Sandra Godinho é escritora.
Como você começa o seu dia? Você tem uma rotina matinal?
Começo o dia com um bom café. Companheiro ideal de grandes ideias e grandes questionamentos. Ele afaga mágoas, afoga ansiedades, afofa as ideias que se revolvem na mente plena de energia, que procura canto para desabrochar, que procura recanto para se firmar, formar e transcender. Um café é um bom companheiro na vida de qualquer autor. (Há os que apreciam um bom copo de vinho, cerveja ou uísque – risos).
Em que hora do dia você sente que trabalha melhor? Você tem algum ritual de preparação para a escrita?
Normalmente, eu prefiro as manhãs. Elas trazem um frescor para as ideias que ficaram marinando durante a vigília, maturando no inconsciente. Sei que cada escritor tem sua rotina e ritual. Gosto do silêncio, não saberia escrever de outro modo, no meio do tumulto como tantos são capazes de fazer. Inveja branca deles (risos). Eu não consigo, gosto do silêncio que decanta as ideias para as reviravoltas do enredo, para a profundidade de uma personagem em situações que o exponham no que têm de melhor e de pior.
A preparação para escrever desse ser feita antes de você se sentar ao computador. Ninguém deve escrever sobre aquilo de que não entende. Há de se fazer uma boa pesquisa, de se alimentar com algum material já publicado sobre o tema, de se munir com uma boa estrutura para o enredo e uma estabelecida estrutura para a montagem da cena. Li outro dia um conto que dizia assim: “De muitas vidas se fazem as páginas”, achei perfeito. Mas, se no meio do caminho, entre o que você pensou e o que está escrevendo, surgir uma epifania, mude o que já foi estabelecido sem susto. Siga seu instinto.
Você escreve um pouco todos os dias ou em períodos concentrados? Você tem uma meta de escrita diária?
Procuro manter uma rotina, escrevendo 3 páginas diárias. É um vício. Uma necessidade. Nem tudo o que se produz é bom material, evidente. Joga-se muita coisa fora. Depois, nem sempre temos uma autocrítica fidedigna. Tem coisa que escrevo, acho bom e, depois de um mês, ao retornar a leitura, descarto de imediato. Steve Pinker fala algo a respeito. A depuração do texto se dá com o afastamento, alguma cognição e algum bom-senso. Imprescindível.
Como é o seu processo de escrita? Uma vez que você compilou notas suficientes, é difícil começar? Como você se move da pesquisa para a escrita?
Esse é um ponto nevrálgico para mim. No começo, queria colocar tudo que foi pesquisado no texto. Uma miscelânea e um horror. Aí fiz uma orientação literária com Marcelino Freire e ele me deu uma lição que nunca mais esqueci: toda vez que você tiver informação ao invés de emoção, você perde o leitor. Toda vez que a voz do autor aparecer, você perde o leitor. Ache a voz do seu personagem, entenda essa voz, essa agonia emocional, esse conflito e tudo vai se encaixar. Assim eu tento fazer. Nem sempre consigo. É preciso reescrever. Não uma, nem duas vezes. Muitas, até conseguir que seu personagem fale ao invés do autor, aí, magia pura acontece. Às vezes, relendo certos trechos, eu choro com o que eu mesma escrevi.
Como você lida com as travas da escrita, como a procrastinação, o medo de não corresponder às expectativas e a ansiedade de trabalhar em projetos longos?
Com uma boa pesquisa, conhecendo seu personagem, tendo uma boa estrutura de enredo e cena, é difícil acontecer as travas de escrita. Mas, se por acaso elas acontecerem, eu dou uma respirada. Volto ao café. Tomo um bom livro da mão e leio uma história alheia. Se não surtir efeito, tomo outro livro. Sempre acaba vindo uma luz que me guia no tenebroso túnel da criatividade.
Quantas vezes você revisa seus textos antes de sentir que eles estão prontos? Você mostra seus trabalhos para outras pessoas antes de publicá-los?
Reviso tantas vezes quantas sejam necessárias até que dê o trabalho por completo. Tenho um romance em que estou trabalhando há 3 anos. Outros, terminei com dois meses de escrita, depois da pesquisa feita. Então vou espaçando o tempo de descanso entre um e outro para que a maturação aconteça. Tem certas coisas que depois de algum tempo e de devido distanciamento é que se aprimoram, vc relê e se pergunta: mas o que eu quis dizer com essa frase? Ou então: essa passagem não está boa, pode ser melhorada assim ou assado. Ou então você apura a linguagem para que o texto fique mais elegante. A cada revisão, seu olhar se volta para um detalhe ou outro. Há autores perfeccionistas, que nunca dão o trabalho como terminado. Não funciona para mim. É preciso saber quando parar.
Normalmente, gosto de trocar ideias com meu filho que é um leitor voraz e bastante crítico, mas nossos estilos não combinam muito. Então, estou com dificuldade de achar um bom leitor-beta ultimamente. Achar bom leitores é uma preciosidade. Achar quem se disponha a “betar” teu texto, mais ainda. Encontrei uma boa amiga portuguesa que se dispôs a “betar” uma história para mim. Uma ajuda inestimável.
Como é sua relação com a tecnologia? Você escreve seus primeiros rascunhos à mão ou no computador?
Sempre escrevo no computador. Uma maravilha da vida moderna. Mas deixo sempre uma caneta e papel à mão quando vou dormir. Às vezes, acordo com alguma ideia que tive num sonho. Então, antes que ela me escape, eu a gravo no papel para evitar-lhe a fuga.
De onde vêm suas ideias? Há um conjunto de hábitos que você cultiva para se manter criativa?
Como os designers, que se alimentam de qualquer estímulo visual para criar, os escritores se alimentam de tudo e de todos. Nesse aspecto, somos egoístas, somos predadores vorazes. Um pingo de torneira serve de estímulo para uma poesia; uma foto, para uma reflexão; a morte de um cachorro na porta de um supermercado, para denúncia; uma jornada de retirantes, para a humanização; uma briga entre casais, para a conscientização. É importante que estejamos antenados. E nos alimentamos, acima de tudo, de livros de outros escritores, poesias, contos, romances, ensaios. Eu me lembro de ter usado até uma dissertação de mestrado para falar sobre a vida de ribeirinhos na cidade flutuante de Manaus no século passado, relatos de quem já viveu nesses arredores e que de outro jeito não teria acesso. Damos voz àquilo que não deve nunca se calar. Não vamos inventar a roda, talvez nem falar sobre assuntos já tão amplamente debatidos, mas sempre podemos lançar novos olhares e novos entendimentos.
O que você acha que mudou no seu processo de escrita ao longo dos anos? O que você diria a si mesma se pudesse voltar à escrita de seus primeiros textos?
O que mudou foi meu entendimento do mercado editorial, a bem da verdade. Achava, ingenuamente, que ter seu livro em evidência numa grande livraria seria o melhor dos mundos. Não é bem assim. As grandes livrarias abriram falência, gora cabe ao escritor se promover e buscar seus pares. O escritor virou um empreendedor. Não pode viver mais encastelado. Isso ainda me é custoso porque não tenho esse outro lado bem desenvolvido.
Que projeto você gostaria de fazer, mas ainda não começou? Que livro você gostaria de ler e ele ainda não existe?
Eu gostaria de escrever para crianças. Acabei de fazer minha primeira história. Vamos ver no que dá. Eu gostaria de ler um livro que mesclasse uma boa narrativa com o primor da linguagem. Li um que me encantou, Todos os abismos convidam para um mergulho, da Cínthia Kriemler. Arrebatador.