Silvana Schultze é jornalista, escritora e pesquisadora, doutoranda em Ciências na Faculdade de Saúde Pública da USP.

Como você começa o seu dia? Você tem uma rotina matinal?
Gosto de começar o dia com exercícios, e há anos pratico caminhada – uso esse tempo também para meditar e refletir sobre o que estou produzindo, minhas metas e objetivos do momento. Sou pesquisadora na área de comunicação e saúde e costuma ser nessas horas que penso nas diversas interfaces entre esses dois campos. Reservo também as manhãs para pelo menos uma hora de escrita bruta, que em outros momentos será editada.
Em que hora do dia você sente que trabalha melhor? Você tem algum ritual de preparação para a escrita?
O horário em que minha escrita mais rende é pela manhã e início da tarde, quando meu raciocínio está mais rápido. Costumo reservar o final da tarde e início da noite para edição e leituras, que uso tanto para referenciar o que estou escrevendo, quando é um texto acadêmico, quanto para me inspirar em textos ficcionais. Leio muito antes de iniciar um projeto, das mais variadas fontes, e também durante a execução, principalmente quando a escrita emperra – ler outros autores, e outros estilos, ajuda a desemperrar.
Você escreve um pouco todos os dias ou em períodos concentrados? Você tem uma meta de escrita diária?
Escrevo todos os dias, com exceção de finais de semana. No momento estou escrevendo um texto de ficção, e minha meta é ao menos um capítulo por dia. Também coloquei como meta para este ano escrever um artigo acadêmico a cada dois meses.
Como é o seu processo de escrita? Uma vez que você compilou notas suficientes, é difícil começar? Como você se move da pesquisa para a escrita?
Os processos de escrita de ficção e de escrita acadêmica são diferentes. Na ficção, brinco que estou há anos escrevendo um único livro, e que a cada vez que sento para me dedicar a ele surge um livro diferente. E, de fato, nos últimos anos vários contos e ao menos um romance nasceram desse grande tema que parece que não se esgota. O que dispara o início da escrita é a centelha da inspiração, que pode vir de uma peça de teatro, um livro, um filme ou algum episódio de minha vida, seja recente ou não. No caso da escrita acadêmica, a escrita começa quando sou capaz de identificar o problema que me inquieta, e então começo a buscar subsídios para propor uma “solução” para esse problema. Pesquiso o que já foi publicado sobre o assunto e procuro identificar a abordagem de cada pesquisador, identificando padrões de raciocínio e de linhas teóricas. Quando encerro essa etapa, normalmente estou pronta para começar a escrever, e tomo sempre como ponto de partida uma colocação ou premissa que mais se aproxima da visão que eu mesma tenho sobre o tema. Essa costuma ser a espinha dorsal do trabalho, e em torno dela vou tecendo meus próprios comentários e apresentando conceitos e questões correlatas, pensadas por outros autores. À medida que vou costurando o que proponho com as referências que me nortearam, a trilha de meu raciocínio se apresenta e me conduz para o desfecho. Esse processo é semelhante ao que ocorre na escrita de ficção; quando começo uma história, ainda não tenho definido sobre o que será, e mesmo quando consigo delimitar um enredo, é a própria escrita que me conta qual será o destino dos personagens.
Como você lida com as travas da escrita, como a procrastinação, o medo de não corresponder às expectativas e a ansiedade de trabalhar em projetos longos?
Já briguei muito com a procrastinação, e ao longo dos anos minha escrita era marcada por períodos muito produtivos seguidos de total inércia, em que eu deixava o texto “descansando”. Acredito que esse descanso é necessário, mas somente com o tempo aprendi que ele deve ter um prazo pré-definido. A escrita acadêmica me ensinou a ter disciplina também com o texto ficcional, e hoje, além das metas semanais e diárias que me coloco, também estabeleço um cronograma: tantas semanas para escrita bruta, outras tantas para edição, somente uma ou duas semanas para descanso do texto e mais uma ou duas semanas para revisão. É claro que esse cronograma está sujeito a alterações, e se por acaso em um dia em que eu não consigo atingir a meta de escrita, procuro ler no tempo em que deveria estar escrevendo, pois dessa forma continuo imersa no processo criativo. Procuro não boicotar o período que reservei para a escrita com outras atividades – acho que isso é fundamental – ou substituí-lo com tarefas como ir ao banco ou ao supermercado. Escrever é um trabalho, e quando passei a encarar a tarefa como tal, as tentativas de procrastinação diminuíram muito.
Quanto ao medo de não corresponder às expectativas, não vejo saída a não ser domar a própria ansiedade, pois as expectativas mais altas costumam ser as nossas. As cobranças são internas, e o único jeito de vencê-las é tentar: escrever e lançar o que você escreveu ao mundo, preparando-se para não desistir diante de eventuais críticas negativas. Escrever é um exercício, e cada um tem suas próprias motivações para escrever. Se você não estiver preparado para lidar com as críticas, é melhor repensar se o que escreve precisa, mesmo, ser mostrado ao mundo. Escrever um diário, por exemplo, pode ser um exercício terapêutico e de autoconhecimento, e pode ser que após anos escrevendo um diário a pessoa sinta-se pronta para escrever algo público. Mas pode ser também que esse dia nunca chegue, e tudo bem também. O importante, para quem escreve, é identificar suas motivações e o que espera que o ato de ser lido traga para sua vida. Enquanto alguns esperam reconhecimento, outros buscam deixar registrada sua impressão sobre o mundo, que poderá ou não ser compartilhada por outras pessoas.
Quanto à ansiedade de trabalhar em projetos longos, é importante compreender que, após todo o período de escrita, um texto segue um processo editorial com etapas que não podem ser encurtadas, e que mesmo depois de pronto será necessário um tempo para que esse projeto seja divulgado e conhecido pelo público. A forma que encontrei de lidar com isso foi reservar espaço em minha vida para outros projetos, outras metas, que embora também envolvam escrita, têm processos e atores diferentes. A escrita é um processo solitário, e após terminar um projeto gosto de fazer algo completamente diferente, para outros públicos e movida por outros interesses. Isso alivia um pouco a solidão e oferece um descanso dessa imersão na escrita que é necessária para que o cronograma seja cumprido e a ideia saia do papel, mas que consome muito, inclusive emocionalmente.
Quantas vezes você revisa seus textos antes de sentir que eles estão prontos? Você mostra seus trabalhos para outras pessoas antes de publicá-los?
Coloquei como limite três revisões, após a edição da escrita bruta, para que haja um limite. Do contrário, pode-se passar anos revendo uma história. Uma hora precisa acabar, e esse ponto final deve ser dado pelo autor, não pelo texto. Acredito muito no “descanso” do texto, pois sempre olhamos para a história de maneira diferente depois de um tempo. Tenho pessoas para quem mostro o que escrevo quando julgo que estão prontos, deixando claro que as críticas são bem-vindas, mas que provavelmente não serão incorporadas naquele trabalho. Não acredito em textos perfeitos, e sim em textos com personalidade. Quando julgo que um texto está expressando o que eu gostaria que expressasse, procuro não mexer na construção ou no estilo. Por outro lado, tenho pessoas a que mostro o texto quando apenas a ideia inicial está registrada, e através do retorno que essas pessoas me dão consigo identificar buracos ou falhas no roteiro que tracei baseado no que pretendo transmitir.
Como é sua relação com a tecnologia? Você escreve seus primeiros rascunhos à mão ou no computador?
Escrevo no computador, sempre. Por muitos anos tive o hábito de fazer anotações em papel, mas não era produtivo – demandava muito trabalho para depois digitar, e na transcrição eu costumava editar e reescrever praticamente tudo. Aproveitava muito pouco do que estava escrito, e percebi que os tópicos principais que pretendo transmitir com uma história ou artigo ficam impressos muito fortemente em minha mente, então não há necessidade de registrá-los também em papel para que sirvam de roteiro, por exemplo.
De onde vêm suas ideias? Há um conjunto de hábitos que você cultiva para se manter criativa?
As ideias vêm basicamente daquilo que me impressiona, que me inquieta, que rompe a barreira do comum. Pode ser algo banal, mas que por algum motivo me faz olhar o mundo de outra forma, de um jeito que me pareça merecedor de ser contado para inspirar outras pessoas a também olhar o mundo de forma diferente – não do meu jeito, mas do próprio jeito. Acredito que o papel da literatura é levar o leitor a questionar sua existência, suas ações, suas reações, o modo como ele percebe a realidade e nela interfere.
O que você acha que mudou no seu processo de escrita ao longo dos anos? O que você diria a si mesma se pudesse voltar à escrita de sua tese?
Tornei-me mais disciplinada, e aprendi a identificar os elementos que me inspiram e compõem o que escrevo. Se pudesse voltar à escrita de minha tese, diria para me ater ao problema inicial e procurar fechar os olhos para os problemas que se apresentam à medida que você se aprofunda no tema e ensaia sobre ele. Uma tese não é espaço para refletir sobre a humanidade, de forma ampla. A literatura, no entanto, pode ser esse espaço. Se pudesse voltar ao tempo dos meus primeiros escritos, diria que me preocupasse em procurar interlocutores, pessoas que também escrevessem e com as quais pudesse conversar sobre o processo criativo.
Que projeto você gostaria de fazer, mas ainda não começou? Que livro você gostaria de ler e ele ainda não existe?
Gostaria de escrever sobre os últimos anos de vida de um autor do qual gosto muito, a partir dos lugares em que ele viveu. Talvez seja meu próximo projeto. Esse é um livro que eu gostaria de ler, e nunca encontrei.
* Entrevista publicada originalmente em 7 de maio de 2018, no comoeuescrevo.com (@comoeuescrevo).