Sílvia Ester Orrú é professora da Faculdade de Educação da Universidade de Brasília.
Como você começa o seu dia? Você tem uma rotina matinal?
Antes de tudo… uma deliciosa xícara de café feito pelo meu companheiro! Não tenho uma rotina matinal bem estabelecida, depende um pouco da hora em que fui me deitar e daquilo que necessariamente terei que fazer no outro dia. Há dias que como professora compartilho saberes até tarde da noite e ao chegar em casa me demoro a relaxar e dormir. Consequentemente, levanto-me mais tarde um pouco. Há outros dias em que me encontro com meus pupilos logo cedo. Em outras manhãs sem um compromisso previamente agendado me levanto para caminhar e me arriscar a uma modesta corrida por cerca de 2 horas. A natureza sempre me inspira! Depois vejo meus e-mails e me organizo para respondê-los.
Em que hora do dia você sente que trabalha melhor? Você tem algum ritual de preparação para a escrita?
Desde criança eu não funciono muito bem antes das 10 horas da manhã. Antes de iniciar a escrita de um artigo ou de um livro, eu fico dias pensando no tema central e em seus possíveis desdobramentos. Eu converso comigo mesma por horas e até dias sobre o tema.
Em muitas madrugadas me pego matutando sobre as ideias que me arrebatam para a construção da escrita.
De modo geral sou motivada pela indignação para iniciar um estudo e/ou pesquisa que se materializará em uma produção escrita. Aquilo que me incomoda na sociedade e, mais especificamente na escola e na universidade, é o gatilho para que eu inicie o processo de criação para escrever o próximo material.
Você escreve um pouco todos os dias ou em períodos concentrados? Você tem uma meta de escrita diária?
Eu gostaria muito de me dedicar apenas a pensar, criar e escrever em todos os meus dias, além de viajar pelo planeta e brincar com meu filho. Mas não posso! Sempre me coloco a escrever após o cumprimento das atividades profissionais. Há dias em que não consigo escrever, pois eu preciso de um tempo para sentar e pensar para então retomar a escrita e quando não disponho de mais horas necessito deixar para outro momento.
Nos dias possíveis eu me dedico por horas no processo de leitura, estudo, pesquisa em prol da escrita. O período mais exaustivo, contudo, gratificante, é o tempo dedicado ao estudo e pesquisa. É um mergulho em um universo rico de possibilidades de aprendizagem para quem escreve. Mas demanda tempo! A escrita só irá acontecer após essa estação de intimidade com outros autores ou interlocutores.
Eu não tenho uma meta diária a cumprir. Para mim a meta costuma ser o desenvolvimento e o término do artigo ou do capítulo que estou desenvolvendo para compor um livro. Eu não sossego enquanto não concluo. Mas não estabeleço uma meta diária, até porque os compromissos profissionais às vezes me atravessam e preciso reorganizar minha agenda.
Como é o seu processo de escrita? Uma vez que você compilou notas suficientes, é difícil começar? Como você se move da pesquisa para a escrita?
Eu inicio organizando os capítulos que penso escrever. Faço um sumário provisório. A escrita é viva e por esta razão nem sempre sigo o que a princípio previ escrever. Penso que não são as notas que me conduzem à escrita, mas sim o desejo de compartilhar ideias e pensamentos com outras pessoas. As notas são para enriquecer o diálogo com o futuro leitor e também para meu próprio aprendizado.
Eu só me proponho a escrever a partir de meu desejo de escrever. Atualmente me recuso a escrever por obrigação. Assim, o movimento da pesquisa para a escrita acontece de modo natural e me acompanha durante todo esse processo até a finalização do material.
Como você lida com as travas da escrita, como a procrastinação, o medo de não corresponder às expectativas e a ansiedade de trabalhar em projetos longos?
Eu não sofro com entraves. A escrita simplesmente flui pelo desejo de escrever e minha natureza não combina com a procrastinação. A escrita é um processo dinâmico, ativo e caloroso para mim. A escrita também não se dá de modo imediato, é preciso compreender que para escrever o autor precisa de intimidade com sua criação e isso pode demandar mais ou menos tempo nessa construção que é muito subjetiva de cada um.
Em meus primeiros escritos eu me preocupava muito sobre como o leitor iria receber minhas publicações. Finalmente cheguei à conclusão que sempre terei leitores que apreciam meus trabalhos e outros que os repudiam, C’est la vie. Quando entendi esse acontecimento devir, resolvi não tecer expectativas quanto à aceitação de meus escritos.
Tudo o que escrevo é com uma significativa dose de amor e de muita dedicação e trabalho, saber disso já me basta. Eu também não me sinto ansiosa com projetos mais longos. Por vezes os projetos são longos para mim, mas a publicação em si resulta não ter tantas páginas para o leitor. Penso que cada página escrita é uma a mais para a finalização do projeto.
Quantas vezes você revisa seus textos antes de sentir que eles estão prontos? Você mostra seus trabalhos para outras pessoas antes de publicá-los?
Eu reviso uma única vez. Depois fica a cargo dos revisores da editora que publicará o material. Não me prendo a correções ortográficas e gramaticais, pois há profissionais muito mais competentes do que eu para fazer essa etapa do trabalho. E sou muito grata a eles!
Compartilho regularmente com meu companheiro aquilo que estou escrevendo. Às vezes peço sugestões e um feedback sobre a compreensão ou impacto do que estou abordando. Ele é a única pessoa com quem compartilho meus trabalhos antes de publicá-los. Tenho constante preocupação em realizar uma escrita clara para que qualquer pessoa, independente de sua área de formação, tenha condições de perceber e inteligir a mensagem central do que me propus escrever e compartilhar.
Como é sua relação com a tecnologia? Você escreve seus primeiros rascunhos à mão ou no computador?
Escrevo diretamente no computador e não faço rascunhos. Vou sempre diretamente à escrita do material. Por vezes surgem algumas alterações que são próprias do processo de escrita, mas não se configuram rascunhos.
De onde vêm suas ideias? Há um conjunto de hábitos que você cultiva para se manter criativa?
Como citei anteriormente, minhas ideias costumam ter sua gênese em meus sentimentos de indignação. E como todas as minhas publicações têm a ver com movimentos para uma educação de todos e para todos em uma perspectiva de educação inclusiva, a indignação sempre faz par comigo no palco de uma sociedade extremamente excludente em que fazemos parte.
Não me considero uma escritora criativa. Mas mantenho o hábito de pensar sobre as muitas ações que temos e que podem, mesmo não intencionalmente, excluir o outro. Esse contínuo pensar a respeito de uma diferença que não é apenas de alguns, mas sim uma característica própria da espécie humana, move-me a construir novos projetos para serem desenvolvidos e publicados. Também tenho o costume de prestar atenção nas atitudes e conversas das crianças de modo geral. Elas me ensinam muito e colaboram para o germinar de minhas ideias.
Penso que a simplicidade das coisas, o entendimento de que a vida é muito curta para ser desperdiçada e que a imaginação nos leva para as muitas possibilidades de transformação da sociedade são elementos importantes para criar e desenvolver um novo projeto. Tecnicamente, explico que, para mim, uma ideia, um pensamento novo, um insight necessita ser anotado imediatamente. Pois às vezes surgem de madrugada, em momentos de reuniões de trabalho, assistindo a um filme ou ouvindo uma música e podem se perder no tempo e no espaço entre uma atividade e outra.
O que você acha que mudou no seu processo de escrita ao longo dos anos? O que você diria a si mesma se pudesse voltar à escrita de sua tese?
Teses são chatas! Costumam ser repetitivas e engessadas pelo rigor e tradição da escrita acadêmica. Não costumo ficar remoendo antigas publicações. Penso que quando escrevemos e publicamos algo, naquele momento, era aquilo que desejávamos compartilhar, era o que sentíamos, era o que dávamos conta de escrever. Em alguns momentos me pego pensando: “- puxa, não penso mais assim como publiquei naquele livro”. Mas eu não faria diferente, porque não posso mudar o que já foi feito. Tampouco creio haver contradições entre o que foi publicado no passado com o que publico no tempo presente, pois estamos sempre nos modificando, sempre aprendendo, sempre nos conflitando com o novo. Isso faz parte da vida. Faz parte da vida do escritor. O que mudou no processo de escrita ao longo dos poucos anos que escrevo fui eu mesma e isso se reflete nas muitas linhas de uma obra publicada.
Que projeto você gostaria de fazer, mas ainda não começou? Que livro você gostaria de ler e ele ainda não existe?
Até o momento desenvolvi projetos que nasceram em meu coração. Entretanto, gostaria de visitar pelos países espaços de aprendizagem que se configuram diferentemente daqueles que conhecemos como sistemas formais de ensino e avaliação e registrar essas vivências em um livro. Os contextos em suas problemáticas é que me incitam ao desejo de escrever. Culturalmente ficamos muito presos na formalidade da escola e da academia quanto aos processos de ensinar e aprender. Mas há culturas distintas em que os espaços de aprendizagem não acontecem entre as paredes institucionais. Eu gostaria de escrever sobre isso, além de um trabalho fotográfico incorporado à obra.
Um livro que não existe? Sim, eu gostaria de ler um livro que narrasse uma profunda transformação sócio, histórica, cultural e política do Brasil. Um livro que contasse as lutas de um povo sofrido e usurpado pela indiferença e corrupção de seus representantes nas esferas públicas. Porém que também contasse, após um duro período de tristeza, retrocesso, dissabores e batalhas, a vitória da justiça social, da democracia, do respeito ao cidadão. Que descrevesse como se tornou um país onde todas as crianças tiveram acesso a uma educação prazerosa e de qualidade e como o sistema público de saúde se tornou a representação materializada do melhor investimento já feito dos impostos pagos, além de contar sobre como se deu a implantação dos programas de valorização dos anciões e anciãs que colaboraram na construção desse país por meio de seus trabalhos durante décadas. Uma obra de história com capítulos enunciadores sobre como a fome, a pobreza e a impunidade foram erradicadas. E que por fim, em suas últimas linhas conclusivas, que apontasse um futuro de consolidação de uma nação cujos princípios de sua bandeira já não eram “ordem e progresso”, mas “liberdade e justiça para todos”. Esse é o livro que sonho poder ler, ainda em vida.