Sarah Valle é escritora e mestre em estudos da tradução pela Universidade de São Paulo.

Como você começa o seu dia? Você tem uma rotina matinal?
Geralmente acordo morrendo de fome, então, como bem e arrumo o lugar onde vou trabalhar. Idealmente, se estiver animada, pratico ioga antes, em jejum, mas as chances são mínimas. Tenho dificuldade de repetir uma sequência de atividades, acabo me guiando por listas de afazeres ou pelo humor do dia.
Em que hora do dia você sente que trabalha melhor? Você tem algum ritual de preparação para a escrita?
Trabalho bem em qualquer horário se tiver dormido bem. Costumo preferir as manhãs, mas o silêncio das madrugadas também tem seu apelo. Organizo minhas ideias durante longas caminhadas.
Você escreve um pouco todos os dias ou em períodos concentrados? Você tem uma meta de escrita diária?
Embora eu escreva todos os dias, os processos diferem. Publico materiais didáticos semanalmente, por exemplo, o que é um tipo de escrita pragmática, que exige que eu sente e cumpra prazos. Não penso que cheguei a um lugar autoral com a escrita acadêmica, fui uma boa aluna, mas não acho meus artigos charmosos. Quanto à escrita literária, eu me reservo o direito de só escrever quando estou com vontade, quando tenho algo a dizer, portanto, não me obrigo a nada, sou incapaz de escrever sob demanda. Assim mantenho uma relação desejante com o que escrevo. Pessoas que trabalham com a palavra têm esse desafio de reservar para si um espaço de criação e, ao mesmo tempo, sobreviver da linguagem. Esse é apenas o meu jeito. Um livro tem que surgir de uma demanda íntima e não negocio com isso. Quando acontece, trabalho cada projeto ao longo de uns quatro anos, mas há um período concentrado, alguns meses de imersão, depois restam ajustes. Meta de páginas por dia não faz sentido para mim porque tenho algo com o corte e a concisão. Apago muito. Escrevo prosa como quem faz verso. Deixo sempre um a pouco menos. Sou capaz de ficar um dia todo tentando resolver um parágrafo de três linhas. As coisas que eu quero escrever preciso aprendê-las escrevendo.
Como é o seu processo de escrita? Uma vez que você compilou notas suficientes, é difícil começar? Como você se move da pesquisa para a escrita?
Primeiro escrevo em cadernos, guardanapos, documentos de Word, livremente, até de um jeito tosco, sem me preocupar com estilo, como se estivesse produzindo uma argamassa ou pigmentos. A metáfora é clichê, mas vamos lá. Desse monte de notas, serão moldados trechos, frases, cenas. Quando sinto que tenho material suficiente girando em torno de um eixo, começo a “montar” o livro como um quebra-cabeça que vai revelando sua coesão. O inconsciente trabalha bastante nessas montagens. É um fazer intuitivo até eu ir entendendo o que está ali em termos de estrutura, o que estou fazendo para além do conteúdo mais explícito e intencional. Vou descobrindo relações, repetições, sons etc. Trazer isso para a consciência é o que permite os acabamentos mais propositais. Esse processo de montagem é o que chamo propriamente de escrita. Uma condensação seguida de um encaixe de fragmentos que precisam seguir um ritmo. Vou lendo tudo em voz alta conforme monto os parágrafos, às vezes gravo para ouvir. Os parágrafos precisam ter um peso em si mesmos, uma autonomia, ao mesmo tempo, uma função clara no texto e ganchos de coesão, como palavras ou imagens que funcionem tal qual migalhas de pão numa trilha. O que não é dito também estrutura o texto. É um risco, mas é como eu faço. Sempre tem algo faltando nas minhas histórias. Quando você afrouxa as amarras, cria lacunas pelas quais os sentidos podem atravessar. Uma vez me disseram que minhas personagens parecem buracos negros. Gosto disso. Do espaço entre os parágrafos. Das elipses. Do equívoco. No entanto, algumas coisas precisam ser ditas explicitamente. Quais delas? Não tenho certeza, mas sigo tentando acertar. Sobre passar da pesquisa ao texto, o processo é espiralado, volto muitas vezes à pesquisa e, de novo, ao texto.
Como você lida com as travas da escrita, como a procrastinação, o medo de não corresponder às expectativas e a ansiedade de trabalhar em projetos longos?
Prefiro pensar que o tempo está a favor dos textos. Sou lenta. Acredito que cada texto tem o seu tempo certo. Esta entrevista mesmo levei dois anos para topar responder! Quanto ao medo de não corresponder a expectativas, é preciso definir o que está em jogo para você quando escreve. Herdei da religião o fato de levar textos escritos a sério, uma certa crença no poder das palavras e um embate com as raízes do pensamento religioso. Nesse sentido íntimo, pode-se dizer que “Arquitetura do Sim: fragmentos de um diário da Ásia” (Editora Cozinha Experimental, 2018) escrevi como uma espécie de “livro sagrado do desejo” ou uma “busca da terra prometida” fazendo frente à própria Bíblia. Nesse embate de Davi e Golias, preciso ter muita certeza do que estou fazendo. Essa audácia, que é também um compromisso genuíno, está no fundo do meu perfeccionismo. Enquanto escrevia meu livro mais recente, “Mãos” (no prelo), que tem um tom tragicômico, me deu receio de decepcionar as pessoas que gostaram da “Arquitetura do Sim”, como se eu tivesse estabelecido um padrão de qualidade. Fato é que algumas pessoas amam um livro que para outras não funciona. Claro que desejo causar prazer em quem lê, mas não sacrifico o projeto nem o estilo. De todo modo, é útil pensar no texto como uma entidade em si, que precisa se sustentar autonomamente. É necessário se implicar eticamente naquilo que se escreve, mas, fora isso, é bom manter certo distanciamento. Não é isso que fazemos quando dizemos “ficção”? Também me ajuda pensar que cada livro se destina a pessoas para as quais ele será bom o suficiente.
Quantas vezes você revisa seus textos antes de sentir que eles estão prontos? Você mostra seus trabalhos para outras pessoas antes de publicá-los?
Como já disse, escrevo em camadas. O fato de saber disso me permite uma desatenção, uma frouxidão, uma espontaneidade. Depois, sinto uma necessidade de me tornar mais e mais consciente de cada escolha. Faço testes. Montagem e revisão se confundem para mim. Sim, umas dez pessoas, pelo menos, leem meus originais. Já cheguei a ler um livro todo em voz alta para algumas delas. Tenho excelentes amizades à escuta. Essas primeiras impressões me salvam de vários deslizes. Mas é bom lembrar que nenhuma revisão previne de pontos opacos. A revisão é meu exercício de lucidez, mas algo sempre escapa, é bom que escape. Depois de publicados, os livros nunca deixam de se revelar. Aspectos imprevistos, novas interpretações… Faz parte aceitar isso.
Como é sua relação com a tecnologia? Você escreve seus primeiros rascunhos à mão ou no computador?
Escrevo primeiro à mão ou no computador. Conforme vou montando o texto, preciso do Word. Salvo várias versões. Por isso, não vivo sem a ferramenta que permite comparar duas versões de um mesmo documento e ver tudo o que foi modificado. Assim posso refletir com cautela sobre minhas decisões.
De onde vêm suas ideias? Há um conjunto de hábitos que você cultiva para se manter criativa?
Tudo começou quando eu cortei a mão de um menino na escola com um canivete. Foi a primeira vez que cheguei em casa e, para dar conta do vivido, eu o reescrevi. Esse corte inaugura a ficção na minha vida. Viver como pretexto para a escrita. A escrita começa quando faço algo com as próprias mãos. Precisei viver meses em fazendas e capinar muito mato para escrever “Arquitetura do Sim: fragmentos de um diário da Ásia” e ir a muitos médicos para escrever “Mãos” (no prelo). Escrevo com o desejo, o corpo, a imaginação e a escuta. A ficção é uma espécie de assimilação da experiência que, ao duplicá-la, não se confunde com o vivido, mas extrai, de forma não literal, algo muito verdadeiro. Quem sabe mais verdadeiro do que o literal. Viver da melhor forma que posso sem me esquivar de temas difíceis talvez seja um norte para encontrar a escrita.
O que você acha que mudou no seu processo de escrita ao longo dos anos? O que você diria a si mesma se pudesse voltar à escrita de seus primeiros textos?
Comecei a escrever meu primeiro romance aos 14 anos. Aquele tipo de projeto que as pessoas geralmente abandonam, o que é recomendável. No meu caso, teimei e fui terminá-lo aos 23 com o apoio de uma bolsa de criação literária. “O Espelho d’Água” (Editora Medita, 2015) reflete versões dissonantes escritas ao longo de épocas turbulentas da minha formação, no entanto, essa novela fantástica/alegórica já contém o embrião de temas que vou desdobrar nos livros seguintes, como a superação de oposições/binarismos e a busca por um lugar “fora da língua”. Nas duas novelas que se seguiram, abandonei a fantasia, passei pela outra ponta do mundo até conseguir, finalmente, escrever sobre a minha cidade, Campinas. Foi um grande percurso até a casa, o mais literal. Também estou cada vez mais concisa: para onde isso vai? Acho que tem a ver com uma postura que foi se intensificando desde o primeiro livro, que é tomar a palavra como algo material, em si mesma, e não só como um meio. Como se cada palavra fosse uma coisa, então, você não precisa de tantas. Também fui ficando mais autocrítica e menos espontânea nos últimos anos, mas imagino que sejam fases. O conselho que daria a mim mesma no passado: abandonar a alegoria e simplificar o enredo. O conselho que dei a mim mesma nesta semana ao me comparar com o Ocean Vuong: Sarah, talvez algum dia você escreva uns tijolões, cheios de conjunções e metáforas explicadas, explorando longamente as cenas pelas quais agora você passa rapidamente. Por hora, você faz bem em ser enxuta, vai ter menos do que se arrepender. É uma boa medida entre a coragem e a cautela. Agora vou dar um exemplo de metáfora ruim. Alguns livros são longos como o amor que dura e, ao fim, você tem a experiência completa, pouco resta para ser preenchido, tudo está dito, plenamente vivido. Outros livros são aqueles amantes de longa data, cujos encontros são breves, mas se mantêm ao longo de décadas, como uma febre de malária. Acho que os livros que escrevo estão mais para o segundo tipo. Não tomam seu tempo, ficam em aberto, mas fazem você voltar. Assim eu gostaria que fosse, pelo menos. Tenho pensado muito no impacto da forma textual sobre a memória e a sensibilização de quem lê. Em “Arquitetura do Sim”, a fragmentação do texto sabota a busca da personagem principal por uma coesão do seu desejo, corrompe o ideal arquitetônico das duas viajantes. Já em “Mãos”, não faria sentido o texto ser longo e corrido uma vez que trata de um problema nas mãos que impede de escrever. Além disso, quis escrever um texto sobre dor que fosse breve como arrancar um band-aid, esdrúxulo e divertido, ainda que investigando um tema sério. Penso que brevidade e fragmentação, nesses dois casos, foram fundamentais. Será sempre assim? Não sei…
Que projeto você gostaria de fazer, mas ainda não começou? Que livro você gostaria de ler e ele ainda não existe?
Vou ficar com os livros que já existem, empilhados aqui esperando e aposto que vou gostar de alguns. Tenho optado por leituras com efeito calmante, que possam salvar minha cognição da velocidade e desembrutecer a sensibilidade nesse Brasil de 2021. Sobre novos projetos, preciso terminar um livro antes de começar outro. Sempre sinto que tudo está dito. Tenho a sorte de me sentir satisfeita. No entanto, as críticas estão sempre aí para nos desafiar a contar mais, a contar melhor…