Roberto Fideli é escritor, mestre em Comunicação e professor de Jornalismo Geek.

Como você começa o seu dia? Você tem uma rotina matinal?
Minha rotina matinal consiste em me levantar da cama de olhos ainda fechados e incapaz de andar em linha reta, esbarrar em todas as superfícies possíveis e então tomar quantidades exageradas de café com o objetivo de parecer com algo próximo de um ser humano, o que só acontece quando já está anoitecendo. Como eu trabalho em horário comercial para uma agência de publicidade, todo esforço matutino é voltado para fazer o trabalho que no fim paga as contas, com pouca influência no processo de escrita de ficção.
Em que hora do dia você sente que trabalha melhor? Você tem algum ritual de preparação para a escrita?
Antes mesmo de trabalhar em um emprego das 09h00 às 18h00 eu sempre rendi melhor à noite. Então o horário depois da janta costuma ser um bom horário para escrever, algo entre as 20h00 e às 23h00 (e quando eu trabalhava como freelancer, a madrugada era uma ótima companheira, por causa do silêncio – agora já não posso contar com ela, pois preciso acordar cedo na manhã seguinte). Quando estou particularmente inspirado e com tempo disponível, ainda consigo escrever durante a tarde, mas hoje em dia isso é raro, pois tenho mais trabalho e menos tempo à disposição. O ritual para escrever é sempre o mesmo: coloco fones de ouvido com música alta – algo que tenha um “clima” semelhante ao que eu estou buscando na história (pode ser uma playlist ou pode ser a mesma música tocada em looping, e é bom que ela seja instrumental, pois as letras atrapalham a concentração) e procuro me isolar de qualquer influência externa. Feito isso, eu encaro a página em branco até sentir um ataque de ansiedade descendo feito uma avalanche e só então começo a escrever.
Você escreve um pouco todos os dias ou em períodos concentrados? Você tem uma meta de escrita diária?
Quando estou trabalhando na escrita de um projeto novo, seja um romance, uma novela ou um conto, eu me programo para escrever um pouco todos os dias. Para mim isso é fundamental: se o ritmo da escrita for quebrado é muito difícil retomá-lo. Então eu escrevo, ou escrevia, todos os dias uma média de duas mil palavras por dia (se for um romance) nos dias de semana, e mil durante o fim de semana, porque também sou humano apesar de algumas pessoas afirmarem que sou um ciborgue. Quando se trata de um conto ou uma novela, já não estabeleço meta de palavras, só tento escrever o máximo possível todos os dias. Para mim, escrever contos e novelas muitas vezes demora mais do que um romance, por mais estranho que possa parecer. Gosto de contar e falar e gastar tempo com meus personagens, então condensar tudo em um espaço pequeno exige um esforço maior de mim. Mas, com textos longos, estabelecer uma meta de palavras por dia, alta ou baixa dependendo da perspectiva, é algo que sempre me motiva. Eu mantenho um log de tudo o que produzi naquele dia, para ver se estou cumprindo a meta ou não, e sou bem rígido com isso. Na maioria das vezes, esse recurso traz mais benefícios do que malefícios e me ajuda a seguir em frente. Quando não cumpro a meta deixo pequenas notas como “você teve uma crise de insônia”, ou “estava com dor ou doente” ou algo do tipo. Senti isso com força especial no último romance que escrevi, que foi muito difícil. De pouquinho em pouquinho (no fim não cumpri a meta, só escrevi 1900 palavras por dia, que vergonha), acabei concluindo o projeto que havia me comprometido a fazer. E isso é de suma importância, pois detesto deixar coisas inacabadas.
Como é o seu processo de escrita? Uma vez que você compilou notas suficientes, é difícil começar? Como você se move da pesquisa para a escrita?
Eu tenho uma cabeça… estranha. Normalmente, depois de ter uma ideia, eu a deixo marinando por dias, semanas, meses ou anos, até decidir que ela vai ser meu próximo projeto. Quando isso acontece, começo a concentrar todas as minhas energias nela e vou compilando ideias em um arquivo no qual se encontra um resumo de tudo, incluindo o final. Dar nomes aos lugares e personagens sempre é mais difícil do que a sequência de acontecimentos e o final costuma ser a primeira coisa que eu sei da história, de modo que faço uma espécie de engenharia reversa até chegar nele. Eu nunca, jamais, sob hipótese alguma, começo uma história sem saber o final (o que não é uma regra para outros escritores, é só o jeito como minha cabeça funciona). Se eu tiver pedaços da história, mas não souber como ela termina, então a deixo em modo de espera e abro espaço para alguma outra coisa. Depois de estudar muito o resumo, abro um arquivo de Word e entro em pânico antes de começar a escrever (tipo suar frio e ter tremedeira, não estou brincando). Minha posição de partida sempre é o bloqueio criativo. Para mim, escrever é como sintonizar em uma estação de rádio. Quando consigo sintonizar na estação correta, a história vem de modo intuitivo; às vezes em ritmos mais lentos, às vezes mais rápidos, às vezes como uma verdadeira enxurrada de palavras. Já escrevi um livro de 100 mil palavras (o que deu umas 330 páginas de Word) em um mês. Isso é algo que não recomendo a ninguém, pois não há pulso que aguente, mas foi o que aconteceu. Quanto à pesquisa: conheço muitos autores que preferem fazer toda a pesquisa primeiro, para então começarem a escrever. Normalmente eu não faço isso, a menos que esteja trabalhando com um texto que exige um certo cuidado especial, como foi o caso de uma história em que a protagonista pilotava um caça a jato. Nesse texto específico, eu estudei termos de aviação militar, assisti filmes e vi entrevistas com pilotos de verdade antes de começar. Mas isso é raro. Sim, há sempre um pouco de pesquisa aqui e ali antes de pôr a mão na massa, mas normalmente o grosso dela acaba sendo feito nas futuras edições do texto, depois que ele já foi concluído. Para mim, o mais importante é escrever a história de uma só vez e sem pausas e depois ir corrigindo os problemas e usando a pesquisa para dar um grau de verossimilhança maior para o que está sendo contado. O que também mostra como funciona minha relação com a pesquisa: o objetivo dela é deixar a história verossímil, e não necessariamente realista. A história em si e o desenvolvimento dos personagens sempre ocupam o espaço central no meu processo e isso não pode mudar, pois perco a motivação com muita facilidade. Se começar pela pesquisa, sou capaz de passar meses pesquisando, ter dezenas de páginas de anotações… e nenhum livro.
Como você lida com as travas da escrita, como a procrastinação, o medo de não corresponder às expectativas e a ansiedade de trabalhar em projetos longos?
Como eu disse, minha posição de partida é sempre o bloqueio criativo, então quando eu termino uma história, demoro semanas ou até meses para engrenar outra e durante esse tempo fico me arrancando os cabelos porque não consigo escrever. Chamemos de “ressaca”, cuja gravidade também depende muito do tamanho e do grau de dificuldade daquilo que eu escrevi antes. Estabelecer metas e manter uma disciplina de escrita são fundamentais para mim, então escrevo todos os dias e tento digitar duas mil palavras por dia. Sempre. Gosto muito de uma coisa que a Octavia Butler disse sobre o poder do hábito: é muito raro eu me sentir inspirado o tempo todo. Aconteceu, quando eu escrevi um livro de 330 páginas em um mês, mas é algo tão esporádico que não posso contar com isso. Pense em um time de futebol que depende de um único craque: o que acontece se naquele jogo específico o craque decidir que não está muito a fim de jogar ou tem uma lesão no tornozelo e fica longe dos gramados por seis semanas? Então me forço a escrever um pouco que seja, todos os dias, mesmo que não sinta qualquer desejo. Saber o final ajuda a ter menos travas e se eu encontro uma, passo por cima dela e continuo escrevendo mesmo que isso deixe uma lacuna que eu precise preencher depois. Medo e ansiedade são companheiros constantes do primeiro rascunho e continuam sendo na autoedição, que é quando eu preciso fingir que sabia o que estava fazendo o tempo todo, como Neil Gaiman disse. Depois de concluído, eu jogo o texto no fundo de uma gaveta (ou no caso, numa pasta na Nuvem) e o deixo lá, quieto, até sentir coragem o bastante para trabalhar nele de novo. Isso pode demorar bastante. Cheguei ao ponto de deletar livros inteiros e começar do zero porque simplesmente não gostei do resultado e achei que assim seria mais fácil. Não faço mais isso. Posso não ter tanta experiência, nem sabedoria, mas já percebi que nunca gosto do que estou escrevendo, então não faz sentido ficar deletando e recomeçando ou reescrevendo trechos inteiros antes de seguir em frente. O importante é dar um jeito de a história sair, não importa como, e daí trabalhar nela até me sentir satisfeito o suficiente. Tem sido difícil, mas com o passar do tempo estou lentamente me livrando do medo de não corresponder às expectativas dos outros. Já me convenci de que não serei um escritor universalmente amado e que isso não é algo ruim. Não quero ser o novo fulano ou ciclano, só quero ser a melhor versão de mim mesmo, por isso tanto trabalho de edição e reedição. Lidar comigo continua sendo a coisa mais difícil de todas, porque nunca penso “ah, puxa, como eu gostaria de escrever como aquela pessoa”, só como eu gostaria de escrever melhor do que escrevo agora.
Quantas vezes você revisa seus textos antes de sentir que eles estão prontos? Você mostra seus trabalhos para outras pessoas antes de publicá-los?
Eu edito e reviso até que minha agente diga “Roberto, chega” e tire o texto da minha mão ou que ele seja publicado. Caso contrário, sempre terei uma nova ideia, direi a mim mesmo que encontrei um jeito melhor de narrar uma determinada passagem, ou descrever uma determinada cena, até que uma dessas duas coisas aconteça. É como se o livro ficasse me encarando e sussurrando no meu ouvido, como um fantasma. Ninguém é mais crítico dos meus textos do que eu, e nunca estou satisfeito (não é à toa que minha newsletter se chama “Escrivaninha da Neurose”). Revisar um texto é um processo de autodescoberta: o primeiro rascunho é quando eu coloco a história no papel. O segundo é quando começo a entender mais profundamente o que ela significa e o que está querendo dizer. O terceiro é para aparar as arestas e encontrar soluções e palavras melhores. O quarto e quinto já são sintomas da neurose. Às vezes, me pego surpreso ao encontrar temas subjacentes que não faziam parte do projeto original e me esforço para trazer eles mais à tona quando sinto que isso é necessário – mas nunca deixo a ideia central ser substituída por outra. Meu pai costuma ser a primeira pessoa a ler meus textos, e confio muito na palavra dele. Só depois desse feedback e de uma nova reescrita que mando o rascunho para minha agente ou algum leitor beta que se disponha a lê-lo. É algo que eu recomendo a todo escritor: já recebi insightsmuito valiosos de leitores beta e usei muitas coisas que eles sugeriram em meus textos. Se for um texto muito longo, depois da terceira reescrita eu já cogito mandar para alguém – mas já houve exceções para mais e para menos. Com os textos curtos, já aconteceu de eu ficar satisfeito com um original depois da segunda reescrita. E também já aconteceu de eu revisar mais de seis vezes algo antes de deixar outros olhos lerem. Tudo depende do grau de dificuldade do material e das minhas ambições.
Como é sua relação com a tecnologia? Você escreve seus primeiros rascunhos à mão ou no computador?
Uma das coisas que mais amo na vida é o recurso de salvamento automático do Word. Ele já me tirou de encrencas potencialmente catastróficas. Entendo que muitos escritores vejam o papel e a caneta como um recurso mais seguro, mas para mim é impossível escrever à mão. Primeiro porque minha tendinite não deixa. Segundo, porque demoraria demais e não gosto de ficar trabalhando em um mesmo projeto por mais de três meses: caso contrário, a motivação que já é baixa some e eu corro o risco de não completar o projeto – e só consigo escrever um projeto de cada vez. Nunca usei nenhum aplicativo de auxilio de escrita para criar fichas de personagens ou gráficos ou qualquer coisa do tipo. Tudo fica na minha cabeça ou em diferentes pastas cheias de arquivos de Word e blocos de nota. Às vezes vira uma bagunça danada, mas eu sempre dou um jeito de me encontrar no meio dessa bagunça.
De onde vêm suas ideias? Há um conjunto de hábitos que você cultiva para se manter criativo?
Eu já disse que as pessoas me acham estranho? Tiro ideias de qualquer lugar; de um livro que eu li, ou de um filme, um documentário, de uma música, de uma conversa com alguém que me causou algum incômodo, de um sonho… O primeiro romance que escrevi veio de uma viagem que eu fiz a uma chácara de uma amiga. O cenário local me deu uma visão que se tornou a base para a construção da história e da personagem que seria a protagonista. O último livro que escrevi foi baseado em duas coisas: numa imagem que eu vi em um sonho e no desejo de escrever uma história de fantasia jovem adulta que fugisse dos padrões tradicionais porque eu havia acabado de ler um livro que achei muito ruim. Às vezes a coisa nasce de um desejo: quero escrever sobre tal tema ou tal gênero. Ele fica ali, no fundo da mente, quieto por um tempo, até que outros elementos se juntam e formam um enredo com o qual eu posso trabalhar. Um dos textos dos quais mais me orgulho veio de uma conversa que tive com minha mãe no sofá durante uma tarde sem nada marcante. Me lembro de ter corrido até o computador depois da conversa, escrito a primeira página do que veio a se tornar uma novela e pensado: “E agora? Não faço a menor ideia do que acontece em seguida”, mas o coração da história já estava ali. Assistindo a uma série de ficção científica chamada Babylon 5, de repente me veio o enredo, os personagens, o final, tudo. A ideia é só um primeiro passo; para transformá-la em uma história eu preciso de mais de estímulos. Não sei que tipo de hábitos eu cultivo que possam ser compartilhados aqui, pois na maior parte do tempo me sinto perdido em um deserto, então não sei o quão consciente é esse processo. Mas sempre defendi que ler e assistir de tudo (desde fantasia e ficção científica, que é o que eu gosto de escrever, até ficção realista, terror, poesia, livros sobre psicologia, filosofia, sociologia, enfim) são coisas de imensa valia para manter as áreas criativas da mente funcionando, mesmo quando não tenho consciência de que existem mecanismos em operação dentro delas.
O que você acha que mudou no seu processo de escrita ao longo dos anos? O que você diria a si mesmo se pudesse voltar à escrita de seus primeiros textos?
Talvez por ser do signo de touro, as mudanças vêm para mim em ritmo geológico (se bem que é provável que os continentes se desloquem em maior velocidade). Desse modo, o processo de escrita com as metas e a disciplina de escrever todos os dias estando ou não com vontade permaneceu o mesmo, pois funciona. Pode ser exaustivo, mas realmente funciona. Acho que em comparação com cinco ou seis anos atrás, quando comecei a escrever, digamos, “a sério”, eu me tornei uma pessoa mais assertiva, que sabe definir melhor o que quer e como alcançar o objetivo desejado em uma história. A qualidade técnica da prosa também melhorou, eu espero, de lá para cá, assim como meu conhecimento sobre estrutura narrativa e construção de personagens. Para ser franco, sempre me considerei um escritor ruim, mas um bom editor do que escrevo. Acho que estou me tornando um editor melhor, o que para mim é mais importante, já que o ato da escrita em si é muito intenso e intuitivo. Se eu tivesse algo a dizer para o Roberto que teve a ideia de expor seus pensamentos e sentimentos no papel, seria mais ou menos o que eu digo para mim mesmo hoje: que é preciso encontrar um equilíbrio entre ser humilde com relação ao próprio trabalho e ter baixa autoestima. Meu texto nunca vai estar tão bom quanto eu gostaria, mas isso não significa que está tão ruim quanto eu penso. E também gostaria de dizer a mim mesmo para ter menos medo. Sinto que minha literatura se beneficiaria de menos restrições autoimpostas.
Que projeto você gostaria de fazer, mas ainda não começou? Que livro você gostaria de ler e ele ainda não existe?
Ah, tem muitas coisas que eu gostaria de escrever e ainda não escrevi: ideias plenamente desenvolvidas na minha cabeça há anos, mas que ainda não ganharam as páginas porque sinto que não tenho qualidade técnica o bastante para escrevê-las, ou apenas desejos que não tomaram a forma de uma história com começo, meio e fim. Gostaria muito de escrever uma história de viagem no tempo, mas esse é o subgênero da ficção científica que mais me deixa inseguro. Gostaria de escrever uma história de terror, daquelas que realmente dão medo, mas medo é tão subjetivo que ainda não encontrei algo que me apavorasse e que pudesse transmitir o mesmo sentimento para outras pessoas. Gostaria de escrever uma história em que absolutamente nada acontece exceto a vida, gostaria de escrever um conto de fadas contemporâneo e gostaria muito de escrever uma história que unisse alta fantasia (magos, sacerdotes, deuses, dragões e feitiços) e a ficção científica high-tech (naves espaciais, trajes biomecânicos e robôs gigantes tripulados por seres humanos…). Não sei se esse tipo de coisa existe e eu é que tenho dificuldade para encontrá-la, mas é algo que gostaria muito de ver na literatura sem que fosse canhestro ou bobo. No meio audiovisual, sempre achei que os japoneses conseguiram encontrar uma maneira mais “orgânica” de unir as duas coisas do que no ocidente (embora eu possa admitir que Star Wars é um tipo de fantasia que se passa no espaço). Porém, como todo bom taurino, sou especialmente guloso. Então, se existe um tipo de livro que eu quero, mas que não existe, decido escrevê-lo eu mesmo.