Rodrigo Chemim é doutor em Direito pela UFPR e autor de Mãos Limpas e Lava Jato: a corrupção se olha no espelho.
Como você começa o seu dia? Você tem uma rotina matinal?
Normalmente acordo cedo, por volta de seis e meia até porque gosto de ter tempo para tomar café da manhã com calma e ler nos aplicativos de celular as reportagens de jornais “on line” que me interessam. Procuro ler um jornal local (Gazeta do Povo) e outro de fora (O Estadão). Quando dá tempo ou estou acompanhando algum assunto internacional procuro ler também o New York Times e um jornal italiano (a preferência é de natureza pessoal; gosto da língua e do país) que pode ser o Corriere della Sera ou Il Fatto Quotidiano. Essa é uma das grandes vantagens da tecnologia. Depois não há propriamente uma rotina, já que os compromissos de um dia iniciam com aulas na faculdade e de outro podem ser dedicados a trabalhar num processo ou mesmo a escrever um artigo ou preparar um livro ou uma aula.
Em que hora do dia você sente que trabalha melhor? Você tem algum ritual de preparação para a escrita?
Como minhas atividades diárias são de diversas ordens, intercalando aulas, leituras, escrita, elaboração de peças processuais, revisão de textos, bancas e isso tudo varia muito de um dia para outro, fica difícil estabelecer uma preferência de horário. Diria, então, que depende muito do dia. Quando o dia proporciona mais tempo para a escrita, gosto de iniciar por volta de dez horas da manhã, pois aí já me atualizei das novidades do dia, resolvi compromissos respondendo e-mails e mensagens de whatsapp e “me libero” para concentrar na escrita. Mas quando o dia é corrido no início, posso render bem também à tarde e início da noite. Já tive dias que comecei a escrever às 23 horas, aproveitando o silêncio da casa, e entrei madrugada adentro rendendo bem.
Você escreve um pouco todos os dias ou em períodos concentrados? Você tem uma meta de escrita diária?
Depende de que tipo de escrita estamos falando. Se for para fins processuais o faço todos os dias. Quando são textos para artigos, capítulos de livro ou livro mesmo, o espaçamento é maior. Não tenho metas diárias de escrita. Tenho metas de prazos muitas vezes, mas isso não me obriga a escrever tantas páginas por dia. Em alguns dias posso produzir muito e noutros muito pouco. O que não posso deixar acontecer é perder um prazo estabelecido.
Como é o seu processo de escrita? Uma vez que você compilou notas suficientes, é difícil começar? Como você se move da pesquisa para a escrita?
Se é um trabalho profissional, leio e pesquiso o que for necessário e já construo mentalmente a estrutura da argumentação. Daí é sentar e escrever. Costuma sair fácil, numa sentada, em pouco tempo. Vale anotar que debito essa “facilidade” a anos de estudo prévio sobre temas complexos que acabam gerando certo domínio da matéria. Não existe milagre, tudo decorre de muita leitura e estudo. Nesse ponto lecionar ajuda muito, já que te obriga a estar sempre atualizado e estudando continuamente. Para escritas acadêmicas também não há fórmula única. Alguns temas me incomodam, outros surgem espontaneamente, outros decorrem da leitura de algum texto, outros aparecem num “insight” gerado numa conversa com amigos. De um jeito ou de outro eles vão amadurecendo antes na cabeça e quando sento para escrever jogo todo o resultado daquele prévio “brain storm” no papel. Depois releio o que escrevi. Reformulo o que não gostei, acrescento outros dados que me ocorreram na leitura, reorganizo as ideias e vou ajustando o texto. Também costumo retomar e aprofundar as pesquisas quando me deparo com algum aspecto que compreendo que não ficou adequado. Por vezes passo muito tempo pesquisando um detalhe que muitos julgariam absolutamente secundário ou mesmo descartável do texto, mas que para mim é importante. Se é um texto técnico ou histórico só me contento com fontes primárias de pesquisa. Já gastei muito dinheiro encomendando livros, inclusive junto a bibliotecas europeias que possuem programas de escanear obras raras para ter segurança de que a informação lida em fonte secundária ou terciária era correta. E já me surpreendi muito – e me decepcionei até – com informações equivocadas encontradas em autores de renome quando confrontadas com fontes primárias. Quando o texto não vai naturalmente amadurecendo antes na cabeça, o que ocorre, por exemplo, a partir de um convite para escrever sobre um determinado assunto, procuro organizar as ideias primeiro no papel, elaborando um plano para depois pesquisar, reorganizar o plano, pesquisar mais um pouco até me sentir seguro para desenvolver alguma coisa. Os piores convites são aqueles para textos em jornal impresso, com limitação de caracteres. O difícil nesse caso não é escrever sobre o tema pedido, mas limitar as ideias dentro do número de caracteres…
Como você lida com as travas da escrita, como a procrastinação, o medo de não corresponder às expectativas e a ansiedade de trabalhar em projetos longos?
Aprendi a me desinibir na escrita técnica com as aulas do Professor René Dotti. Ele nos obrigava a escrever textos técnicos sem citação alguma e dizia que é preciso começar de alguma forma. O importante é começar, dizia ele, depois se ajusta o texto, inclusive o começo, se não tiver sido a melhor ideia. Assim, aprendi a não ter muita inibição para começar a escrever. Porém, se disser que não tenho dias em que as ideias não fluem mentiria. Nesse caso é melhor fazer outra coisa, relaxar, ver um filme, sair de casa com a família, correr no parque. Não adianta forçar. Depois tudo vem mais fácil. Não costumo procrastinar. Se é pra fazer prefiro fazer logo, até porque se deixar pra depois dificilmente darei conta em razão de novos compromissos que vão se sucedendo. Sempre tive como norte não deixar acumular compromissos. Projetos de longo prazo não me assustam, o que é preciso é planejar e organizar as etapas.
Quantas vezes você revisa seus textos antes de sentir que eles estão prontos? Você mostra seus trabalhos para outras pessoas antes de publicá-los?
Depende do texto. Se é um trabalho com prazo curto, não é possível muita revisão. E se é uma petição ou texto mais técnico, não há muito o que ser revisado. Já trabalhos acadêmicos ou textos para livros, o cuidado deve ser maior. Se há tempo disponível procuro escrever, reler, revisar, reescrever até o momento em que considero que está ideal. Neste ponto, deixo o texto de lado para que ele “fermente”. Então procuro escrever outras coisas, me ocupar de outros assuntos, até considerar que aquele primeiro tema não é mais o que me domina a mente. Nesse momento releio o texto que havia deixado de lado e consigo perceber seus problemas que antes me passavam despercebidos. Promovo então novos ajustes. Isso me permite ser crítico de mim mesmo com maior isenção e distanciamento de minhas próprias ideias. Quando você está muito “mergulhado” num texto costuma não enxergar mais as falhas que ele possa conter. É como se fizesse um exercício de autossuspensão de meus preconceitos e conseguisse olhar de fora a mim mesmo. Em algumas ocasiões jogo fora trechos inteiros e reescrevo partes ou acrescento novos capítulos. Textos mais curtos, porém importantes, costumo passar para meus pais (são formados em direito também; meu pai foi professor de direito penal) e para um amigo, com igual capacidade crítica, lerem também. Sempre ajuda um olhar externo crítico, mas é necessário que seja uma pessoa tão amiga sua que tenha a liberdade de te dizer que está muito ruim ou que precisa melhorar isso ou aquilo. Se for só para elogiar não serve. Nesse caso, quando o elogio vem você pode confiar que é sincero. Isso dá maior segurança.
Como é sua relação com a tecnologia? Você escreve seus primeiros rascunhos à mão ou no computador?
Quando comecei a escrever a única tecnologia disponível era a máquina de escrever. E eu era uma daquelas pessoas que não tinha muita habilidade com as teclas, era alguém que “catava milho”, como se dizia. Quando estava na faculdade cheguei a fazer curso de datilografia para ajudar na rapidez. Melhorou e depois com o treino a agilidade na datilografia veio naturalmente. De qualquer forma não podia errar. Do contrário era preciso recomeçar. Assim, em textos mais complexos aprendi primeiro a escrever manuscritos e depois reproduzi-los na datilografia. Com o início da atividade profissional na carreira de Promotor de Justiça o excessivo volume de serviço, aliado aos prazos curtos do processo, não permitiram mais essa prévia elaboração manuscrita. Ou você fazia bem-feito da primeira vez ou perdia o prazo. Como perder prazo não era uma opção verdadeira treinei muito a elaboração mental do texto para depois permitir a fluidez das ideias no papel. Mas com o computador a coisa ficou muito facilitada. Então me adaptei rapidamente e hoje não abro mão de usá-lo. E posso dizer que hoje consigo escrever praticamente na mesma velocidade com que penso, o que ajuda bastante. A tecnologia também vem migrando do computador para o celular que virou um computador portátil. Já me adaptei a ele também, inclusive a essa nova modalidade de escrita com os polegares. É mais cansativo, mas muitas ideias já desenvolvo antes no bloco de notas do celular e depois envio um e-mail para mim mesmo com elas, passo para o computador e sigo dali. Hoje uso muito pouco o registro manuscrito das ideias.
De onde vêm suas ideias? Há um conjunto de hábitos que você cultiva para se manter criativo?
Essa pergunta em boa medida acabei respondendo acima, na resposta à pergunta número quatro. Poderia acrescentar apenas que sempre que tenho uma ideia anoto no bloco de notas do celular. Algumas se perdem ali, outras viram artigos, outras são aglutinadas em novos temas. Procuro ler sempre de tudo um pouco e também faço leituras de autores cujas ideias não necessariamente concordo, seja para repensar algumas coisas, seja para treinar o senso crítico.
O que você acha que mudou no seu processo de escrita ao longo dos anos? O que você diria a si mesmo se pudesse voltar à escrita de seus primeiros textos?
Melhorou muito a qualidade da pesquisa o que facilita a escrita. A tecnologia ajudou bastante nesse sentido. Para pesquisar no início dos anos 90 era preciso muito mais tempo, dinheiro e deslocamento para acessar bibliotecas e nem sempre se localizava uma fonte importante de pesquisa. Havia uma evidente limitação de informação. Hoje se pesquisam textos clássicos on line, se compram livros do mundo inteiro com um “click” e eles chegam em poucos dias em sua casa. Isso faz muita diferença na qualidade da pesquisa e amplia o seu universo de compreensão a respeito de um tema. Essa gama de fatores contribui decisivamente para a qualidade da escrita. Soma-se a isso o natural amadurecimento das ideias, decorrência de novas leituras que geram novas compreensões de mundo e enriquecem o vocabulário. O “jovem” filósofo Wittengstein dizia que “os limites de minha linguagem significam os limites de meu mundo”. Para além disso, achou que tinha resolvido todos os problemas do mundo. Já adulto, Wittgenstein se tornou o maior crítico de si mesmo, mas essa frase em particular ainda pode ser dotada de importante significado, alusivo à minha limitação de compreensão do mundo pela limitação do domínio da linguagem. Seguramente minha capacidade linguística hoje é muito mais ampla hoje do que era na juventude. Ademais, algumas “certezas da juventude” já não são as mesmas ou não têm a mesma potência que já tiveram em relação a determinados temas e muitas influências externas que antes chegavam a ser “engolidas com farinha” pela simples reverência à autoridade acrescida de insuficiência de base teórica para identificar falhas discursivas, hoje já não enganam mais muito facilmente. Acresce-se, ainda, o treino na escrita que melhora com o tempo. Isso tudo somado, se pudesse dar um recado a mim mesmo na juventude diria: estude mais, desconfie mais, leia mais, absolutize menos, mas cuidado para não cair no paradoxo da relativização excessiva, tão nociva quanto as certezas obnubilantes.
Que projeto você gostaria de fazer, mas ainda não começou? Que livro você gostaria de ler e ele ainda não existe?
Gostaria de escrever um manual de processo penal que é a matéria que mais domino e que acho que poderia contribuir para passar alguns temas complexos com maior didática aos alunos da graduação de Direito. Mas sempre entendi que para tanto é preciso amadurecer ideias, do contrário se corre o risco de ter que se desdizer a cada nova edição ou, pior, insistir em ideias erradas e ficar filiado a uma mentira pelo medo de ser mal compreendido com a mudança de opinião. Nesse aspecto sempre me recordo do grande professor italiano Francesco Carnelutti, que desenvolveu uma teoria geral do processo ainda na juventude na primeira metade do século XX e gerou uma legião de seguidores que passaram a reproduzir seu discurso. Sucede que vinte anos depois ele compreendeu que estava errado e mudou a abordagem desse tema, dizendo algo como “esqueçam o que eu falei”. Carnelutti foi um grande professor, um gênio do processo e teve essa dignidade, essa coragem de dizer que errou. Coisa rara hoje em dia. O que se percebe é que muita gente erra a abordagem de alguns temas em manuais e, mesmo quando se aponta o erro o sujeito em vez de assumir que errou, procura insistir no erro buscando novos argumentos que em última análise são tão vazios quanto os primeiros. O problema é que quando se coloca uma ideia no papel ela deixa de ser só sua. Muitos seguidores de Carnelutti ainda defendem a teoria que ele mesmo disse estar errada. Um projeto de manual, portanto, exige mais amadurecimento. Quem sabe um dia.
Quanto ao livro que gostaria de ler e ainda não existe é um novo livro do Umberto Eco, no estilo do romance “O Nome da Rosa”. Como Umberto Eco é falecido, aguardemos quem possa vir a se aproximar de seu estilo único. Se souberem de algum, aceito indicações de leitura.