Rodrigo Hipólito é historiador da arte, artista e podcaster.

Como você começa o seu dia? Você tem uma rotina matinal?
Tenho rotina para o dia inteiro. Demorei para aceitar que preciso de muita rotina. Não exatamente para produzir ficção, mas para todo o restante de atividades. A rotina é fundamental para minha própria saúde mental e física. Saber que preciso disso me ajudou bastante a concretizar projetos que ficavam perdidos no limbo do planejamento e do sonho. Ao mesmo tempo, quanto mais as minhas rotinas tornam-se confortáveis e eficientes, maior o incômodo quando qualquer acontecimento novo precisa ser encarado.
Não sou uma pessoa matutina. Essa é outra característica que demorei para compreender, aceitar e utilizar a meu favor. Eu durmo tarde e acordo tarde.
O resto do mundo começa a funcionar muito cedo. Quando eu era obrigado a acordar com o nascer do sol e trabalhar no horário comercial, não encontrava espaço para a escrita de ficção. Eu continuava a escrever, mas os textos ficavam abandonados em seu estado bruto.
Hoje, minhas manhãs são lentas. Após o café, dedico-me a organização do dia, responder e-mails e mensagens, realizar divulgações, leituras curtas e resolução de pequenos problemas do meu trabalho como professor.
Como leciono no período noturno, somente após o almoço é que considero como “oficialmente em horário de trabalho”. Desse modo, consigo fazer com que as minhas manhãs sejam o momento de menor cobrança e me permitam ter segurança sobre como será o restante do dia. Mas, como acordo tarde, esse momento de lentidão e planejamento não é muito longo. Para minha prática de escrita, essas horas são indispensáveis. Organizar o dia significa, também, ter a percepção de em que pé estão os projetos de ficção que desenvolvo. Sempre há mais de um texto em andamento e eu preciso pensar neles durante o correr do dia, pois sei que, dificilmente, conseguirei separar o período exclusivo para me dedicar à redação.
Em que hora do dia você sente que trabalha melhor? Você tem algum ritual de preparação para a escrita?
Algo que não é exceção para quem escreve ficção, é que meu trabalho “oficial” ocupa boa parte do meu tempo e do meu esforço. Ainda que meu horário de aulas seja entre as 18h e as 21h, preciso inserir o tempo de planejamento e deslocamento nessa conta. Três horas de aula, duas horas de deslocamento, três horas de planejamento de aula/correção de trabalhos/burocracia institucional. Devo ficar na média de oito horas diárias dedicadas ao meu emprego “que paga as contas”. Quando consigo resolver minha rotina de professor, a mente já não está em seu melhor estado. Imagino que não seja diferente com diversas outras profissões. Incluo, nessa conta, seis horas de sono, três horas para cozinhar/alimentar-me/cuidar do corpo, duas horas para cuidar da casa/mercado/problemas familiares/burocracias da vida, mais três horas para informar-me/conversar com pessoas amigas/lazer, o que inclui a leitura de ficção.
Percebe-se que o dia acabou e algumas coisas podem ter ficado de fora. Se eu tiro de um lado, preciso compensar de outro, ou me enrolar nos dias seguintes (o que é mais comum). Separar um tempo exclusivo para a escrita de ficção tem sido meu maior desafio desde que decidi me dedicar com mais seriedade.
Não foi difícil compreender que muitas das dicas para desenvolver-se como pessoa escritora são incompatíveis com a minha realidade. A ordem de “apenas sente-se e escreva”, não funciona e nunca funcionou para mim. Meus melhores momentos para exercitar a escrita costumam já estar ocupados com outras atividades.
Eu penso melhor e sinto-me mais criativo durante a tarde e começo da noite. Durante os dias úteis, procuro realizar anotações rápidas para meus projetos em desenvolvimento. Isso inclui não apenas a escrita de ficção, mas projetos de artes visuais e podcasts. Ou seja, preciso trabalhar com as brechas de minha rotina de trabalho.
Desde 2018, tenho me dedicado a alguns projetos fixos e aprendido e lidar com essas brechas. Assim, consigo compor paródias semanais para o MIDcast Política e organizar pautas para gravações outros dois podcasts dos quais faço parte (Não Pod Tocar e Pindorama). Como realizo a edição áudio de partes desses projetos, preciso adiantar o trabalho de professor para liberar tempo de agenda em alguns dias. Já no caso de gravações de programas, é o tempo de sono que costuma ser sacrificado. Ainda que com alguns acidentes, isso tem funcionado nos últimos três ou quatro anos. Duas pequenas crônicas e duas resenhas mensais, um ensaio bimensal, um conto por trimestre, uma noveleta ou novela por semestre. Fico feliz com o espaço que consegui encontrar para a escrita de ficção no meu cotidiano.
Mas, isso significa que não consegui estabelecer, propriamente, um ritual para a escrita de ficção. Se preciso criar e me aproveitar de brechas, é possível que esses rituais aconteçam em segundo ou terceiro plano. No entanto, tenho alguns mecanismos que disparam meu desejo imediato de escrever ficção e me ajudam a solucionar problemas no andamento das narrativas. Faço uso desses mecanismos fora da correria. Quando sei que terei tempo para escrever, mas não estou particularmente instigado, assisto algum curta-metragem ligado ao tema ou ao gênero que pretendo trabalhar. Aliás, assistir curtas-metragens pode ser um ótimo modo de compreender o funcionamento de narrativas curtas, como contos e noveletas.
Você escreve um pouco todos os dias ou em períodos concentrados? Você tem uma meta de escrita diária?
Muito em decorrência da rotina que apresentei acima, desisti de estabelecer uma meta de escrita diária, semanal ou para qualquer período. Há algumas histórias nas quais trabalho e que tenho a perspectiva de terminar em poucos meses. Há outras histórias que sei que ficarão para o futuro.
Durante os dias úteis, sempre que uma ideia surge, tanto para uma nova história quanto para uma que está em andamento, eu a anoto. Celular, caderno, verso de prova, nota de voz, qualquer lugar possa servir para fazer a anotação. Assim que consigo liberar um tempo para retornar, reescrevo a anotação e a insiro no devido lugar.
Isso pode parecer meio caótico (e talvez seja), mas, contanto que a maior parte da minha rotina permaneça organizada, os momentos em que consigo escrever tendem a funcionar bem. Normalmente, é nos fins de semana que consigo separar algumas horas seguidas para a escrita. Caso eu tenha separado boa quantidade de anotações, a edição desse material e a sua inserção nas narrativas em andamento serão razoavelmente rápidas e me deixarão satisfeito. Hoje, não me preocupo mais com a quantidade de palavras. Eu escreverei a história. Quando finalizada, procurarei uma casa que a receba.
Como é o seu processo de escrita? Uma vez que você compilou notas suficientes, é difícil começar? Como você se move da pesquisa para a escrita?
Hoje, eu organizo meus projetos de escrita de modo que eu possa acompanhar a situação de cada conto, noveleta, novela ou romance iniciado. Mesmo que o material esteja apenas como argumento, ele ganhará um espaço nessa “planilha”. Isso permite que eu compile material e insira anotações em projetos por meses ou anos.
Quando termino um texto e o envio para avaliação ou edição, procuro passar para o projeto que esteja mais adiantado. Depois que estabeleço o argumento do texto, insiro informações de pesquisa (o que deve ocorrer até a finalização), estabeleço personagens e o enredo básico. Antes de “atacar” o texto, eu estruturo toda a história em cenas. Cada cena ganha uma descrição suscinta do cenário, acontecimentos, relevância para o desenvolvimento das personagens envolvidas e ganchos com as cenas anterior e posterior.
Somente quando um projeto se encontra nessa etapa, considero que está suficientemente adiantado para chegar nos primeiros lugares da fila de escrita. A partir daí, virá o sofrimento de narrar, reescrever, recortar, abandonar e resgatar.
Como você lida com as travas da escrita, como a procrastinação, o medo de não corresponder às expectativas e a ansiedade de trabalhar em projetos longos?
Talvez, por ter desenvolvido pesquisa acadêmica por um bom tempo e por ter trabalhado em projetos de artes visuais que necessitaram de anos para serem realizados, eu não tenha problema com projetos longos. Nessa mesma linha, acredito que os congressos, seminários, colóquios, bancas de conclusão de curso, aceites e recusas de artigos e processos editorais de periódicos acadêmicos me ajudaram muito com os receios e as expectativas.
A procrastinação, por outro lado, é um problema que ainda preciso driblar. Não quero que a escrita se torne mais um “ponto batido”. Ou seja, não vou me obrigar a escrever. A sobrevivência em um sistema de exploração e culpa já é difícil o suficiente. Não pretendo deixar que a culpa produtivista contamine as poucas coisas que ainda tornam essa vida prazerosa.
Considero que, para que eu fique satisfeito com o resultado da minha escrita, ele deverá conter alguns elementos que eu só serei capaz de manejar com a procrastinação. Quando digo que preciso estar informado para construir enredos relevantes e atuais, isso não significa apenas saber sobre os acontecimentos grandiosos e sérios que movem o mundo. Eu quero saber das besteiras que as pessoas discutem nas redes sociais, eu quero entrar em contato com o irrelevante, o inútil, o grosseiro e o inconsequente. Sem saber o que pode ser risível no tempo em que eu vivo, como eu poderia trabalhar esses elementos em minhas histórias?
Quantas vezes você revisa seus textos antes de sentir que eles estão prontos? Você mostra seus trabalhos para outras pessoas antes de publicá-los?
É difícil saber quando um texto está pronto. Depois que fecho a história, faço duas leituras com a intenção de limpar os erros mais básicos do texto. Com mais duas leituras, reescrevo alguns trechos, deleto outros e completo pequenas lacunas.
Dificilmente envio um texto para alguma chamada de trabalhos sem que ele tenha passado pela leitura de uma ou duas pessoas. Uma das muitas partes boas de estar envolvido com coletivos de arte e aprender a trabalhar em conjunto, é construir relações que te permitem trocas profundas em seu processo criativo.
Leituras críticas e sensíveis são fundamentais. Digo isso não apenas com relação à ficção. Caso essa preocupação existisse em trabalhos acadêmicos, evitaríamos muitas publicações problemáticas ou abertamente racistas, misóginas e classistas. Mesmo a pessoa que se considere mais intelectualizada e atualizada (talvez principalmente essa pessoa) poderá cometer erros que apareceriam com nitidez em uma leitura crítica atenta.
Nesse sentido, fazer parte de uma comunidade de escrita soluciona uma série de problemas. Ainda que você não possa pagar pelos serviços de leitura crítica e sensível antes de enviar seu texto para uma chamada de trabalhos, se você estiver em uma comunidade de escrita, será muito mais simples realizar trocas. Você lerá os textos de outras pessoas e terá seus textos lidos. Você poderá compreender os processos criativos próximos do seu, identificar seus deslizes no trabalho de outras pessoas e deixar que sejam apontados no seu.
Além disso, ao responder chamadas de trabalho, sempre observo se há a indicação de que o texto passará por processo de edição. Isso é uma das garantias de seriedade para a publicação. No caso de publicação independente, quando não há a possibilidade de pagar pelos serviços de edição e preparação de texto, retornamos para a necessidade de integrar-se a comunidades de escrita.
Como é sua relação com a tecnologia? Você escreve seus primeiros rascunhos à mão ou no computador?
Eu passo boa parte do meu dia na frente do computador. Por um lado, isso torna quase inevitável que eu apenas abra o documento quando surge um momento para a escrita de ficção. Por outro lado, o cansaço da tela faz com que o papel e a caneta se tornem ainda mais interessantes e calmantes.
Manuscrever é uma prática que nunca perdi. Há um móvel de arquivo, ao lado da mesa do escritório, em que ainda guardo dezenas de cadernos e centenas de páginas soltas de manuscritos da adolescência e da juventude. Tenho tentado digitar esse conteúdo aos poucos.
Durante a graduação e o mestrado, boa parte do material que publiquei como artigos acadêmicos tinha sua versão inicial nos cadernos de anotações. Quando escrevo à mão, sinto um compromisso menor com a forma correta do texto e com a estrutura geral da história a ser contada. Gosto de puxar setas, fazer rabiscos, criar esquemas não verbais. Isso faz com que a etapa de digitação dos manuscritos seja, em alguma medida, uma primeira etapa de edição.
Hoje, acredito que eu consiga mesclar os meios analógicos e digitais durante o processo de criação. Um conto curto surge no caderno de anotações, é corrigido, lapidado ou estendido na primeira digitação, agrega cenas guardadas em mensagens de texto do celular e diálogos deixados como comentários em leituras aleatórias.
O ponto de partida pode ser outro. Um nota de voz, um causo contato para uma amiga, em uma troca de mensagens, duas frases rabiscadas na lateral da lista de atividades do dia. Complementos, peças encaixadas, partes que se juntam a textos guardados por meses. Acredito que essa relação com o digital e o analógico enquadra-se no modo como encontrei para trabalhar nas brechas de tempo das obrigações do cotidiano.
De onde vêm suas ideias? Há um conjunto de hábitos que você cultiva para se manter criativo?
Ler ficção, desde muito cedo, é a minha principal fonte de ideias para a escrita. A maioria das pessoas que escreve, em algum momento, compreende e repete o lembrete de que a originalidade é supervalorizada. É certo que isso não é uma ode à pura repetição (se isso fosse possível). Trata-se mais de conseguir reconhecer aquilo que te instiga na ficção, para que você possa relacionar esses elementos com o que você observa no mundo, na convivência, no noticiário, nas suas memórias, no seu estado emocional.
Minha escrita, e as ideias que escolho para serem desenvolvidas nela, é baseada na leitura. Quando digo leitura, coloco em primeiro plano a literatura, mas não excluo os demais tipos de produção que demandam leitura. Cinema, música, exposições de arte. Essas leituras me permitem fazer escolhas, recortes, apontamentos sobre as realidades das quais faço parte. Se eu apenas considerasse escrever ficção sobre o que me impacta nas minhas relações pessoais, no noticiário, nas discussões políticas, na pesquisa acadêmica e no trabalho, não sairia uma linha.
A pesquisa acadêmica me ensinou a recortar e abrir mão do que não cabe em um processo, por mais que me envolva naquele momento. Ao estabelecer parâmetros, eu consigo filtrar as ideias que pretendo desenvolver daquelas que me afetam, mas sobre as quais não vou me debruçar criativamente. O parâmetro que escolhi para fazer isso também é afetivo: o modo como o que leio me afeta.
Isso significa que o que eu escolho ler é fundamental para o que eu escolho trabalhar na escrita. Hoje, eu procuro manter três linhas de leitura: títulos contemporâneos escritos desde América Latina, obras estrangeiras atuais (com predileção para o Sul geopolítico) e obras marcantes de décadas passadas.
Como meu foco está na ficção especulativa, a maioria das obras que separo para leitura estão nos gêneros e subgêneros do fantástico, da ficção científica e do horror. Mas, sem uma margem para dramas realísticos, tragédias, comédias e crônicas, eu acredito que deixaria passar muito do que considero de qualidade nas demais leituras.
O que você acha que mudou no seu processo de escrita ao longo dos anos? O que você diria a si mesmo se pudesse voltar à escrita de seus primeiros textos?
Essa é uma experiência que tenho feito. Quando pego alguns manuscritos que redigi vinte anos atrás, dez anos atrás, cinco anos atrás, consigo perceber as diferenças. Muitas vezes, isso pode ser constrangedor. Mas, esse constrangimento passa.
Eu consigo perceber que, mesmo nos textos de juventude, há algo de interessante que, talvez, eu queira desenvolver agora. A experiência, a leitura e a colaboração de outras pessoas fazem com que tenhamos mais consciência sobre o nosso texto.
A experiência me deu método de trabalho e me fez não ter pena da narrativa. Eu percebo isso não apenas com relação ao meu processo de escrita, mas aos meus processos criativos de modo amplo. O que a ideia de arte significava para mim, vinte anos atrás, é distinto do que significa hoje. A principal mudança, talvez, seja a perda do entendimento de que um trabalho de arte é algo sacrossanto, pertencente a uma realidade superior, intocável e capaz de elevar espíritos.
É obvio que, quando adolescente, eu não pensava nesses termos. Mas, logo após ingressar na graduação em Artes Plásticas, eu compreendi que, mesmo sem os termos, esses eram os pensamentos. Quebrar o entendimento do texto literário como algo sagrado e superior foi fundamental para a consciência do meu processo criativo de escrita.
Que projeto você gostaria de fazer, mas ainda não começou? Que livro você gostaria de ler e ele ainda não existe?
Não sei quanto tempo eu demoraria para pensar em uma resposta para essa pergunta. Ao menos se fosse para pensar em uma resposta que me deixasse satisfeito. Tanta gente começa a escrever ficção por desejar ler um livro que não existe ou que nunca tenha encontrado! De repente, esse é um dos desejos motivadores para a escrita de ficção e que precisam ser alimentados, enquanto a gente quiser continuar a escrever.
Uma resposta que me parece mais justa é dizer que há muitos livros que eu gostaria de ter lido e que ainda não encontrei. A cada ano, eu me encontro com conjuntos de livros que não fazia ideia de que existiam. Aquelas produções estavam ali, apenas nunca foram sucesso de público.
Hoje, eu quero muito continuar a ler histórias com personagens, cenários, conflitos e enredos distantes dos ideais europeus e estadunidenses. Ainda é divertido quando leio livros que brincam com os clichês construídos nessas tradições. Mas, é muito mais instigante e enriquecedor quando encontro histórias que se distanciam disso.
Isso tem relação com os projetos que eu gostaria de desenvolver, mas ainda não pude iniciar. Eu tenho trabalhado em contos, noveletas e novelas. Narrativas com essas extensões são as que mais gosto de produzir e as que se enquadram no tempo que eu tenho disponível, no momento. Sei que, se eu decidisse me dedicar a um romance longo, eu precisaria abandonar algumas das coisas que faço. Mas, talvez, o projeto que eu gostaria de desenvolver, agora, e sei que precisará esperar algum tempo, é a edição de uma revista literária.
Eu amo revistas literárias e fico muito feliz com o surgimento de novas e mais variadas publicações. Caso surgisse tempo e eu precisasse escolher entre escrever um romance e editar uma revista, ficaria muito dividido. Enquanto não preciso me decidir entre essas duas possibilidades, já fico contente de poder ler tantas histórias ótimas, escritas por pessoas que vivem, comigo, essa mesma época de caos e absurdo.