Selminha Ray é escritora, transcritora e graduanda em Letras pela UFRRJ.

Como você começa o seu dia? Você tem uma rotina matinal?
Começo sempre olhando ao redor. Considero importante olhar ao redor, sentir o corpo, me ambientar com o meu corpo, com a casa e com o mundo, antes de levantar de fato. Quando percebo que eu sou eu e que estou de fato acordada e viva para encarar o mundo, faço as atividades comuns. Hoje, trabalhando em casa, é um pouco mais fácil de manter esse ritmo ao acordar.
Em que hora do dia você sente que trabalha melhor? Você tem algum ritual de preparação para a escrita?
Adoro fazer atividades durante o dia, mas, sem dúvidas, trabalho melhor à noite. Minha concentração é maior nesse período.
Não tenho um ritual que sempre faço, mas gosto de estar bem comigo para escrever, além de preparar o ambiente. Não gosto de escrever em ambientes muito bagunçados. A não ser que seja a minha bagunça organizada, rs. Então, tendo um ambiente confortável, um papel e uma caneta, escrevo tranquilamente.
Você escreve um pouco todos os dias ou em períodos concentrados? Você tem uma meta de escrita diária?
Escrevo diariamente algum texto devido a faculdade – curso Letras/Literaturas na UFRRJ. Acabo escrevendo alguns ensaios acadêmicos, estou focada no TCC atualmente e também mesclo a escrita literária nesses textos, até porque os professores já sabem que sou escritora de poesia. Quando tenho prazos a cumprir, estabeleço que preciso entregar o texto pronto até o dia determinado, não importando como sejam os processos que me levarão até ele. Tento ao máximo respeitar meus limites para isso.
Em relação à escrita literária propriamente dita, não tenho uma frequência pré-estabelecida ou uma meta. Definir uma meta para a escrita acaba parecendo um tanto utilitarista para mim, daí já não me agrada tanto.
Quero que a escrita poética/literária seja um instrumento que sempre me mova, me leve a sentir algo – seja esse sentimento pungente ou sereno – então, quando quero parar e escrever esse tipo de texto, faço uma preparação mental com música, meditação ou preparo o ambiente em que estou de alguma forma para que assim eu produza com maior facilidade.
Como é o seu processo de escrita? Uma vez que você compilou notas suficientes, é difícil começar? Como você se move da pesquisa para a escrita?
Meu processo de escrita depende de como meu corpo e minha mente estão. Acredito muito no encantamento de que falam os teóricos Luiz Antonio Simas e Luiz Rufino no livro “Fogo no Mato: A ciência encantada das macumbas”. Vivo o que escrevo, mesmo quando a história que conto não é minha (individualmente falando). Quando carregamos ancestralidade e temos noção dela, as nossas práticas, atividades e ofícios também são permeados pelas experiências dos que vieram antes. Seu Ailton Krenak fala a respeito disso. Nesse sentido, posso ficar um bom tempo sem escrever nada e, em um único dia, escrever muitas páginas. Mas antes que o dia da escrita chegue, ouvi muita música, tive contato com arte de outros artistas, brinquei com as crianças de casa, tirei fruta do pé. A partir disso, entra o conceito de Feitiço, de outra teórica, a professora Carla Munzanzu: meu processo de encantamento torna-se Feitiço quando passo a minha vivência para essa escrita, aí sim sinto que ela se realiza, que é capaz de tocar o outro. Só aí eu a solto para o mundo.
A minha escrita vem atravessada de tudo isso. Para mim, é um processo que vai além do compilar ideias e escrevê-las. Essas ideias só vão pro mundo quando eu estou preparada para soltá-las. Dessa forma, a questão de passar a pesquisa para a escrita está muito atrelada à organização do ori, da cabeça.
Ainda assim, acho que começar qualquer escrito requer coragem e nem sempre é tranquilo. Exercitar o ofício é importante.
Como você lida com as travas da escrita, como a procrastinação, o medo de não corresponder às expectativas e a ansiedade de trabalhar em projetos longos?
Quando se é uma mulher negra nascida nos anos 1990, você aprende muito cedo a lidar com o racismo epistêmico; dessa forma, a trava na escrita já parte da inferiorização atribuída a um corpo negro que escreve. A única opção que resta é insistir e continuar tentando. Eu escrevo poemas desde os meus 14 anos e hoje, aos 29 anos, estou em um momento em que me afirmo escritora, de literatura brasileira negra e estou mais cascuda em relação ao que vem de fora acerca do meu trabalho com a escrita.
Fiz essa contextualização para dizer que acho de extrema importância que toda pessoa que escreve – sobretudo as não brancas – conheçam a si próprias. Expectativas, ansiedade, comparação com outras pessoas… são armadilhas do sistema capitalista para nos manter em um lugar de subalternidade, em que nos sentiremos mal por não produzirmos com a frequência que acham que deveríamos. Aprendi com a minha ancestralidade africana e indígena que respeitar meu corpo, minha mente e meus processos é fundamental para que eu utilize da escrita como ferramenta artística, de trabalho ou seja qual for a finalidade.
Um bom texto pode ser escrito em um dia, uma semana, um ano ou 10 anos. Quando conhecemos a nós mesmos, assim como nossos limites e nossos processos, fica cada vez menos caótico lidar com os prazos e demandas. Os hiatos deixam de ser apenas travas e passam a ser vistos como processos de respeito ao nosso próprio tempo.
Quantas vezes você revisa seus textos antes de sentir que eles estão prontos? Você mostra seus trabalhos para outras pessoas antes de publicá-los?
Ah, eu sempre fui bem autocrítica. Gosto de ler meus textos várias vezes antes de publicá-los em algum lugar. Mas também não tenho um número exato em relação a essa quantidade de vezes. Acredito muito que, para lidar bem com a escrita, precisamos exercitá-la. Não vejo a escrita como um dom somente. Para escrever bem – e aqui não estou falando de domínio da variante padrão da língua portuguesa e sim, sobre escrever sem que isso seja um martírio – é necessário, ao meu ver, primeiramente, escrever. Aprendi isso com a escritora Carolina Maria de Jesus e, desde então, tem feito bastante diferença na maneira com a qual lido com meus textos.
É importante lembrar sempre que um texto publicado é, antes de tudo, um texto selecionado, revisado, editado, e que saiu do meio de outros que não foram selecionados, que foram desconsiderados por ainda não estarem prontos. E nada nasce pronto. Nem texto, nem escritor. Você pode mostrar seu texto para várias pessoas e ter retornos positivos, mas ele só vai estar pronto quando você sentir que está.
Sobre mostrar o texto para outras pessoas, depende bastante do texto. Costumo mostrar alguns textos com referências específicas para pessoas que entenderão aquelas referências e verão se estão sendo usadas de maneira adequada, e também quando quero outras opiniões a respeito do ritmo do texto e alcance dele, por exemplo. Geralmente quem cumpre esse papel são algumas pessoas leitoras da minha família e amigos que cursam Letras.
Como é sua relação com a tecnologia? Você escreve seus primeiros rascunhos à mão ou no computador?
Sou muito mais adepta do caderno e da caneta do que dos aparelhos eletrônicos, mas também guardo meus textos na nuvem do computador. Assim, vai depender de onde eu estou para ver qual ferramenta utilizarei para escrever. Considero as duas formas muito válidas. Para quem é escritor, mas tem trabalho formal e passa muito tempo no transporte público, utilizar o celular para escrever pode facilitar, por exemplo.
De onde vêm suas ideias? Há um conjunto de hábitos que você cultiva para se manter criativa?
Como disse antes, tudo o que vivo transborda na minha escrita, sejam experiências individuais ou coletivas, enquanto uma mulher negra. É o que dona Conceição Evaristo chama de escrevivência. As narrativas estão nas conversas com as nossas mais velhas e mais novas, nas experiências do vizinho que encontramos na padaria e compartilha uma história… Minhas ideias vêm do mundo.
Hábitos que me mantém pensando são os de ouvir música, assistir produções de audiovisual, ler, ir a exposições, ver fotografias… Ter contato com outros tipos de arte faz com que eu queira escrever. Minha última poesia publicada, na antologia “Literatura Negra Feminina: Poemas de Sobre(Vivência)”, organizada pelo coletivo Mjiba, foi escrita a partir de um documentário enviado por um companheiro artista. Me encanta como a arte circula e se multiplica. Trabalhos que me inspiram bastante são os dos artistas Gabriel Frank, Márvila Araújo, Vicente Costa, Thamires P., Matheus Ribs, Rebeca Síntique; além das muitas músicas que ouço como as do Baiana System, de Juçara Marçal, Jéssica Ellen… Poderia passar o dia citando inspirações aqui. rs
O que você acha que mudou no seu processo de escrita ao longo dos anos? O que você diria a si mesma se pudesse voltar à escrita de seus primeiros textos?
Sem dúvidas o que mudou foi a minha segurança. Com o tempo, fui trabalhando para perder a insegurança de ser lida e não agradar. Na parte mais prática da escrita, mudou também a forma como eu me aproprio dela. Antes eu esperava mais pela inspiração, hoje eu trabalho a inspiração, moldo, lapido, brinco com as palavras, com a linguagem, com a forma do texto. Minhas temáticas também mudaram bastante, uma vez que eu passei a conhecer mais a mim mesma e reconhecer a minha existência como política.
Se fosse possível voltar no tempo, me presentearia com livros de escritores negros, indígenas e LGBTQIA+. Reconheço que sou escritora porque sou leitora e leio desde muito nova. Por não ter condições financeiras de comprar os livros que meus amigos liam na época da infância/adolescência, como Harry Potter, por exemplo, parti para a literatura canônica que encontrava em livros didáticos, como Carlos Drummond de Andrade, Cecília Meirelles, Álvares de Azevedo, entre outros. Apesar de ainda hoje gostar da literatura desses que citei especificamente, a escrita deles não foi suficiente para me trazer identificação ou potencialização em relação às letras. Foi a partir das autoras negras que passei a me reconhecer enquanto possível escritora, por exemplo. Carolina Maria de Jesus e dona Conceição Evaristo têm papel fundamental nesse processo. Por isso, acho que seria bacana que a garota que eu fui tivesse representatividade e não precisasse passar por processos tão difíceis relacionados a sua arte.
Que projeto você gostaria de fazer, mas ainda não começou? Que livro você gostaria de ler e ele ainda não existe?
Gosto de projetos coletivos e não comecei alguns por falta de tempo. Tenho muita vontade de trabalhar com crianças e jovens negros em alguma atividade que envolva livros. Acredito mesmo que a relação entre livros e pessoas pode levar esse país para outra direção.
O livro que eu gostaria de ler, já existe, eu já li e se chama “Um Exu em Nova York”, da escritora mineira, Cidinha da Silva. Ganhei de presente de uma amiga querida e li super rápido. É um livro de contos que eu acho sensacional. Nunca li nada igual e acredito ser necessária muita concentração e leitura prévia de mundo para entendê-lo. No mais, se pudesse, leria todos os livros do mundo. Os livros abriram as portas de outros mundos para mim, desejo que cada ser humano possa sentir essa sensação de liberdade pelo menos uma vez na vida.