Sil Schmidt é escritora, poeta, crítica e editora.

Como você começa o seu dia? Você tem uma rotina matinal?
Primeiramente minha gratidão José Nunes, ao site como eu escrevo, pela oportunidade, eu aqui na serra de Minas Gerais ao sabor de um café orgânico um tic tac de um relógio de sala, a chuva de temporada. Na roça na verdade na Rosa dos Ventos onde estou e há 3 anos com exatidão posso dizer o óbvio mas tem gente que não sabe. Acordo com os galos com as galinhas, a sinfonia de mãe terra em plenitude. Estou em região de mata preservada e digo estou, pois em meses me mobilizo para os Andes. Acordar para mim é ritual, não rotina. O ritual de me sentir renovada para as tarefas do dia que costumam ser muitas para um educador -escritor e editor-livreiro. Este tudo junto misturado, multitarefa a que nós mulheres nos sujeitamos. Sinto que sem um café bão… e digo bão pois tem que ser de grão escolhido em torra especial, nem por isso mais caro ou inacessível em especial onde me encontro que é sul de Minas grande produtor de arábico e orgânico de altitude. Sem um queijin um pão integral minhas frutas eu não sou ninguém. Minha rotina é me alimentar bem, me nutrir. Vou em seguida ao sol do dia, aqui vou à horta a uma caminhada um estica aqui estica ali para retornar à casa, arrumá-la já que vivo em solitude. Vou às redes num descanso na varanda, à rede. Sim depois de quase uma síncope por excesso em sala de aula como professora em pré vestibulares, maquinalmente falando de literatura eu sei o que são o estresse, depressão e desejos mórbidos num corpo franzino.
Assim desde 2000 minha rotina é viver e viver bem. Demais – relacionamentos, profissão vem em sintonia, assim como escrever. Com a pandemia este jeito de ser apenas se acentuou.
Em que hora do dia você sente que trabalha melhor? Você tem algum ritual de preparação para a escrita?
Completando a resposta acima- procuro trabalhar então dependendo do objeto- pode ser terminando um romance, um livro em edição, já que me autopublico, e preparos para lançamento, ou apenas navegar na rede que hoje mantenho muitos canais como livreira junto às muitas manas das Letras- procuro trabalhar logo após os exercícios e arrumação da casa, ainda cedo.
Apos o almoço também, e sigo até as 19hs. Um jantar, cama e se necessário acordo-me às 4 horas para o grande exercício da prosa. Contar e romancear exigem total entrega. Daí nem urutau – os pássaros notívagos, os grilos e corujas me atrapalham o raciocínio às muitas leituras dos capítulos anteriores para estabelecer a lógica do todo. Ou não-lógica se for a intenção de linguagem. Para a poesia deixo papel e lápis por toda a casa, nas bolsas pois o poema é compulsivo vem mas quando quer e pode ser um mote a qualquer momento como sabemos. Ficam lá estes papéis à espera de uma palavra, uns versos – uns ritmos e ou imagens. Em puro caos jogados ao leu- e ou em sequência sem qualquer freio-correção. Na poesia eu sou pura pulsão. Pode acontecer durante a madrugada sem problema. Levanto-me escrevo o que pulsa e guardo. Então quando se vê o escritor- o poeta- trabalha 24 horas por dia ano todo, toda vida. Aqui e agora nem ouço mais a chuva não ouço mais o tic e tac do relógio. Eis meu ritual, meditativo, concentrado. Barulhos em excesso ritmos repetitivos me cansam demais, pois para chegar ao lugar da escrita, da poética levei muitos anos de entrega. Daí morar no mato, sem vizinhos no entorno. E usando largas roupas tal Hilda Hilst, zero aperto no peito.
Por vezes o encontro com um inseto ou aracnídeos indesejados me tiram do centro. Mas bem menos do que o barulho da cidade. Dos escapamentos de motos que me enlouquecem, das buzinas dos tagarelas de ocasião com seus celulares à mão. O cotidiano é nefasto para o escritor. No entanto dele fazemos crônicas. Literalmente crônicas. Me afasto de qualquer ritmo repetitivo. Por isso me desloco com frequência. Procurando o inaudito.
Você escreve um pouco todos os dias ou em períodos concentrados? Você tem uma meta de escrita diária?
Como respondi acima, escritores em especial poetas trabalham o dia todo, o ano todo. Já tive que me ausentar de reuniões, de encontros para escrever um poema em pulsão. Os quais eu procuro fazer com certa ordem os que tem lá o número de sequência- canto I, canto II, elegia número 1 elegia número 2 estes eu fico colada no processo. Havia uma amiga que me ligava em plena escrita quase sempre ali no final do dia, quando o poema estava em finalização, nestas interlocuções que faço, eu me irritava já que estava em processo. Pedi a ela que evitasse me ligar até que eu finalizasse, sabia nem quando, o tal o diálogo. Com Rainer Maria Rilke cheguei a 45 cantos, ou mais. Ou seja, perdi a amiga… Eis a solidão do poeta. Do escritor. Não tenho metas rígidas, mas procuro dar ritmo e finalizar tudo que proponho a escrever. Trilogia, contos selecionados. Ensaios. E assim tem sido. Agora me organizo para iniciar o romance III da trilogia: Duty Free (2000-2014) Made in Brasil( 2004-2019). Teço meus livros em forte intencionalidade com o tempo. E o cotidiano que se ajuste a ele. Datas de aniversários, ou feriados estou à parte. Sigo na fonte criativa somente livre de um processo eu me desloco para uma social. Festas literárias, feiras considero trabalho, ponho na agenda.
Como é o seu processo de escrita? Uma vez que você compilou notas suficientes, é difícil começar? Como você se move da pesquisa para a escrita?
Cada livro tem a sua personalidade e tempo também, procuro como disse tecê-lo nessa vibe, e o meu tempo hoje é o do prazer da leitura e da escrita. Mas como dói, mas como cansa o processo quando ele precisa se concretizar. Sentar-se e se dar aquele sentimento por vezes tênue na memória, o papel amarelado na gaveta, o arquivo já perdido. Perco muitos arquivos que seja por conta da mobilidade, excesso ou mudança de meio. Perco e sofro e choro. Sofro muito acredite. Não é difícil começar quando tenho a intuição, defino. a ideia em escaletas em caso de prosa, dou todo uma sequência possível em capítulos e ou temas de contexto e guardo, vou à pesquisa daí quando, sinto-a madura, fervilhando para nascer me sento e aí adeus mundo. Dou todo o vapor ao conteúdo- caso precise viajar- ele fica em processo. Volto leio, vejo as falhas de raciocínio, as questões de estilo. Retorno releio os capítulos mil vezes até o final. Quando finalizo – guardo-o por um bom tempo. Nem revisão nem leitura. Meses, anos após- sério nem acredito que a escrevi quando a ele o arquivo retorno.
Por esse motivo não gosto de me aplicar a prêmios e concursos pois estabelecem metas que não existem em meu processo. E já prometi a mim que nem procuro mais submetê-los em especial aos que exigem laudas e ou caracteres. Sou generosa sou intensa, estes prêmios nunca me contemplam.
Meu movimento é desordem pura. Com consciência. Persistência.
Como você lida com as travas da escrita, como a procrastinação, o medo de não corresponder às expectativas e a ansiedade de trabalhar em projetos longos?
Lá na primeira questão eu pontuei- hoje trabalho sob o signo da energia vital. E mais da expansão da consciência e da respiração e do movimento do prazer; aqui e agora estou inteira. Não há uma palavra que eu escreva que não me faça sentido ou me cause desprazer. Assim tem sido. Não tenho medo algum de não corresponder às expectativas. Mas sinto falta de leitores experientes, de leitores atentos e críticos que me deem real retorno do que faço do que penso do que sinto. A yoga e a meditação me dão grande fluxo de energia psíquica. Travou… então não é, quando vem, vem como num rio. Fluindo à mercê do pensamento. A escrita sabe-se; e isso é lindo. Escrever se escreve. O tempo meu campo de suporte. O chão onde o texto se derrama, espraia-se.
Quantas vezes você revisa seus textos antes de sentir que eles estão prontos? Você mostra seus trabalhos para outras pessoas antes de publicá-los?
A revisão é espontânea durante o processo de escrita, e procuro dar mais ritmo do que atenção às questões de língua, vou fluindo. Depois uma revisão catando milho, antes de ir para a revisora técnica. Dela pra o editor e depois quando o miolo retorna diagramado, antes de ir para gráfica também. Ao chegar a obra impressa o que é uma alegria e um suspense, no mesmo dia leio todo o conteúdo como leitora atenta e exigente. Achado o erro- e eles surgem sempre – eu grifo e grito rsrs.
O livro impresso então ficará selecionado numa pasta com os manuscritos e quando der e puder numa outra edição os erros eu os corrijo. Ouvi sobre erros potentes. Amo os erros e os acertos. Amo. São todos parte de mim. Sinto que tenho perdido a memória gráfica e teórica de alguns termos. Faz parte.
Exatamente agora vou dar um tempo nestas repostas da entrevista, ler tudo que escrevi para depois com mais ou menos ideias do que respondi seguir para as demais. Este tempo o corpo pede. E eu não sou mais nenhuma jovem. Cansei-me eu paro. Continuo quando der e quando puder.
Retornando: não peço a ninguém para ler previamente. Quando isso acontece este leitor já estou prospectando o para ser o orelhista ou fazer o prólogo do mesmo. Por vezes esta escolha leva anos. A orelha de meu romance de estreia entre revisões translíngue e a orelha acredite foram dezoito anos. Iniciei o em 2000. A orelha saiu em 2018 para a edição impressa. Mas ficou perfeita. Um presente. De vida.
Como é sua relação com a tecnologia? Você escreve seus primeiros rascunhos à mão ou no computador?
Dois dias depois, mesmo lugar e quase na mesa hora. Continuação… Sou da área da Comunicação e Semiótica assim não tenho problema algum com a tecnologia nem penso que ela salvará o mundo de suas contradições e mazelas, mas nos une, assim como nos separa (vide fake news anti democráticos durante eleições de Trump nos EUA e Bolsonaro no Brasil em 2018). A tecnologia facilita tudo se corretamente usada, e como se sabe nos transforma ao mesmo tempo que recupera segundo afilosofia da linguagem a importância de velhos meios; por excesso hoje, de dígitos fui perdendo a caligrafia o que me deixou muito chateada. Fiz taquigrafia inclusive nos idos dos anos 70.
Não escrevia mais em cadernos como fazia, em lousas de salas de aulas do interior deste imenso país. Trabalhei por mais de 16 anos em salas de aula, com lousas, giz apagador até a chegada dos computadores que para mim se deu nos idos de 1990.
Lembro-me que quando criança, eu dava aulas a meus irmãos em pedaços grandes de papelão. Abria uma caixa colava à parede do quintal, eles sentados em cadeirinhas, eu rabiscava letras, sílabas e palavras com pedaços de giz… nestes papelões e apagava com pano para usá-los depois. Uma alegria pensar nisso hoje. Procuro também escrever em papel de diversas gramaturas com diferentes suportes, meus manuscritos são mesmos manuscritos…rsrs sem querer ser redundante.
Por questões de viagens passei a usar o notebook hoje escrevo muito bem num teclado mínimo de um celular. Cansa a vista, cansa o dedo indicador o mais usado. Mas é isso, o corpo vai se adequando aos meios. Segundo os filósofos da comunicação já somos uma aldeia global. E também metamorfoseados por estes eletrônicos; homens tecnológicos. Não fujo à regra. Mas reconheço facilmente os meus limites. Já tive estresse por excesso. Não podia tocar no celular. Hoje uso um suporte para um certo distanciamento do mesmo de sua energia. E tem sido perfeito a energia eletroestática diminuiu.
Prefiro ler no livro físico ao digital. Embora eu tenha me lançado primeiramente no digital. O selo Símbolo Digital- foi desenvolvido em 2012 para dar escopo à minha produção textual imensa. Retrocedi pois o Brasil estava meio fora de timming para o digital, foi quando surgiu em 2017 o selo Símbolo Artesanal para os impressos e afins.
Para divulgar meus livros uso todos os meios, fotografias, desenhos imagens coladas um verdadeiro caleidoscópio de possibilidades. Canvas, Pinterest, Picsard… eu fico horas aprendendo, pesquisando novas tecnologias para este fim. É preciso é necessário.
Ou seja, não tenho problema algum. No entanto em 1997 eu iniciei meu primeiro romance ainda no papel, em folhas de caderno. Juntei-as e somente mais tarde fiz do texto um híbrido e daí eu já possuía um notebook, isso se deu em 2000; aqui no Brasil estes eram poucos e caros. Tive o privilégio de poder ter um. E assim foi meu início e tem sido. Meio papel meio dígito.
De onde vêm suas ideias? Há um conjunto de hábitos que você cultiva para se manter criativa?
Sou da guestalt – da experiência adquirida na práxis, e se vou à teoria é para que esta respalde minha percepção meus sentidos. Adoro vivenciar o que sinto e penso antes de conceituar. Daí que vivo de modo muito intenso, em movimento holístico de cima para baixo de baixo para cima. Para os lados. Meu mais recente livro um infantil tem o título: Lente de Aumento. Este olhar e vivenciar que carrego também buscando o conhecimento por muitos olhares, em fundo. Sem obstáculos lembrando Bachelard. Minhas ideias vêm de minhas viagens em especial para a educação em sustentabilidade desde 2000, também de relacionamentos internacionais translíngue. Acredito muito que somos o que escrevemos e o que escrevemos nos forma por sua vez. Conheci os movimentos da Yoga transcendental em viagens para os EUA em 2002 e nunca mais me apartei destes. Isso me dá uma maleabilidade com o texto e contexto impressionantes. Uma sensibilidade extraordinária que carrego pro texto. O livro de contos EnCONTrOS- uma cartografia do tempo. Lançado em 2019 me coloca em estado de vigília em estado REM – para dali o eu lírico extrair sentido sublime. Subliminar. Dos sonhos ir ao escrever. Ainda insone.
A imagem em ação, ou seja, a imaginação é este universo pulsando de dentro para fora de fora para dentro. Em continua ação, por vezes estas imagens vêm à mente de modo fluido corrente, eu os coloco no suporte, papel ou arquivo digital de modo muito fácil. O infantil veio inteiro sem bloqueio algum. Era cedo ainda, levantei-me papel à mão ele simplesmente escorreu.
O que você acha que mudou no seu processo de escrita ao longo dos anos? O que você diria a si mesma se pudesse voltar à escrita de seus primeiros textos?
Tenho pensado nisso ultimamente. Quero retornar ao texto poético mais sintético. Simples como a um intenso haicai. Mas não quero o haicai, quero a síntese de meus primeiros poemas. Nem chistes, nem trocadilhos. A união de uma forma esteticamente simples, e intensamente forte. Estou nesse caminho. E eu diria: “não pare Sil. Don’t stop now. Romances e contos como sabemos exigem textão… não seriam romances, mesmo sabendo que estes permitem diálogos com a poesia. Estou lendo Anne Carson e ela faz exatamente isso um poema romanceado em Autobiografia do vermelho.
Estou em meu livro mais exigente- que me coloca em práxis teórica em plena guestalt- eu molusco- eu casulo de mim: Casa-Casulo 2022.
Acho que neste sentido unirei tudo. E penso também que neste livro em construção- eu gostaria que fosse num livro aberto em construção constante, o devir – o livro dos livros imenso como a noite. À Blanchot. Aguardemos.
Que projeto você gostaria de fazer, mas ainda não começou? Que livro você gostaria de ler e ele ainda não existe?
O projeto de unir todos os meus poemas em um só livro. Estão esparsos, dispersos e desordenados, muitos perdidos e largados. Isso me deixa imensamente triste. Inacabada. O livro que eu gostaria de ler ele não existe, mas todos que existem eu os amo ler. O mistério é sempre mistério a utopia assim como.
Procurar no nada o tudo é um motivo para a existência. E assim que venham ou ele caia da prateleira em meu colo- e isso eu adoro espero poder ter acesso a este exemplar único, peculiar.
De qualquer maneira todos que lidos são lidos como aquele livro que não existira, e passou a ser. Isso-passou a ser.
Mais uma vez grata amigos pela leitura. Eu não no mesmo lugar nem no mesmo suporte. Agora na pequena tela de um celular. Exatamente às 5h e 21 min quando uma ave lá fora anuncia se. Uma ave de meta corta o espaço saindo de BH para São Paulo. A chuva não para.