as travas da escrita, como a procrastinação, o medo de não corresponder às expectativas e a ansiedade de trabalhar em projetos longos?
aqui vai uma fofoca sobre mim:
sou uma pessoa autopunitiva e tendo a corresponder as exigências externas.
comecei a inventar publicação muito menina.
e foi difícil receber críticas.
tentei a todo custo alcançar um grau de excelência.
escrever igual as pessoas que não gostavam do que eu escrevia,
para fazer elas gostarem.
parece coisa de gente mimada.
e para melhorar, foi preciso admitir.
contornei essas neuroses com mais literatura.
e música, muita música.
vivo em uma cidade com bastante destaque para poesia.
assim surgiram meus entraves.
porque tinha problemas de autoestima.
e outros orgulhos tronchos.
a verdade é que ninguém tem coragem de falar isso.
a propósito, declaro aqui publicamente
que não escrevo mais poemas.
não escrevo mais para contribuir com a literatura local.
minha proposta está voltada para saúde.
produções poéticas e culturais
são consequências.
hoje, trabalho para saudar.
e escrevo para a saúde.
em matéria de procrastinação
todos somos especialistas.
porque vivemos em uma sociedade imediatista.
e a procrastinação é um mecanismo para escapar desse sintoma social.
isso explica porque procrastinação e ansiedade andam juntas.
permito a procrastinação entrar na minha casa, junto com a jbl e algumas cervejas.
quando o churrasco acaba, deixo as obrigações para mais tarde,
é melhor ir assistir anime.
o trabalho vai deixando para depois.
porque sei que consigo ser responsável quando finalmente me encontro com o descompromisso.
não existe nada melhor do que um projeto longo.
tudo que demora tem mais qualidade,
tudo que demora consegue respirar.
quero cavar o horário para encontrar o meu tempo.
esse é o ansiolítico mais potente.
Quantas vezes você revisa seus textos antes de sentir que eles estão prontos? Você mostra seus trabalhos para outras pessoas antes de publicá-los?
quando a poesia deixa de ser hobby
e passa a ser trabalho,
não dá pra escrever qualquer coisa
e jogar no mundo.
revisão sempre, né?
sou muito insegura com as coisas que escrevo.
porque passei muito tempo estudando ciência, filosofia.
e não sei até que ponto posso me autorizar a ser poeta.
ainda não consigo afirmar “isso aqui ficou bom”
sem o olhar do outro.
então, sim, mostro bastante o que escrevo para outras pessoas.
apesar de ler e praticar bastante.
preciso ter cuidado para não ficar me diminuindo.
e nem me aumentando.
gosto do meu tamanho e acho que ficamos maiores
quando nos juntamos com outros profissionais.
leio o que escrevo mil vezes. mudo de palavra e de lugar mil vezes.
e também creio nessa tese de que
o poema nunca finaliza. assim como nunca começa.
os meus poemas são sempre editáveis.
se desatualizam com as novidades.
coexistem independente de publicação.
entretanto, as coisas com finalidade de publicação,
passam por todo processo burocrático de refinamento.
isso leva muito tempo (objetivamente).
aprendi que a crítica, mesmo quando chula,
não vem para nos derrubar.
para ser bem sincera, tenho me familiarizado com a polêmica.
a polêmica, a fofoca, a bandalhice.
tudo se aproveita e se recicla.
além da crítica e do público,
gosto de mostrar pros meus amigos e para alguns professores.
Como é sua relação com a tecnologia? Você escreve seus primeiros rascunhos à mão ou no computador?
não tenho mais esse fetiche saudosista pelo caderno e caneta.
uso o bloco de notas do celular.
e quando vejo que algo vale a pena continuar, transfiro pro word
faço as devidas correções pelo computador
imprimo, leio em voz alta, jogo no lixo,
volto pro início – celular, computador, impressão, voz.
e assim vai.
minha relação com a tecnologia é muito de boa,
já aceitei que ela faz parte da nossa vida.
para falar a verdade, a colagem nasceu de um momento completamente despretensioso.
quando comecei a fazer colagem, não pensei em nada como “a partir de hoje, farei poesias visuais”
ou
“quero usar menos tecnologias”
estava triste, ansiosa, insatisfeita com meu trabalho
comecei a cortar por puro entretenimento, por lazer, para desopilar
eu estava me divertindo.
por sorte, tive amigues que me incentivaram a levar a sério.
assim surgiu interligando o desprendimento.
são as formas que começo a rascunhar.
De onde vêm suas ideias? Há um conjunto de hábitos que você cultiva para se manter criativa?
minhas ideias surgem de músicas. sou fã de música.
nos meus mais belos sonhos, sou uma grande compositora.
tenho uma paixão platônica por músicos/musicistas ou por pessoas que se relacionam com a música de alguma forma.
as vezes me agarro nisso, muita coisa nasce daí.
ainda sou jovem e tive uma vida padrão. estudei, me formei, fiz tudo como manda o figurino. a garota exemplar, obediente.
deveria ser um erro produzir poetas assim.
para compensar essa ficha limpa, tento me inspirar nas histórias que escuto,
que vão se misturando com as minhas,
que vão se misturando com os sentimentos do mundo.
não posso dizer: beba água, faça exercícios, faça terapia, faça uma viagem por ano, veja filmes, escute o que você gosta e voilà, a mágica da criatividade acontece.
muito se fala de processo criativo e não sei o quê.
não curto falar sobre isso porque não tenho hábito, nenhuma recomendação, nenhum costume infalível.
a receita da criatividade pode ser muito simples, mas inaplicável para todos.
a melhor coisa a se fazer é conhecer seus limites.
cada pessoa vai encontrar sua forma de criar
de acordo com o que sua realidade aponta.
eu encontro uma fórmula diferente todos os dias.
O que você acha que mudou no seu processo de escrita ao longo dos anos? O que você diria a si mesma se pudesse voltar à escrita de seus primeiros textos?
tudo mudou. se eu pudesse voltar no tempo, diria:
não publique.
porque acho que meu início foi muito afoito.
e fui exposta a uma cena da qual não tinha noção.
era apenas uma jovem de 19 anos compartilhando rimas com meus amigos.
mais uma vez, não tinha pretensão de se tornar grande coisa.
para se ter uma ideia, antes das pessoas me reconhecerem como poeta ou como silvia escreve, meu perfil no instagram tinha um pouco menos de 300 seguidores.
minha vida emocional se desestabilizou quando percebi que tinha gente na cidade que já conhecia meu nome, já tinha lido o que eu escrevia, já tinha falado mal horrores e eu não fazia ideia de quem eram.
então, se eu pudesse conversar com a sílvia aspirante a poeta de uns anos atrás, diria para não se publicizar tanto. escrever as coisas do coração dentro do coração.
deixar o diário para dentro do diário.
de lá pra cá, tento consumir mais do que publicar.
sei que existe o público que adorava aquela época, que quer me ver produzindo como antes. mas não consigo ser a mesma.
apesar de tudo, agradeço aos que sempre apoiaram, já cheguei até aqui,
vou participar, continuarei dando minha contribuição,
mas agora com outra mentalidade,
com outras leituras e no tempo que me for necessário.
Que projeto você gostaria de fazer, mas ainda não começou? Que livro você gostaria de ler e ele ainda não existe?
com o auxílio da lei aldir blanc em 2021, consegui publicar meu primeiro livro, interligando o desprendimento.
no dia do seu lançamento virtual, perdi meu pai para covid, e por isso o lançamento foi cancelado.
no momento, não tenho grandes ambições para projetos,
estou atravessando um hiato.
porém, ainda desejo um evento para divulgar a minha obra que não teve sequer tempo para comemoração.
também penso em continuar investindo na colagem e na poesia visual.
um livro sobre como fazer as pazes com as redes sociais me ajudaria bastante,
mas certamente já exista pelas mãos de algum coaching.
pensar em algo que não existe é o desafio do artista,
sofri demais até entender que isso não é possível,
o que é possível é criar algo de(novo).