Saulo Costa é escritor e graduando em psicologia pela Universidade Federal da Bahia.

Como você começa o seu dia? Você tem uma rotina matinal?
Eu sou estudante do 7º semestre do curso de Psicologia na Universidade Federal da Bahia e, portanto, tenho aula em quase todas as manhãs. Assisto as aulas enquanto tomo uma boa xícara de café preto. Não costumo me prender a uma rotina e, por outro lado, as manhãs não são momentos em que funciono bem para a escrita, ainda assim são nas aulas que me aparecem ideias e reflexões que posteriormente incluo nos livros ou que então se tornam tema central de algum capítulo, como já aconteceu diversas vezes.
Em que hora do dia você sente que trabalha melhor? Você tem algum ritual de preparação para a escrita?
O momento mais agradável para o meu processo de escrita é durante a noite, é quando me sinto mais à vontade, mais inspirado e assim a imaginação flui mais livremente, o que facilita muito o trabalho e o torna ainda mais prazeroso. Não há um ritual específico, as existem detalhes que fazem diferença na hora de escrever: estar em um lugar silencioso, escutar alguma melodia, estar bebendo café ou ler um bom autor antes de começar a escrever, tudo isso age de forma a impulsionar a criatividade e de alguma forma me mantém concentrado, focado e relaxado por mais tempo, tempo suficiente para escrever algumas páginas. É claro que nem sempre é possível fazer isso, então apenas sento e escrevo, ou pego o celular e anoto ideias avulsas que me surgem em diversos momentos do dia e da noite. Escrever é um processo duro, cansativo, e por mais que nós escritores, autores, gostemos e sintamos a necessidade de escrever, não é hobby, é trabalho, é tempo investido, é energia, é expectativa, emoção… e muitas vezes o único ritual é a oportunidade de sentar a uma mesa com minha inseparável xícara de café, em silêncio, e poder escrever sem ser interrompido.
Você escreve um pouco todos os dias ou em períodos concentrados? Você tem uma meta de escrita diária?
Para quem precisa dividir a escrita com os estudos ou trabalho fora de casa é difícil escrever todos os dias, porque demanda muito tempo, demanda muita concentração e criatividade. O que ocorre é que, de fato, é aconselhável para qualquer autor escrever todos os dias, mas nem sempre acontece, e quando falta criatividade, é preciso apelar para técnica, para o cronograma, para a força de vontade. Assim que, embora eu não escreva todos os dias, estou pensando nos capítulos e no enredo em muitos momentos, e se passo algum tempo sem escrever no arquivo do livro, escrevo no celular as ideias e frases que me “assombram” durante a noite.
Não uso metas diárias, tenho metas mensais para terminar capítulos, um cronograma com as cenas e os pontos de virada que vão acontecer durante todo o enredo. O final nunca está completamente definido, o processo da escrita nos traz surpresas que enriquecem a obra, detalhes podem surgir a qualquer instante e mudar o rumo do que você está escrevendo, mas é importante ter em mente a mensagem que você quer passar com aquela história, isso não pode ser tão fluido a ponto de lhe causar insegurança. Por exemplo, atualmente estou escrevendo o terceiro livro de uma série de livros que envolve psicologia, literatura e questões sociais, eu sei muito bem o que quero passar para o meu leitor com esse livro, mas as formas de dizer isso são diversas e podem se moldar com o tempo, a depender do meu momento, a depender das circunstâncias de cada dia, e assim novos elementos podem ser incluído e outros podem ser excluídos. Com isso quero dizer que não me agrada a ideia de metas diárias, isso tornaria o meu ato de escrever puramente mecânico, burocrático, escreveria por obrigação… Eu não escrevo todos os dias, mas todos os dias eu penso no que estou escrevendo e que quero escrever.
Como é o seu processo de escrita? Uma vez que você compilou notas suficientes, é difícil começar? Como você se move da pesquisa para a escrita?
Costumo dizer que a escrita é uma necessidade que nunca se encerra em mim, estou com ideias e cenas em minha cabeça todos os dias, algumas curtas, outras mais elaboradas, e isso facilita meu processo de escrita porque consigo reunir esses trechos até que eu possa encaixá-los em algum lugar apropriado. Isso me ajuda a avançar quando me vejo com dificuldade de sair de algum ponto da história em que não há tantas opções válidas de desfecho.
A pesquisa exige de quem escreve uma posição muito diferente da escrita livre. Sou estudante e boa parte da grade curricular de psicologia é composta disciplinas que exigem o desenvolvimento de projetos, artigos, relatórios, pesquisa enfim, e a maneira como se trata um texto técnico é muito fria. A escrita está presente nos dois âmbitos e podem representar trabalho igualmente, mas o movimento que cada uma delas faz é diferente, a estética do texto muda de forma grave, e confesso que me custa muito abandonar a escrita livre, mesmo que por alguns instantes.
Como você lida com as travas da escrita, como a procrastinação, o medo de não corresponder às expectativas e a ansiedade de trabalhar em projetos longos?
É bom responder a essa pergunta de forma conjunta – pois são várias questões em uma só. – e digo isso porque a trava, que nós autores temos, assim como a ansiedade em trabalhar com projetos longos e a expectativa em corresponder a nós mesmos e a nossos leitores, são coisas da qual não se pode ter medo, é natural que existam essas preocupações em algum momento.
Quando falamos de trava da escrita criativa, estamos falando também, ou principalmente, de falta de inspiração. O autor que vive de inspiração precisa ter muita paciência para que seu livro ou seu trabalho seja concluído. A inspiração não pode ser a única ferramenta para produzir um livro, por exemplo, a não ser que você não tenha prazo ou não escreva profissionalmente. Clarice Lispector dizia que ela escrevia para ela mesmo, não era uma escritora profissional e não se preocupava em ser, porque se tornaria obrigação, e ela não escrevia por obrigação. Concordo com o que diz a autora, porque se você ama escrever e escreve integralmente usando técnicas, o seu trabalho é puramente mecânico, e os sentimentos que você elicia são artificiais além da conta. Tento produzir usando os dois lados… se hoje não tenho inspiração, tenho ainda meu planejamento, meus objetivos dentro de um parágrafo, sei aonde quero chegar. Se ainda estiver difícil, tenho a música, tenho os livros e autores que me inspiram, tenho o café, meus gatos, o chão… Há maneiras de lidar com o bloqueio, mas considero plausível aceitar que em algum dia não vai sair nada, que nada será produzido e é melhor aceitar.
Eu costumo planejar meus livros com ideias iniciais de introdução, desenvolvimento e conclusão, mas o tempo não é exato para que eu conclua cada uma dessas etapas, de forma que, por ter isso em mente, não sofro antes da hora. A história, quase sempre, exige mudanças, toma rumos que não foram planejados, e mesmo que isso acabe tomando um pouco mais de tempo, é bom, porque é assim que você encontra alternativas que antes eram impensáveis, é no ato da escrita, e isso é produzir uma escrita criativa, é um escrever reflexivo, pra você e pra quem vai ler, com mudanças de direção, com várias interpretações, com imprevisibilidade. Esse é o lado mais humano do livro e precisa ser preservado, sem exagero de técnicas.
A expectativa faz parte do trabalho, e todo autor deposita muita confiança em seu trabalho, ainda que ao final exista o sentimento de que lhe falta algo… é uma falta que nunca deixa de existir. Queremos escrever algo que toque as pessoas, que seja memorável, mas isso depende do contexto, da sensibilidade e também das próprias expectativas de quem á lendo, não é algo que podemos controlar.
Quantas vezes você revisa seus textos antes de sentir que eles estão prontos? Você mostra seus trabalhos para outras pessoas antes de publicá-los?
Já vi alguns autores dizerem que é preferível escrever todo o livro e depois retomar com a revisão. Não sei. Isso depende da necessidade de cada autor. Eu costumo escrever e reler diversas vezes enquanto escrevo, até concluir toda a primeira versão. Após a conclusão dessa primeira versão leio mais duas vezes todo o livro, depois disso encaminho para alguns poucos amigos que farão uma leitura crítica do meu trabalho, podendo dar sugestões de modificação, inclusão, exclusão de trechos, ideias.
A revisão, quando feita por outras pessoas, é sempre uma etapa importante, porque além de você, autor, ter a oportunidade de escutar outras perspectivas antes da publicação, também ganha a oportunidade de ser avisado de possíveis furos na história, erros de digitação, possíveis erros gramaticais e quem sabe mesmo falhas na história, isso porque a nossa vista, por já está acostumada ao nosso modo, às ideias e ritmo de escrita, acaba deixando passar despercebido algum desacerto, que pode custar caro quando se é autor independente.
Muitas editoras cobram por cada serviço prestado, o que foge do ideal de uma editora tradicional, e isso faz com que autores se aventurem na publicação independente. E, se a opção que esses escritores encontram é a publicação independente, certamente vão precisar de pessoas confiáveis que se disponibilizem para ler seu trabalho e que possam te dar um feedback sincero. Sempre tenho amigos que aceitam receber o original, em torno de 2 ou 3, que fazem esse trabalho e que me ajudam muito, sou grato a eles.
Como é sua relação com a tecnologia? Você escreve seus primeiros rascunhos à mão ou no computador?
Quando comecei com a escrita criativa, aos 13 anos, eu não tinha computador, escrevia textos e poesias em um caderno. Ainda tenho guardado algumas dessas folhas com os meus primeiros escritos. Hoje, quando produzo um livro, me organizo pelos dois modos, utilizo o papel pra escrever as características dos personagens, os arcos dos personagens, calendário, pontos de virada e estrutura inicial da história… Já o rascunho e a primeira versão do livro escrevo sempre no computador, onde deixo salvo o meu trabalho, em diferentes formatos e locais.
Acredito que a tecnologia tem influenciado muito na qualidade dos trabalhos dos novos autores, muito embora autores fantásticos já existissem em épocas de escassez de informação. Penso que os trabalhos de autores dos séculos passados são ainda mais fantásticos, porque refletiam ainda mais a fantasia deles, o imaginário e a época. O que não quer dizer que hoje, com a tecnologia, não tenhamos trabalhos impressionantes. Sim, temos muitos, aos seus modos, usufruindo da tecnologia. Tenho cuidado quanto a isso pelo fato de que a tecnologia deve ser usada como ferramenta que facilita o trabalho de pesquisa, mas não pode transformar as histórias em uma composição muito artificial, de ideias prontas, mercadológicas. Literatura é o espaço do imaginário, da liberdade, é o campo das possibilidades, e não pode se tornar estático e previsível.
De onde vêm suas ideias? Há um conjunto de hábitos que você cultiva para se manter criativo?
As melhores ideias são sempre as que chegam na forma de insight. Em um período que estou escrevendo aparecem frases, palavras, imagens, ideias e tudo mais em minha cabeça, em qualquer hora, em qualquer lugar, e preciso anotar antes que desapareça, antes que eu esqueça. É interessante, pois são frases fabricadas inconscientemente e que chegam à consciência de forma súbita, sem que haja suspeita.
Como comentei em uma das questões anteriores, quando meu nível de criatividade e inspiração está baixo, eu escuto cantores específicos e leio livros específicos, trabalhos que tenham uma carga emocional para mim, e isso sim me inflama a inspiração. Além disso o hábito de ler literatura é fundamental, avaliar as saídas que os autores encontram para cada cena, a forma que estruturam os plot twists, perceber isso nos livros e nas séries, filmes, ajuda a se manter produtivo e criativo, na técnica e na inspiração.
Sempre que escrevo estou bebendo café, estou em um lugar silencioso e, geralmente, à noite, esse é um contexto que naturalmente preserva meu engajamento e eleva a minha inspiração. Os melhores hábitos que cultivo são esses, mas claro, para um graduando em final de curso não se pode escolher sempre o melhor horário de escrever e o melhor horário de estudar, porque, para mim, geralmente são os mesmos, é preciso antes lidar com isso.
O que você acha que mudou no seu processo de escrita ao longo dos anos? O que você diria a si mesmo se pudesse voltar à escrita de seus primeiros textos?
Atualmente estou escrevendo o meu quinto livro e tenho 24 anos, é um processo de evolução que precisa de constância até se tornar consistente. Em primeiro lugar respondo uma questão anterior a essa: sim, houve mudança. A mudança acontece e você sente quando sua escrita evolui, muda. Sinto que se tornou uma escrita mais objetiva, que sofreu influência da literatura nacional, mas que ao mesmo tempo construiu seu próprio caminho e personalidade. As estruturas mudam, a estética muda, as técnicas se desenvolvem. Ao escrever o meu terceiro livro, senti que havia um abismo entre a escrita daquele livro e a escrita do segundo livro. Hoje vejo uma escrita mais consciente e melhor articulada, planejada.
Se eu pudesse voltar à escrita dos meus primeiros textos eu diria: continue escrevendo, não pare, não desista e não tenha medo! E leia, leia muito! É preciso coragem e dedicação para se tornar um autor publicado. O trabalho intelectual não é visto como trabalho, é um esforço pouco valorizado e muitas editoras prezam somente pelo lucro. Há críticas pelo fato de ser trabalho intelectual, pelo fato de ser um trabalho que lida com emoção e sensibilidade, e pelo simples fato de ser arte. Quem recebe incentivo para ser escritor? Esse é um desejo que nasce acanhado e precisa se desenvolver por conta própria. O que eu poderia dizer para mim seriam palavras de incentivo, diria para não ter medo e nem pressa.
Que projeto você gostaria de fazer, mas ainda não começou? Que livro você gostaria de ler e ele ainda não existe?
Ainda estou no começo da minha carreira e não me considero um escritor profissional, tenho muito o que aprender. Junto aos aprendizados virão os projetos. No momento estou encerrando o projeto “Assinados”, que é composto por 3 livros (Assinado Beatriz: um relato de psicose; Assinado Benedito: relatos de luto e velhice; e o terceiro livro, Assinado Estanice: relato de um narcisista criminoso (esse último título ainda sujeito a modificações)). Após o fechamento desse projeto, penso em seguir escrevendo sobre drama, suspense e psicologia. O desejo por escrever, o impulso para a criação é inquietante, ele se reproduz em mim, e no momento tenho duas ideias e uma certeza: a certeza é a de que continuarei escrevendo, e continuarei escrevendo sobre psicologia e questões sociais, unindo esses dois temas à literatura, falando de personagens reais, sobre pessoas que estão na sociedade e que não são percebidas. As duas ideias em formação são justamente impasses sobre o gênero do próximo livro, se será um passeio por uma história infantil, o que seria algo totalmente novo, ou se será um livro independente, de puro suspense e drama, que sempre me convidam.
Se eu conseguisse responder agora a segunda pergunta estaria falando sobre o próximo livro que vou escrever, cujo tema ainda nem sei. Eu escrevo o que gostaria de ler, o que sinto falta. Tudo que um escritor escreve é uma falta, o intrigante é que essa falta nunca é preenchida, e seria estranho se fosse, tudo o mais seria chato, tedioso, e é por isso que nossos desejos também nunca são supridos completamente. Acho estranho que respondam a essa pergunta sem pensar que estão falando do seu próximo livro. Não tenho como respondê-la completamente ou mais do que isso: o livro que eu gostaria de ler e que ainda não foi escrito está representado por diversas faltas dentro de mim, e ainda não identifiquei e nem sei qual delas, primeiro, se tornará um livro.