Shauara David é escritora.

Como você começa o seu dia? Você tem uma rotina matinal?
Vivo uma rotina fielmente pautada no cuidado; da casa, do jardim, da minha filha, das gatas… Começo meu dia sobretudo, feliz. Acordar é a sensação maravilhosa de estar e ser. Durmo bem cedo e geralmente acordo pela madrugada, o silêncio que impera neste horário é irresistível, permite acessar perspectivas novas, pensamentos mais profundos e autoanálises mais claras. Quase sempre vejo o sol nascer, faço yoga para saudar ao sol, em seguida molho e contemplo o jardim, acendo um bom incenso. Gosto de conversar com as plantas, as cores e flores me cuidam. O decorrer do dia é surpresa, não planejo além dos próximos instantes, vou seguindo o fluir universal e social tentando aproveitar ao máximo o dia, resolvendo as pontas soltas, produzindo, lendo e descansando. Quando o sol se põe, vou minguando junto e começo o preparo para dormir.
Em que hora do dia você sente que trabalha melhor? Você tem algum ritual de preparação para a escrita?
Escrever é um presente recebido do além, uma força maior, uma voz conduzindo e insistindo para nascer. Não tem hora nem motivo. Muitas vezes essa voz aparece quando estou quase dormindo, e persiste até eu passar para o papel, mas é durante o dia que estou mais ativa para trabalhar os versos. Costumo manter a redoma da casa limpinha como manutenção diária, e de certa forma também ritualística, já que realizado os afazeres, deixo a mente mais livre e confortável para concentrar na construção de um poema, por exemplo, ou na revisão de algum livro.
Você escreve um pouco todos os dias ou em períodos concentrados? Você tem uma meta de escrita diária?
Diariamente absorvo a poesia; da surrealidade, da atemporalidade, da infinitude, do absurdo, do deslumbre, ela está em tudo, é a própria magia da existência, mas não necessariamente escrevo. Há fases intercaladas entre a urgência e quietude, a primeira é uma sangria desatada, e escrevo como se fosse morrer a qualquer instante, na outra apenas observo e absorvo, sem escrever, só sentindo e captando o sentimento para talvez, transformar em versos. Minha meta diária é fluir nas emoções brandas, e continuar navegando.
Como é o seu processo de escrita? Uma vez que você compilou notas suficientes, é difícil começar? Como você se move da pesquisa para a escrita?
Meu processo de escrita é simplesmente viver, tarefa por si, difícil, porém surpreendente. Vou produzindo e compondo os poemas na cadência das horas, e eles vão firmando suas personalidades. Cada livro tem seu contexto histórico/emocional, entre publicados e os ainda não, tem uns 17. É preciso captar o invisível para concretizar o sensível, expor sensações para absorver toda a verdade, é necessário coragem ao doar o íntimo entendimento recebido do universo ao mundo. O sentimento vai movimentando a escrita, e a pesquisa vai somando, agregando e amadurecendo o verso.
Como você lida com as travas da escrita, como a procrastinação, o medo de não corresponder às expectativas e a ansiedade de trabalhar em projetos longos?
Nada disso me acomete. Se não for na espontaneidade, não há sentido de ser arte. Escrevo porque preciso, a literatura me salvou à vida e isso supre a necessidade de interação, na missão de doar sentidos e sentimentos, doridos ou alegres, com o mundo inteiro, sem expectativas nem ansiedade, apenas me empenho com todo amor no que faço agora, o melhor presente, e essa verdade ganha vida e corre mundo afora, fora de controle, sem a pretensão de fama ou status, pois importa mesmo o caminho e cada detalhe ao redor, na originalidade da criação. Tempo é o Deus misterioso cuidando e tecendo cada coisa na hora propícia, merecida, cultivada, e inconscientemente escolhida, portanto não há preocupação, já que tudo flui perfeito.
Quantas vezes você revisa seus textos antes de sentir que eles estão prontos? Você mostra seus trabalhos para outras pessoas antes de publicá-los?
Reviso incansavelmente enquanto construção; altero, releio, apago, reescrevo e mesmo quando sinto que estão prontos, eles podem se transformar com o tempo, com as novas experiências, vão se modelando na própria maturidade expressiva. Transmutar uma vírgula, uma expressão clichê, uma palavra repetida, há sempre algo para aprimorar. Gosto de pedir opinião a alguém que está no contexto mais íntimo, ou então já publico na página do site Recanto das Letras, onde é possível ser lida e comentada por pessoas que jamais conhecerei, e aliás, os elogios são bem vindos, mas aprecio principalmente as críticas, pois apontam uma perspectiva nova e contribuem ao aperfeiçoamento, tão infinitamente construído junto ao aprendizado.
Como é sua relação com a tecnologia? Você escreve seus primeiros rascunhos à mão ou no computador?
Tenho sempre perto um caderninho companheiro onde os rascunhos urgentes e aleatórios são feitos, ali também anotações diversas do que preciso lembrar. Tenho necessidade de papel e caneta desde que percebi que ali melhor me expresso, e fielmente sou melhor compreendida. Em algum momento transcrevo para o word, num arquivo chamado “Poemas excluídos, duvidosos e inacabados” e em instantes ou anos, volto ao trabalho de reconstrução e aperfeiçoamento do poema, até o momento de maturidade para se encaixar em algum livro. Esse arquivo é um limbo guardando umas cinquenta páginas de textos em processo gestacional. Minha relação com a tecnologia é básica e contínua, e embora timidamente, contribui bastante na divulgação dos meus escritos.
De onde vêm suas ideias? Há um conjunto de hábitos que você cultiva para se manter criativa?
Minhas ideias vêm dos sentimentos, da curiosidade, dos detalhes, da vivência… A vida é uma literatura fantástica, cada dia uma página, uma hora lágrima, outra riso. Infinitos absurdos e encantos, entrelaçada de almas e histórias, sensações adquiridas de leituras; Gabriel García, Clarice Lispector, Carlos Drummond, Manoel de Barros, Mia Couto, Marize Castro, entre tantos deleites proporcionados. Dos anônimos aos clássicos, do ínfimo caco ao monumento, vou além da superfície para sondar o que pensa uma pedra, a idade do vento, a temperatura das cores, desentender cada milagre inefável da existência, que aliás, por si só, já é um conjunto de estímulos…
O que você acha que mudou no seu processo de escrita ao longo dos anos? O que você diria a si mesma se pudesse voltar à escrita de seus primeiros textos?
A mudança é constante, cada coisa no tempo certo. Nada mais incrível do que a maturidade! Do primeiro ao último só evolução, aprendizado, experiência e gratidão. Cada etapa é igualmente importante, e o ciclo é eterno e atemporal. Todos temos uma missão para abraçar, e se a vida não tem portas de saída, ao menos podemos torná-la mais bela, e só faz sentido se edificado no amor, isso é poesia, a missão que dá sentido à minha história no mundo. Diria que quanto mais difícil é a estrada, mais recompensadora é a vista, cada pedra no meio do caminho é colecionada para enfeitar a viagem, podendo até construir um castelo. Sinto hoje que tudo realmente vale a pena.
Que projeto você gostaria de fazer, mas ainda não começou? Que livro você gostaria de ler e ele ainda não existe?
Tudo está iniciado, aguardando o fluxo. Enquanto a vida permitir, estarei na dança, com a infinita possibilidade de reconhecer e recriar, fazendo o que propõe o caminho, redescobrindo a surpresa dos instantes, lendo nas entrelinhas do agora o livro que ainda não existe…