Ruy Proença é poeta e tradutor.

Como você começa o seu dia? Você tem uma rotina matinal?
Há um antes e um depois da pandemia. Antes da pandemia eu trabalhava o dia inteiro com engenharia, cumprindo jornada de oito horas diárias. Como sempre fui de acordar cedo, chegava ao escritório por volta das oito horas e saía ao final da tarde. Com a pandemia, muita coisa mudou. Passei a trabalhar um terço do que trabalhava (não por vontade própria) e minha rotina foi para o espaço.
No que diz respeito à poesia, não tenho rotina alguma, a não ser quando estou organizando um livro para publicação.
Em que hora do dia você sente que trabalha melhor? Você tem algum ritual de preparação para a escrita?
Não tenho nenhum ritual de preparação para escrita. O único preparo por trás do trabalho de escrever é sempre estar lendo alguma coisa. Ler e ler.
Há épocas em que a poesia me frequenta com mais assiduidade e outras em que me sinto pouco fértil. Gosto de uma fala do Auden, que dizia só se sentir poeta enquanto estava escrevendo um poema. Terminado o poema, passava a duvidar de si mesmo.
Para a literatura, a hora em que melhor trabalho, penso, seria o fim de tarde, hora do crepúsculo. Talvez tenha a ver com meu temperamento um tanto melancólico, talvez com a hora de meu nascimento (será?) ou com a sensação de liberdade após a jornada de trabalho com engenharia. Mas todos sabemos que não é possível agendar a poesia. A vontade de escrever é sempre imprevisível. Escrevo dentro do ônibus, em sala de espera de consultório, andando pela rua, em viagens a trabalho, de manhã, à tarde, à noite ou, bem raramente, até de madrugada. Qualquer hora é hora, desde que surja um impulso para a escrita.
Você escreve um pouco todos os dias ou em períodos concentrados? Você tem uma meta de escrita diária?
De tempos em tempos, me proponho um esforço de escrever com frequência, para ficar sintonizado com a escrita. No início da pandemia, estimulado pela leitura do livro Escrevendo com a alma, de Natalie Goldberg, resolvi mais uma vez levar a escrita como uma atividade quase diária. Porém, esse exercício não é garantia de nada, exceto de ser um bom exercício. O importante é ter alguma coisa, alguma ideia, algum insight relevante em mente para expressar. E isso é bem mais raro.
Como é o seu processo de escrita? Uma vez que você compilou notas suficientes, é difícil começar? Como você se move da pesquisa para a escrita?
Para mim não há regras externas ao poema, o que não quer dizer que eu não procure rigor durante a escrita. O rigor tem a ver com o ritmo, a concisão, a melopeia etc. Não haver regras externas ao poema talvez seja o grande barato da poesia. O poema se faz em pleno voo. A gênese do poema pode partir de uma ideia, de uma imagem, mas pode surgir também de uma fagulha quando entramos em devaneio. Muitas vezes não somos nós que guiamos o poema, mas o poema que nos guia. É uma espécie de dança entre o poeta e a poesia.
Como você lida com as travas da escrita, como a procrastinação, o medo de não corresponder às expectativas e a ansiedade de trabalhar em projetos longos?
Em época de pandemia, procurei baixar as expectativas, diminuir a ansiedade. A vida ficou tão difícil do ponto pessoal, social e político que é melhor não colocar mais peso sobre os ombros (mais de 620 mil mortos e já praticamente dois anos de isolamento…). Talvez por isso eu esteja escrevendo tão pouco. Estou deixando a vida me levar. Para me centrar e acalmar, começo o dia meditando uns vinte minutos.
Mesmo em meio a este ambiente complicado, publiquei uma plaquete de poemas infantojuvenis com imagens do poeta e artista plástico Ronald Polito (Um ninho na ponta do nariz, Galileu Edições), outra plaquete com poemas traduzidos de Paol Keineg em colaboração com a poeta e tradutora Lilian Escorel (Línguas más, Galileu Edições), além de poemas esparsos em revistas e antologias.
Quantas vezes você revisa seus textos antes de sentir que eles estão prontos? Você mostra seus trabalhos para outras pessoas antes de publicá-los?
Enquanto estou escrevendo um poema refaço-o incessantemente várias vezes, até achar que não tenho mais como mexer, esteja ele satisfatório ou não. Sempre volto ao poema nos dias seguintes para reler e, se possível, melhorar alguma coisa. Depois, como muitos poetas, deixo-o dormindo numa pasta para relê-lo muito à frente com mais distanciamento.
Quando estou preparando um livro, sempre conto com uns(umas) três ou quatro amigos(as) queridos(as), também poetas ou escritores(as), que fazem uma leitura crítica. Fora isso, publicar previamente os poemas em revistas, sites etc. pode ser uma boa maneira de ir refletindo sobre eles.
Como é sua relação com a tecnologia? Você escreve seus primeiros rascunhos à mão ou no computador?
Se entendermos tecnologia como sendo simplesmente o computador, que me parece ser o sentido da pergunta, não tenho problema com a tecnologia, embora ache que o poema não visual prescinda dela. Já escrevi muito em computador. Hoje em dia prefiro escrever à mão, de preferência com caneta tinteiro, eu que sou canhoto e que tenho de tomar cuidado para não borrar a escrita. A caneta tinteiro me parece ser mais afim ao tempo da poesia, a tinta demora para secar, tem a consistência/textura do sangue. Mas isso é só um fetiche, uma mentira que contei para mim e na qual passei a acreditar.
De onde vêm suas ideias? Há um conjunto de hábitos que você cultiva para se manter criativo?
As ideias podem vir de qualquer coisa: de uma conversa, de uma leitura, de um acontecimento, de uma notícia de jornal, de uma bula de remédio, de um sonho, enfim, de algo que nos mova, nos interrogue, nos espante. Muitas vezes é uma mistura dessas várias coisas, em parte conscientes e em parte inconscientes.
O que você acha que mudou no seu processo de escrita ao longo dos anos? O que você diria a si mesmo se pudesse voltar à escrita de seus primeiros textos?
Muita coisa mudou. Minha poesia era mais imagética, mais ligada à sinestesia, preocupada com a metáfora. Hoje minha poesia é mais pedestre, mais prosaica, mas, creio, também mais reflexiva.
Quanto a voltar à escrita de meus primeiros textos, imagino que não exista essa possibilidade. Nos transformamos ao longo do tempo. Acredito que o presente seja determinante daquilo que sou.
Que projeto você gostaria de fazer, mas ainda não começou? Que livro você gostaria de ler e ele ainda não existe?
Miro sempre meu próximo livro. Tenho poemas guardados desde 2015 mas ainda não tive energia para revisitá-los e fazer uma seleção. É muito difícil entrar nessa viagem. Depende de muitos fatores externos, até de alguma lei de incentivo ou de alguma editora que se interesse em publicar. Enquanto o livro não vem, me preocupo simplesmente em escrever poemas, que é a parte mais sedutora da história.
Tenho também uma tradução já realizada em primeira versão do livro Un certain Plume, de Henri Michaux, que preciso finalizar. Também para esse trabalho tenho de acumular energia.
Quanto ao livro que não existe, prefiro pensar nos livros que já existem e que ainda não consegui ler. Só li uma minimíssima, ínfima parte do universo. Kafka, Guimarães Rosa e muita coisa, mas ainda assim muito pouco. Ainda li quase nada de Tolstói e Dostoiévski. Isso só para ficar apenas em exemplos de escritores canônicos mais conhecidos. E há muita coisa não canônica que também interessa, mesmo porque o cânone é dinâmico; e muita literatura contemporânea; e muitos livros de ensaios, análises, para se entender o mundo. O importante é estar sempre lendo algo que nos provoque e faça refletir.