Roberto Fideli é escritor, mestre em Comunicação pela Cásper Líbero.

Como você organiza sua semana de trabalho? Você prefere ter vários projetos acontecendo ao mesmo tempo?
Nunca gostei de ter vários projetos simultâneos. Às vezes acontece de ter mais de um edital aberto ao mesmo tempo e eu ter histórias para cada um deles. Mesmo assim, é quase impossível eu trabalhar em duas ou mais coisas simultaneamente: prefiro me programar para escrever uma história, enviá-la, depois escrever outra. Não existe um planejamento muito específico para a semana, apenas a consciência de que um prazo precisa ser cumprido, ou o estabelecimento de metas (entre 500 e 1 mil palavras por dia para textos curtos e 2 mil palavras para textos longos). Prazos e metas são bons, porque me obrigam a enviar as coisas, independentemente do quão feliz eu esteja com elas. Quando um texto é recusado, por exemplo, eu o reescrevo e reescrevo e reescrevo ao infinito e além. O mesmo acontece com livros, se me for dada a oportunidade. Isso pode se transformar em um comportamento obsessivo facilmente. Por isso estipulo prazos, metas de escrita e coisas do tipo, quando tais prazos não são estipulados para mim. Mais um motivo para trabalhar em uma coisa de cada vez.
Ao dar início a um novo projeto, você planeja tudo antes ou apenas deixa fluir? Qual o mais difícil, escrever a primeira ou a última frase?
Sobre planejamento, existe um ponto em que eu preciso sair do planejamento e começar a escrever. Para mim existem dois desafios principais: construir o mundo/sistema de magia etc., e saber o que acontece na história. Eu nunca, nuncacomeço uma história sem saber como ela termina, de modo que os acontecimentos principais sempre são planejados com antecedência. Mas normalmente o final é a primeira coisa que me vem, de modo que o resto é uma espécie de engenharia reversa do final para o começo, então o maior problema se torna construir o mundo, o sistema de magia e as outras coisas que compõem as histórias – considerando-se que elas fazem parte do que chamamos de “ficção especulativa”, que é o que eu escrevo. Isso acontece porque, enquanto muitos autores começam com um mundo e constroem a história ao redor dele (algo que eu gostaria de emular), eu faço o contrário, e adequo o mundo à minha história. Essa sempre foi uma tendência minha, o que faz com que o primeiro rascunho de um livro, conto ou novela saia relativamente rápido, mas que me obriga a trabalhar diversas vezes para adicionar diferentes texturas e corrigir problemas e contradições na construção de mundo. Quanto à primeira ou última frase, depende. Normalmente a coisa mais difícil é começar. Porém, uma vez tendo começado, a tendência é de reescrever mais vezes o final do que o começo, pois as pessoas se lembram muito mais do encerramento e se ele for fraco, isso pode afetar negativamente todo o restante da história. Saber uma coisa é diferente de ter as palavras para contá-la, e ser capaz de escolher as palavras certas é fundamental.
Você segue uma rotina quando está escrevendo um livro? Você precisa de silêncio e um ambiente em particular para escrever?
Ter um ambiente particular não é estritamente necessário, mas silêncio sim. Isso pode ser resolvido com facilidade com fones de ouvido e música alta. Eu não preciso de muitos rituais para escrever; apenas me sentar de maneira confortável, colocar meus fones de ouvido e “sintonizar” com a história. Isso pode ser mais fácil ou mais difícil, dependendo do livro, de circunstâncias fisiológicas e psicológicas, de fatores externos como o trabalho, ansiedade, interrupções ou quaisquer outros milhares de elementos oriundos do fato de que vivemos em um universo caótico. Ultimamente tenho tido dificuldade para escrever qualquer coisa; o motor de arranque não está muito bom. Porém, uma vez que começo um projeto, é importante que eu trabalhe nele todo dia, ou pelo menos tente, mesmo que esteja sem vontade. Isso inclui sábados, domingos e feriados e com o estabelecimento de metas de escrita, como eu mencionei na resposta da primeira pergunta. É meio como fazer exercícios: disciplina e persistência significam tudo. Essa é a rotina: posso escrever de tarde ou de noite, sempre que tiver tempo disponível, contanto que escreva todo dia.
Você desenvolveu técnicas para lidar com a procrastinação? O que você faz quando se sente travado?
Essa é a resposta que todo escritor busca, não é? Como eu disse na pergunta anterior, estou passando por tal problema agora. Lá para fevereiro eu decidi qual seria meu próximo romance e até hoje não consegui começá-lo. Reforço que a parte mais difícil do processo é o começo: ficar encarando para uma tela em branco pode dar um medo danado. É fato também que, por conta de acontecimentos recentes, estou sem ânimo para jogar minhas energias em algo novo, algo que terá cerca de 100 mil palavras e consumirá um tempo considerável. Vai sair uma hora ou outra, eu suponho, porque as histórias nunca me deixam em paz. Mas enquanto não começo, vou anotando ideias para este ou outros livros, trabalhando em novelas e contos, ou simplesmente lendo. Não existe segredo ou um conjunto de técnicas que eu possa dizer que são infalíveis, embora eu acredite que ler sempre é importante. Depende do meu estado emocional e de fatores externos como saúde, trabalho, tempo disponível… O que realmente não está dando certo é forçar. Quanto mais eu forço, mais difícil fica. O jeito é me preocupar com outras coisas. Buscar imagens e textos relacionados ao que estou escrevendo pode ser uma maneira de engatilhar o processo, mas não é garantia. Quando no meio da escrita e me sinto travado, o método é basicamente o mesmo; me ocupar com outras coisas. Eu tendo a escrever de forma linear, mas quando esbarro em um muro, às vezes escrevo outras cenas que só vão aparecer mais para a frente no livro e isso ajuda. Quando nem isso dá certo, algo que sempre faço é caminhar; caminhar escutando música nos fones de ouvido ajuda a organizar os pensamentos e a ter novas ideias – e com sorte elas serão do livro que estou tentando começar. Quando é o caso, volto para casa e compilo informações em um arquivo que funciona quase como um diário: “dia 24/05 eu tive uma nova ideia, tal e tal e tal.” “Dia 04/06 eu tive outra ideia”, e assim por diante. Depois tento transformar essas ideias em uma narrativa em prosa com algum grau de coesão. A parte boa de ser um autor relativamente desconhecido é que, tirando os editais, eu posso fazer tudo no meu próprio tempo. Não tem ninguém me cobrando a continuação de uma série ou um livro novo. A parte ruim é que, sem essa pressão, como eu disse antes, os comportamentos obsessivos e o perfeccionismo às vezes barram o processo. Outra coisa decorrente da falta de cobrança é que você precisa se automotivar o tempo todo, mesmo diante da possibilidade de o trabalho ser recusado e ficar dentro da gaveta por sabe-se lá quanto tempo. Por conta disso, encontrar forças para um projeto longo pode ser difícil.
Qual dos seus textos deu mais trabalho para ser escrito? E qual você mais se orgulha de ter feito?
Ano passado escrevi um livro de 150 mil palavras que demorou mais de quatro meses para ter o primeiro rascunho pronto, um tempo demasiado longo para os meus padrões: normalmente demoro entre dois e três meses no máximo para terminar um rascunho. Quatro meses e já começo a pensar “no que foi que eu me meti” e “isso não vai acabar nunca”. Foi uma experiência péssima, tão ruim que fiquei quase seis meses sem escrever uma palavra sequer e ainda não consegui começar um novo romance. Pior ainda é que não sei o que fazer com o livro! Não tive energia para trabalhar nele outra vez e sequer o mandei para minha agente, de tão ruim que ficou, então é um projeto que se encontra engavetado no momento por tempo indefinido. Além dele, tenho uma trilogia de fantasia urbana que estou escrevendo há seis anos. O primeiro volume foi o primeiro livro que escrevi. Ele foi inteiramente reescrito e depois disso nem sei dizer por quantas revisões passou. O segundo volume estagnou no primeiro rascunho; ainda não tive a disposição para trabalhar nele (pelos problemas de falta de motivação previamente mencionados), e o terceiro tem apenas dez páginas de material. Realmente este não tem sido um bom período para minha escrita longa, mas tenho sido capaz de trabalhar em histórias mais curtas. O texto do qual mais me orgulho, por enquanto, é uma novela de ficção científica que escrevi em 2020. Ela ainda não foi publicada, mas está nas mãos de uma editora sob avaliação. Talvez saia ano que vem. Veremos.
Como você escolhe os temas para seus livros? Você mantém um leitor ideal em mente enquanto escreve?
Ah, bem… Existem dois tipos de histórias que vivem na minha cabeça: as que nasceram muito tempo atrás (algumas estão em desenvolvimento há tantos anos que nem me lembro mais de suas origens, e elas nunca chegaram ao papel) e as que vão surgindo agora que eu tenho uma noção melhor do que o mercado está aceitando e que eu acho que têm mais chances de publicação. Normalmente as ideias vêm de um incômodo ou curiosidade. Por exemplo: ao invés de eu contar a história do Escolhido, que tal eu contar a história da namorada dele? Como as coisas se desenvolveriam a partir da perspectiva dela? O que teria acontecido se o Jon Snow tivesse perdido o conflito contra o Rei da Noite, ou a Sociedade do Anel derrotada por Sauron? Coisas assim. Às vezes eu assisto ou leio alguma coisa que não gosto e me pergunto “o que eu teria feito?” Ao invés de mandar um e-mail xingando o criador de seja lá o que me causou incômodo, eu penso que essa é uma oportunidade para desenvolver algo que antes era só uma sementinha ou um desejo (quero escrever uma fantasia épica, mas não sei sobre o quê, ou uma space opera, mais não sei sobre o quê). E há os universos que estou construindo aos poucos; que foram imaginados como séries de livros, dez ou doze anos atrás, mas que por enquanto desabrocham no formato de histórias curtas porque é o que o mercado aceita. Qualquer coisa pode ser fonte de inspiração: um filme, um quadrinho, um livro, uma música, um incômodo, um sonho (mas sonhos são pouco coesos e uma coisa que tem coerência enquanto você está sonhando muitas vezes perde o sentido na hora de anotar a ideia). É algo que acontece de forma meio espontânea. Tive uma ideia, escrevi, editei, mandei. Trabalho mal sob encomenda (algo que precisa ser trabalhado, admito). Mesmo em editais, costumo escrever coisas que já estavam na minha cabeça e que se encaixam na proposta. Quanto ao leitor ideal, isso é ainda mais complicado. Algum tempo atrás eu descobri a obviedade de que é impossível agradar Gregos e Troianos, portanto tento agradar a mim mesmo primeiro e isso já é muito difícil (pergunte a qualquer um que me conhece). Porém, existem opiniões de pessoas em que eu confio, como meus pais, meus agentes e alguns conhecidos. São eles que recebem as primeiras versões das histórias.
Em que ponto você se sente à vontade para mostrar seus rascunhos para outras pessoas? Quem são as primeiras pessoas a ler seus manuscritos antes de eles seguirem para publicação?
Como mencionei antes, quando percebo que estou tendo comportamentos obsessivos com algum material, é hora de entregá-lo para outra pessoa. Por mais estranho que possa parecer, para mim a pior coisa é não ter prazo. Quando há prazo, as coisas precisam ser entregues de um jeito ou de outro. Quando não há, sempre existe espaço para melhorias e isso pode se tornar angustiante. Aconteceu há pouco tempo: escrevi um conto que foi rejeitado. Como normalmente é o caso, não houve justificativa para a recusa; ele só não estava entre os selecionados para publicação. Então decidi reescrevê-lo como eu havia planejado na minha cabeça, sem as restrições de tamanho impostas pelo edital (o que fez o texto dobrar de tamanho). Então o revisei uma vez, duas vezes, cinco vezes… E percebi que, quando estava caminhando na rua ou tomando banho, eu pensava em coisas como “ah, preciso reescrever aquela frase” ou “aquela palavra tal no parágrafo x não está boa”. E fiquei assim por duas semanas com o texto já pronto fazendo micro ajustes antes de me dar conta de que isso não iria parar se eu não tomasse uma atitude. Foi o momento em que decidi enviar para meus agentes darem uma olhada. Agora é hora de deixar o conto quieto nas mãos de alguém que não seja eu e focar em outra coisa. Normalmente mando primeiro para meus pais quando os textos são curtos: eles são o mais perto que eu tenho de um leitor ideal. No caso do primeiro volume da minha trilogia de fantasia urbana, a primeira pessoa que leu a nova versão foi meu pai, depois uma leitora beta que me deu ótimas ideias que serão aplicadas antes de eu enviar para o pessoal da agência. Eu sempre gosto de mandar os livros para meus agentes quando o texto já está um pouco mais redondo para que eles tenham menos trabalho na leitura.
Você lembra do momento em que decidiu se dedicar à escrita? O que você gostaria de ter ouvido quando começou e ninguém te contou?
A primeira vez que decidi escrever com o intuito de ser publicado foi depois que concluí o mestrado. Isso foi no final de 2016. Antes eu só fazia planos e planos e planos. A verdade é que estava com medo e não me sentia pronto para ser escritor de ficção. Viver com a síndrome de impostor ainda é um desafio constante, apesar de eu já ter obras publicadas. Na época em que comecei a escrever, o mercado editorial era muito diferente do que é hoje, apesar do pouco tempo transcorrido. Seis ou sete anos atrás, não tínhamos tanta noção do que aconteceria com as livrarias e as mudanças causadas pelas gestões dos novos governos. Então confesso que não sei o que poderiam ter me dito naquela época, exceto aquilo que já sei: que persistência e trabalho duro são fundamentais. Eu sabia que seria um caminho difícil, só não sabia que seria tão difícil assim. Talvez isso tudo seja apenas parte da minha ansiedade e o tempo e as dificuldades pelas quais estou passando são naturais para escritores de ficção especulativa no Brasil, quem sabe? Mas naquela época existia um otimismo maior entre produtores de conteúdo que já não vejo tanto. Ao contrário, hoje vejo pessoas dizendo semana sim semana não nas redes sociais que pretendem desistir da literatura. Isso me assusta, e eu gostaria de dizer a elas para não fazerem isso.
Que dificuldades você encontrou para desenvolver um estilo próprio? Algum autor influenciou você mais do que outros?
Essa é uma pergunta interessante: por muito tempo eu me perguntei se tenho algo que pode ser chamado de estilo de escrita e qual seria ele. Talvez os mais qualificados para me dizerem isso sejam os próprios leitores. Porém, para os propósitos desta entrevista posso dizer que a coisa que mais influenciou meu estilo de escrita foi a faculdade de jornalismo. Enxergo a linguagem como informação, e busco mecanismos para tornar a informação o mais clara possível para o leitor. A maneira como a hierarquizo vem muito do jornalismo. Gosto de autores que possuem um estilo de prosa conciso e simples, mas ao mesmo tempo morro de inveja daqueles que têm um texto mais lírico e verborrágico. Toda vez que tento fazer um malabarismo com a língua, como o John Crowley ou o Cormac McCarthy – dois autores que eu consumo e que têm uma capacidade extraordinária de brincar com as palavras, de pegar a língua e levá-la para dançar (e que não devem ser usados como metas, porque eles são casos muito extremos) – sinto que o texto fica estranho ou até mesmo feio, e que não combina comigo. Talvez ter um estilo de escrita mais conciso e simples seja justamente o meu estilo? Nas histórias narradas em terceira pessoa eu costumo tomar mais liberdades, mas nada demais, eu acho. Em histórias narradas em primeira pessoa, sempre tento adequar a linguagem à perspectiva: como aquela pessoa contaria esta história? Se isso significa uma fala mais informal, mais coloquial, com menos uso de metáforas, tudo bem. É bacana brincar com diferentes linguagens e estilos – primeira pessoa, terceira pessoa, tempo pretérito ou presente, enfim. Já escrevi uma história que alternava o uso da primeira e terceira pessoa, outra que omitia todos os pronomes de gênero, e agora quem sabe não seja hora de escrever algo em segunda pessoa? Brincando é que se aprende. Mas no geral gosto de autores americanos que usam um tipo de linguagem mais simples e direto ao ponto, como Stephen King e Ernest Hemingway. Em termos estilísticos, esses escritores de ficção estrangeira talvez sejam os que mais me influenciaram – Hemingway, que foi correspondente de guerra em mais de uma ocasião, tem uma prosa quase-jornalística que eu aprecio muito. Ter pais escritores (Roberto de Sousa Causo e Finisia Fideli) também é algo que com certeza impactou toda a minha carreira (até porque eles leem e opinam sobre tudo o que eu escrevo, a pedido meu) e também gosto bastante do estilo de escrita da Anna Martino.
Que livro você mais tem recomendado para as outras pessoas?
Por conta de ironias do destino, a maior parte das pessoas próximas a mim não é composta por ávidos leitores. Mas para quem gosta de coisas parecidas com o que eu gosto, sempre tento recomendar Robin Hobb, Ursula Le Guin e Octavia Butler. Tenho um amigo (ainda bem) que gosta muito do Stephen King, então estamos sempre comentando os últimos livros dele que lemos e recomendando-os um para o outro. Flores para Algernon, de Daniel Keyes é uma obra que eu acredito ter um apelo universal, então eu o recomendo até para quem não é fã de ficção científica. Para quem lê em inglês, Engine Summer e Little, Big de John Crowley figuram na lista, e para quem tem estômago forte, A Estrada e Meridiano de Sangue de Cormac McCarthy são títulos que eu sugiro (com reservas). Além desses, há, é claro, meu livro favorito: A Criança Roubada, de Keith Donohue.
* Entrevista publicada em 10 de julho de 2022.