Sérgio de Castro Pinto é poeta.
Como você começa o seu dia? Você tem uma rotina matinal?
Lembrando-me, às vezes, de um poema que escrevi quando completei quarenta anos. O título é “no quadragésimo assalto”, embora já esteja no septuagésimo segundo e não pense em desistir, malgrado o tom pessimista do eu lírico, fingidor contumaz, recalcitrante: quando abro/ a torneira da pia// e resgato/ d´água/ o rosto// dos meus/ dias/ correntes, // a toalha/ o estanca:// sonadoboxeur/ beijando/ a lona, // sou o meu/ segundo/ pedindo-me/ desistência// no quadragésimo/ assalto/ da existência.
Posteriormente, passo à leitura dos jornais, para mim indispensável, apesar de lamentar a circunstância de o poema “papel de jornal”, do meu livro “O Cerco da memória” (1993), não ter perdido a sua atualidade se estabelecermos uma relação entre o contexto em que ele foi escrito – Collor, Presidente da República – e o de hoje – Bolsonaro, o miliciano, Presidente –, este último, sem dúvida, muito mais cruel, crudelíssimo: no papel de jornal/ cabe o presente/ e o seu papel/ de estocar embrulhos. // o presente/ e o seu papel/ de estocar entulhos. // no papel de jornal/ transporto o presente/ e o seu papel/ de estocar esbulhos. // o presente/ e o seu papel/ de provocar engulhos. // no papel de jornal/ cabe todo presente. // o presente/ e o seu papel/ de sonegar futuro.
Em que hora do dia você sente que trabalha melhor? Você tem algum ritual de preparação para a escrita?
Sou notívago por natureza. Durante o dia, na condição de voyeur, coleto e recolho o material que, à cata de poesia, pretendo utilizar numa longa jornada noite a dentro. Ultimamente, porém, estou chegando à conclusão de que me falta preparo físico para permanecer horas a fio no gabinete, no escritório, em busca das palavras. Foi quando resolvi lançar mão de um recurso que, quero crer, muitos utilizam: conservar, junto à mesinha de cabeceira, um bloco de papel no qual registro as ideias, o embrião de poemas inconclusos, disformes, que povoam as zonas nevoentas do consciente ou do inconsciente.
Você escreve um pouco todos os dias ou em períodos concentrados? Você tem uma meta de escrita diária?
Sou indisciplinado para escrever. Na esteira de Manuel Bandeira, não costumo “forçar a mão”, embora acredite que muitos poemas, aparentemente criados à minha revelia, eu os tenha trabalhado ao nível do inconsciente. Com efeito, escrever não significa apenas o poeta municiar-se do lápis, do papel, ou se postar à frente da tela do computador. Muitas vezes, o insight, a epifania, antes de serem dádivas dos deuses, talvez sejam frutos de um labor que se cumpre inconscientemente, sem que o poeta se dê conta. Quanto aos meus poemas, jamais me foram servidos de bandeja, posto que, para realizá-los, quase sempre comi e como o pão que o diabo amassou. Mesmo um poema como “a zebra”, aparentemente surgido de forma abrupta, desconfio tê-lo elaborado em algum lugar dos confins, dos subúrbios de mim mesmo: a zebra/ é a edição/ extra/ de um cavalo/ que virou/ notícia.
Como é o seu processo de escrita? Uma vez que você compilou notas suficientes, é difícil começar? Como você se move da pesquisa para a escrita?
Quando escrevi a minha dissertação de mestrado e a minha tese de doutoramento, sempre extrapolava os pressupostos teóricos previamente estabelecidos. Com efeito, na medida em que o texto foi evoluindo, observei que a obra do autor objeto da análise desvelava novos ângulos até então indevassados. E tal constatação, obviamente, suscitou novas sendas, novos caminhos a serem percorridos por mim para uma melhor apreensão da lírica de Manuel Bandeira e de Mario Quintana, corpus, respectivamente, da minha dissertação de mestrado e da minha tese de doutoramento.
Quanto à minha poesia, procuro escrevê-la de modo a arrancar, pela raiz, as flores da retórica espargidas pelo orvalho da inspiração, não obstante acredite nessa última, desde que o poeta saiba conter os exageros das efusões meramente sentimentais.
Como você lida com as travas da escrita, como a procrastinação, o medo de não corresponder às expectativas e a ansiedade de trabalhar em projetos longos?
Lido com as travas da escrita aos trancos e barrancos, apesar de nesses mais de cinquenta anos de poesia ter amargado muitos períodos de abstinência, de esterilidade criativa, chegando a me considerar um poeta bissexto. Aos poucos, porém, sem uma explicação plausível, o filão poético, que antes parecia adormecido, até mesmo extinto, desperta e põe-se em ebulição, embora eu não me situe entre os poetas “contumazes”, segundo a classificação de Manuel Bandeira. Considero, no entanto, que a minha produção lírica dá para o gasto, do contrário a minha sensação de incompletude, de “não estar de todo”, seria bem maior, quase insuportável.
O meu poema “escrever/não escrever”, também de “O Cerco da memória”, de 1993, aborda esse impasse que atinge a maioria quase absoluta dos escritores: “escrever é um suicídio branco. / um consumir-se/ no fogo brando das palavras. // não escrever, um suicídio em branco. / um consumar-se sem metáforas”.
São sempre difíceis os momentos que antecedem o lançamento de um livro, uma vez que, quando libertamos as palavras, elas não têm mais retorno, torna-se impossível recolhê-las, ajuntá-las. A expectativa quanto à repercussão de um livro é sempre angustiante, mais ainda quando o poeta deixa de ser um “jovem poeta”, epíteto que, de algum modo, o exime da responsabilidade de possíveis equívocos e malogros.
Quantas vezes você revisa seus textos antes de sentir que eles estão prontos? Você mostra seus trabalhos para outras pessoas antes de publicá-los?
Não chego a ser um O. G. Rego de Carvalho – ficcionista, infelizmente, relegado ao limbo da literatura brasileira –, que, sempre à cata do inalcançável perfeccionismo, a cada nova edição de “O Rio subterrâneo” ou de “Ulysses entre o amor e a morte”, atento aos mínimos detalhes, munia-se de uma lupa e acrescentava ou retirava até vírgulas do texto, mostrando-se possesso, irascível, quando os amigos mais chegados não se davam conta de suas intervenções liliputianas. Não chego a tanto, mas os poemas que escrevi a respeito dos meus aniversários, por exemplo, somente os dei como concluídos– se é que alguma coisa é concluída – anos depois de iniciados.
As primeiras versões dos meus poemas somente as submeto à leitura dos meus familiares, pois “roupa suja se lava em casa”.
Como é sua relação com a tecnologia? Você escreve os seus primeiros rascunhos â mão ou no computador?
A minha geração – a Geração 60, conforme a denominou o poeta, crítico e saudoso amigo Pedro Lyra – partia do princípio de que o poema deveria ser fruto de um trabalho artesanal. E o trabalho artesanal é feito, prioritariamente, com as mãos. Daí, desde a versão primeira à definitiva, escrever o poema com a mão, conservá-lo sempre à mão ora como um animal selvagem que eu precisasse domesticar, ora – a depender das circunstâncias – torná-lo ainda mais feroz e arisco. Numa derradeira etapa, já o considerando na sua forma definitiva, vou ao computador e o digito para aprovar ou não a sua disposição gráfica sobre a textura do papel.
De onde vêm suas ideias? Há um conjunto de hábitos que você cultiva para se manter criativo?
As minhas ideias ora vêm, ora vou buscá-las. Em ambos os casos, contudo, parto do pressuposto de que o poema – segundo Mallarmé – não é feito com ideias, mas com palavras: “nem sempre o poeta/ ronda o poema/ como uma fera a presa. // às vezes, fera presa e acuada/ entre as grades do poema-jaula, // doma-o o chicote das palavras”. (poeta x poema”)
Mas não só com palavras, obviamente, pois poemas precisam também de oxigênio e, para tanto, não devem permanecer apenas no espaço muitas vezes asfixiante e claustrofóbico do discurso metalinguístico. É salutar que o poema também saia do casulo e se impregne da “marca suja da vida”.
A leitura é o meu principal hábito, pois através dela estabeleço um diálogo com outros autores cujos ensinamentos me são da maior valia para superar determinados impasses que surgem no momento em que escrevo o poema. Daí o meu tributo aos livros: “nocturne lecteur,/ mon semblable,/ mon frère:// livros acendem luzes!// borges ou baudelaire/ consome-nos energia.// custa uma fábula/ – em volts –/ a leitura// de p(Rosa) e de (Poe)sia”. (poema “noturno leitor”)
O que você acha que mudou no seu processo de escrita ao longo dos anos? O que você daria a si mesmo se pudesse voltar à escrita de seus primeiros textos?
A professora, crítica e ensaísta, Nelly Novaes Coelho, num texto publicado no “Suplemento Literário Minas Gerais”, observou: “(…) Nos poemas de ‘Domicílio em trânsito’, correspondentes aos anos 70/80, reencontramos as mesmas linhas de força da poesia inicial…” A verdade é que alguns núcleos temáticos – animais, objetos, etc. –, eu os desenvolvi desde “Gestos lúcidos” (1967), meu livro de estreia, até o mais recente: “A Flor do gol”, 2014.
Quanto à linguagem, procurei diferençá-la, sobretudo, da dicção de João Cabral de Melo Neto, que marcou profundamente toda uma geração de poetas brasileiros. Para tanto, procedi de modo a incorporar o humor e a ironia aos meus poemas, ingredientes que, pelo menos à primeira vista, não compõem a antilira mineral, o discurso a contrapelo, , mas sensibilíssimo, do autor de “A Educação pela pedra”. E creio que logrei um relativo êxito nessa tarefa, não a ponto de conquistar uma linguagem pessoal, uma vez que escrever consiste num procedimento dialógico, numa conversa a muitas vozes que ora se rejeitam, ora se assimilam, formando um burburinho no qual fica difícil identificar onde começa a voz de um poeta e onde termina a de outro. Em última instância, desejo ser apenas um simples inquilino da Torre de Babel em que se transformou a poesia brasileira contemporânea, o que é bom, salutar, principalmente por evitar discursos hegemônicos e monocórdios.
O que daria a mim mesmo se pudesse voltar à escrita de meus primeiros textos? Os mesmos percalços que enfrentei para poder saborear as pequenas conquistas alcançadas. Hoje, aos setenta e dois anos, lamento a juventude perdida que, infelizmente, a experiência não substitui, pois esta, como já disse o memorialista Pedro Nava, é um carro velho com os faróis iluminando para trás, enquanto na frente reina a mais completa e absoluta escuridão. Em todo caso, creio que a perseverança, hoje, talvez seja o vocábulo mais preciso para substituir as efusões da juventude perdida. Perdida? Não, pois de algum modo ela ainda permanece na devoção à palavra escrita, na profissão de fé na poesia.
Que projeto você gostaria de fazer, mas ainda não começou? Que livro você gostaria de ler e ele ainda não existe?
O projeto do meu próximo livro de poemas. O meu livro de poemas.