Salma Soria é escritora e estilista, autora de “Vestindo a roupa ouvindo a máquina” e “Muitas roupas aqui”.

Como você começa o seu dia? Você tem uma rotina matinal?
Meditação. E aí percebo como vai ser o dia, às vezes feliz ou sobrecarregada ou enfadonha ou com preguiça ou animada. Minha única rotina é beber água.
Em que hora do dia você sente que trabalha melhor? Você tem algum ritual de preparação para a escrita?
De manhã costuma ser um bom horário para o metabolismo da escrita. Mas nem sempre posso escrever nesse período. Adoraria ter rituais extraordinários para a escrita, mas não tenho, a não ser, ler e escrever muito.
Você escreve um pouco todos os dias ou em períodos concentrados? Você tem uma meta de escrita diária?
Escrevo porque sinto o coração existindo no verbo. A escrita é um calor. Escrevo mesmo no frio ou no sol intenso. E isso é todo dia. Não tenho nenhuma meta rígida, mas costumo respeitar meus limites -que são muito íntimos. E isso é bem complicado porque nem sempre posso sentar e escrever. É uma luta realmente brutal porque a escrita se impõe e eu acato. Olho para a coisa e a coisa me olha do jeito que quer ser mostrada. E escrevo.
Como é o seu processo de escrita? Uma vez que você compilou notas suficientes, é difícil começar? Como você se move da pesquisa para a escrita?
Começa pela roupa. Roupa pra mim é dramaturgia. E arte. E toda a arte tem sua função estética na distribuição da sensorialidade, em reorganizar os espaços internos do mundo, em fornecer possibilidades de rupturas deslumbrantes ou assombrosas porque rompe com as certezas estabelecidas. Começo fazendo literalmente uma roupa. Depois desfaço, descosturo, derrubo. Quando o cenário é completamente demolido, estou pronta para escrita. Eu gosto de demolições e dos espasmos musculares. A escrita vem como reflexo de uma paixão profunda pela vestimenta. Há universos muito intensos dentro de uma roupa. Toda roupa pulsa, vibra, sacoleja. Costumo dizer que sou uma estilista que cria roupas reais e uma escritora que faz roupas na escrita da ficção. A roupa acontece entre esses dois mundos e é muito prazeroso, apesar de alguma dor.
Até agora meu principal interesse literário é explorar algumas facetas da roupa e da moda através da escrita de ficção. É meio maluco isso porque pesquisei exaustivamente esse nicho no Brasil, primeiro de modo esportivo porque sou obcecada por moda e literatura, até perceber uma lacuna deste tema na ficção literária. E comecei aos poucos publicar algumas coisas até perceber que isso começou a fazer sentido para as pessoas.
As notas compiladas são muitas vezes frutos da vivência na área que não resumidas a mim, mas em vários designers, pessoas que frequentam chão de fábrica, profissionais de diversas posições na indústria. Muitos assuntos e personagens acabam chegando prontos para serem descritos. Eles só precisam ser contados nas histórias – e algumas delas são reais, infelizmente.
Em “Vestindo a roupa ouvindo a máquina” foram doze anos de diversos escritos e reescritos, até ter a coragem de publicar. Depois que lancei meu primeiro livro, o temor e o apavoramento que tinha em ser lida por um número maior de pessoas foi sucumbido. A realidade se mostrou mais gentil do que o medo. As reações dos leitores foram muito legais.
Os contos de “Muitas roupas aqui”, foram escritos ao longo dos últimos dez anos. Tudo tem seu momento para maturar e respeitar os respiros do tempo faz parte desse processo da pesquisa.
Como você lida com as travas da escrita, como a procrastinação, o medo de não corresponder às expectativas e a ansiedade de trabalhar em projetos longos?
Não gosto de carregar pesos e responsabilidades em coisas que não são minhas atribuições. Logo, não posso me sentir culpada se alguém não gostou de alguma coisa que escrevi. Sabe, desde muito jovem gostava de me vestir “diferente”. Algumas pessoas não entendiam porque usava certas roupas. Mas tinha um impulso, uma vontade que me fazia usar o “diferente”. Ali aprendi a não colocar todas as minhas esperanças em agradar as expectativas externas. Tem gente que ama, gente que se inspira, gente que se incomoda com os meus textos, é bom ter opiniões divergentes. A escrita flui por ser uma vontade. Uma verdade da cena. Procuro respeitar o que os olhos dos leitores percorrem, até porque, sou muito mais leitora do que escritora. E tenho um profundo respeito aos colegas escritores. Acredito que as histórias de ficção são trocas para as humanidades. Se não gostarem do que escrevo, vou ficar chateada por não ter podido entregar alguma gentileza, mas essa coisa de “não conseguir escrever” ou “não ser aprovada” não me apavora. O que me apavora é o fim do estado laico neste país. Agora, trabalhar em projetos longos de escrita, sim, é uma questão complexa. Tenho textos que estão na gaveta há anos e adoraria saber quando eles vão sair para ganhar mundo. Mas não tenho como saber. Quem manda é a história.
Quantas vezes você revisa seus textos antes de sentir que eles estão prontos? Você mostra seus trabalhos para outras pessoas antes de publicá-los?
Milhares de vezes. E se deixar, até horas antes de ir pro prelo. Principalmente porque às vezes mostro para alguns amigos e rola umas implicâncias no texto e fico querendo mudar ainda mais. Todo escritor que conheço é um pouco assim também. Se o editor não falar “Salma, pare, sua louca”, eu continuo e continuo e continuo querendo mexer no texto.
Como é sua relação com a tecnologia? Você escreve seus primeiros rascunhos à mão ou no computador?
Híbrida porque nunca sei quando algo vai me tomar. Posso estar parada num sinal esperando para atravessar a rua e algo ali acontece, preciso anotar com o que estiver disponível: caderninho ou bloco de notas no celular. Quando a coisa fica mais séria e começa a tomar corpo, aí fica o tempo todo no computador onde as construções ganham forma. Minha geração se acostumou a fazer trabalhos da escola diante do computador. Crescemos e moldamos nossas personalidades através de uma tela de computador, então, a coisa toda funciona para mim como uma amizade bem tranquila. Tenho trechos inteiros de histórias descritos no bloco de notas no celular, coisas que envio para meu e-mail ou coloco aleatoriamente no word. Não faço backup de nada. Se perder, sei lá o que vou fazer, mas não me prendo com que escrevi. Já troquei tantas vezes de computador que perdi inúmeras coisas escritas ali, mas, fazer o quê, acontece. Tenho alguns cadernos também que escrevo e desenho junto. É uma confusão que às vezes nem eu entendo.
De onde vêm suas ideias? Há um conjunto de hábitos que você cultiva para se manter criativa?
Da própria coisa da vida que reverbera pela roupa e passeia pelas cinturas, corpos, ombros, cotovelos e acende algo em mim. E isso nem é meu, não fica pra mim. É do texto. E eu quero todas as possibilidades da escrita. Amo ideias novas, amo os emojis, por exemplo, mas tenho medo que essa expressão já tenha sido banalizada demais, sem que o outro possa realmente compreender sobre o que se ama, ou com a comodidade nos emojis em condensar demais o processo da expressão do pensamento. É estranho fazer overdose de emojis de coração o tempo todo. Odeio a banalidade do “eu amei”, “eu te amo”, “amo”. Não sei se dá para o coração processar tudo isso. O coração que hoje mais se afina com a realidade das nossas emoções é um pictograma e eu não sei dizer o quanto isso é esquisito. Logo, minha relação com a criatividade é também baseada numa angústia ridícula como essa.
Ah, e viver num país tão cínico e desigual também é muito angustiante. Temo que num futuro breve, as notas de repúdio se darão na forma de emojis vomitantes, sarcásticos ou raivosos.
O que você acha que mudou no seu processo de escrita ao longo dos anos? O que você diria a si mesma se pudesse voltar à escrita de seus primeiros textos?
Comecei a escrever muito cedo. E a publicação de meus textos se deu de uma forma, digamos, não sutil, com alguma repercussão na moda pré-redes sociais. Sofria quando via que alguém lia o que escrevia. Era como se parte do meu diário adolescente, tivesse sendo exposta sem que eu quisesse. Simplesmente fui empurrada por alguns acontecimentos. Na idade adulta peguei pânico absoluto de escrever coisas para que as pessoas pudessem ler. Foi preciso anos de análise e maturidade para entender que os monstros que temia não existiam mais. Diria para a Salma menina não ter medo de escrever e ter um pacto com a verdade do coração. Ajuda muito.
Que projeto você gostaria de fazer, mas ainda não começou? Que livro você gostaria de ler e ele ainda não existe?
Tanto “Vestindo a roupa ouvindo a máquina” e “Muitas roupas aqui” que são livros de contos que escrevi, são de certa forma o que a Salma adolescente gostaria de ter lido. Essa ideia de trabalhar roupa e moda na ficção literária é um sonho que aos poucos se torna realidade. Então, se tiver ainda mais oportunidade, gostaria de explorar mais essa faceta. Quem sabe no romance? Também gosto do mistério do universo. Há muitos livros escritos que ainda não conheci. Aposto em algum que existe no agora, escrito por alguém em algum lugar e que vai me encantar no futuro.