Roberta Malta é escritora, autora de “Senhora Incerteza” e “Meus mais velhos”.

Como você começa o seu dia? Você tem uma rotina matinal?
As rotinas são um suporte para a escrita, são como guardiãs do processo criativo, para não correr o risco de ser pega pela ausência de tempo, pressas e urgências. No entanto, sinto que também as distrações, o imprevisível, são fonte de matéria criativa. Então, tenho sim uma rotina matinal que me nutre: gosto de acordar e não ligar logo o celular, fico no modo off-line enquanto coloco as coisas da casa em ordem, desorganizadas do relaxamento que me permito de noite, faço café, como e venho com ainda mais café para o meu canto de leitura, uma rede na beira da janela, de onde vejo o céu e as árvores da rua. Ali (aqui, onde estou agora) eu leio. Ler é meu espaço-amuleto-íntimo. Sento para ler, com meu café, meu caderno e o bloco de notas do celular (cada inspiração pede um suporte de escrita). Meu único compromisso é ler, e quase inevitavelmente as inspirações vêm. Cultivo esse espaço com a mesma necessidade das reuniões agendadas que pagam boletos. Mas também não me importo de abandonar esse ritual sempre que fluir ou sentir que seja assim. Vivo muito quando largo o controle da rotina. A escrita vem da vida.
Em que hora do dia você sente que trabalha melhor? Você tem algum ritual de preparação para a escrita?
Meus dois melhores horários para a criação são no início da manhã e fim da tarde. No começo e no fim das tarefas mais práticas do dia. A energia ágil do dia a dia, de uma infindável lista de tarefas a marcar como feitas, não me permite a introspecção necessária para criar. É no começo da manhã, antes e depois desses compromissos, que eu trabalho melhor. Sempre tenho impressão que está tudo sempre aqui, eu só preciso criar esse espaço-ritual para o conteúdo emergir, seja já na forma do texto, ou em ideias, inspirações, compreensões, pesquisas. O ritual consiste em ficar sozinha e cultivar algum disparador, pode ser a leitura de um livro, dançar e soltar o corpo, uma boa música ambiente, uma vela acesa, a meia luz, o incenso, tudo que acene para a criação, como se dissesse: estou pronta para te receber, pode chegar, a casa está pronta.
De noite, tento esquecer as obrigações, até mesmo as que são fonte de prazer, como a escrita. Acontece muitas vezes de esse relaxamento e despretensão me surpreenderem com a ideia que faltava, e a escrita acontecer ali mesmo, se o impulso for forte, ou no próximo ritual, talvez amanhã, se for dia de rotina.
Você escreve um pouco todos os dias ou em períodos concentrados? Você tem uma meta de escrita diária?
Sim, escrevo todos os dias de semana, mas não necessariamente escrita literária. Escrevo meus processos, minhas intenções. O que procuro garantir diariamente é o ritual que impulsiona o que Sophia de Mello Breyner Andresen chama de “estado de escrita”, como uma aura que me ronda, uma energia, uma suspensão: são as palavras e imagens querendo chegar. De alguma maneira, sei os gatilhos que deixam esse estado de escrita chegar. Mas a escrita em si é mais imprevisível, não sei se ela vai chegar ou não, a não ser quando já tenho um projeto de prosa em andamento, já na parte prática e não de pesquisa. Se trabalho num romance, por exemplo, com personagens e ambientações criadas, funciona sim colocar metas diárias, comprometer-se a sentar diante da tela para criar, ou fazer imersões de criação, como ir para um lugar sozinha por alguns dias. Agora a poesia, por mais que eu cultive estados de escrita, é filha legítima do acaso. Não controlo seu nascimento.
Escrever é uma meta natural para mim. Costumo reparar que escritores e artistas são muitas vezes obsessivos. Há uma obstinação em criar. Essa obstinação é maior que a procrastinação e a sabotagem.
Como é o seu processo de escrita? Uma vez que você compilou notas suficientes, é difícil começar? Como você se move da pesquisa para a escrita?
No caso da escrita de poesia, fico muito atenta aos começos, que são como um trampolim. Em geral quando começo, o corpo do poema vem logo em seguida, de maneira fluida, seguido muitas vezes de inúmeras lapidações. O começo às vezes vem despretensioso, pode ser até meio sem jeito, feio, é preciso confiar no processo, para deixar a escrita acontecer, mesmo sem certeza de nada: basta começar.
A escrita de prosa para mim é diferente. É mais terrena. Antes eu costumava só sentar e escrever sem uma base. Hoje prefiro fazer um tempo mais longo de pesquisas e observações, estudo de personagens, ambientação, intenções de caminhos, como se levantasse as bases da casa. Construo meu chão para o inconsciente emergir na escrita. Mesmo assim, é difícil começar, porque tem um lado mais duro, é hora de sair do campo da ideia, e a matéria sempre é mais desafiadora que o livre terreno da imaginação. Mas com uma base bem construída, depois chega outro prazer, que é o prazer da palavra em si, chega o momento de brincar com os modos de dizer, a decoração viva da casa.
Como você lida com as travas da escrita, como a procrastinação, o medo de não corresponder às expectativas e a ansiedade de trabalhar em projetos longos?
Meu desejo de viver de escrita é tão grande que passo poucos processos de procrastinação. Meu maior desafio são as tarefas e outros trabalhos que preciso fazer para me sustentar no mundo. Esse é o maior empecilho à minha criação, e acredito que da maioria dos escritores. É dolorido às vezes não ter perspectiva sobre aquilo que é uma das maiores certezas, a certeza de escrever. Há um desânimo que a vida prática traz. Parece muito ingênuo insistir. Poucos conseguem, por que eu conseguiria? Será que sou boa o suficiente para conseguir? Porque é preciso muita dedicação e persistência. É preciso ter fé, um tanto de loucura, uma entrega à própria fantasia, uma confiança. A ansiedade vem até com um poema. Não sou escritora que escreve só para mim. Quero muito ser lida. E, como os caminhos para isso são desafiadores, a ansiedade com certeza chega.
Quantas vezes você revisa seus textos antes de sentir que eles estão prontos? Você mostra seus trabalhos para outras pessoas antes de publicá-los?
Eu reviso inúmeras vezes mesmo! Quando um trabalho chega ao público em forma de livro pode ter se dado anos desde a primeira criação. Tem horas que acho que vou saber de cor um texto meu de tanto que leio e releio. Deixo na gaveta por meses, leio mais uma vez. Sempre mostro para pessoas em quem confio. Sempre. Os feedbacks fazem parte da criação. Mas também o apoio de quem está lendo com você. Até aqui a rede de apoio é essencial. Para além de ter outros olhares que enriquecem o seu próprio, esses leitores prévios se tornam cúmplices de sua loucura, assim parece menos que seja tudo um absurdo, uma utopia, e isso te dá coragem para seguir. Um coletivo tira também a ilusão da criação individual. Nada é individual. Um texto nunca é individual.
Como é sua relação com a tecnologia? Você escreve seus primeiros rascunhos à mão ou no computador?
Eu lido muito bem com a tecnologia. Hoje em dia praticamente todos os meus poemas nascem no bloco de notas do celular. O celular é uma ferramenta que está sempre comigo, então funciona para os poemas e sua imprevisibilidade, e para anotar todas as pequenas inspirações. Sempre tenho um caderno para registrar meus processos, mas acabo usando nesses rituais em que estou acomodada, digamos assim, na minha rede, no meu café, com uma música, em espaços construídos para a profundidade. A tecnologia funciona para mim em sua praticidade e agilidade. Para a escrita longa de prosa sempre é pelo computador. Muito raro mesmo que um texto longo nasça à mão.
De onde vêm suas ideias? Há um conjunto de hábitos que você cultiva para se manter criativa?
As ideias vêm de tudo, da vida. Assim como no sexo precisamos sair do conceito de preliminar, porque tudo é o sexo, desde o primeiro olhar, até a conclusão, isso se transarmos pensando em chegar a um fim, da mesma maneira tudo é criação. Tudo mesmo. É sobre viver, estar atenta, anotar, cultivar rituais para dar espaço para os processos, e criar, manter-se sempre criando.
O que você acha que mudou no seu processo de escrita ao longo dos anos? O que você diria a si mesma se pudesse voltar à escrita de seus primeiros textos?
Mudou muito, muda o tempo todo. Acho que eu tinha a escrita como um espaço de refúgio, e queria criar mundos muitos fantasiosos, hoje as nuances do real me interessam muito mais. Sinto que me permito cada vez mais sair da caixa, experimentar, sair do óbvio, eu me convido a fazer isso. Também vou percebendo mais a insegurança, fico de olho para que ela não se torne sabotadora. Eu diria para mim nos primeiros textos: não tenha medo de errar, não tem certo, nem errado, não se filie ao cânone, a beleza tem tantos caminhos, cuide de seu processo, tudo é vivo, não se melindre se não gostarem do que você faz, é impossível mesmo agradar a todos.
Que projeto você gostaria de fazer, mas ainda não começou? Que livro você gostaria de ler e ele ainda não existe?
Tenho um projeto aqui ao meu lado, ou dentro, que há mais de um ano me ronda. Como a hora dele está chegando, prefiro não contar ainda. Há muitos livros que ainda não existem. Discordo quando dizem que tudo já foi dito. Muitas vozes não foram ouvidas, muitas linguagens não foram misturadas, experimentadas. Há muitas vozes inclusive que só estão começando a contar sua história agora. Há muito a ser dito, muitas maneiras de contar que ainda não conhecemos, e amo ver essas inovações em cada livro que leio. É como se fosse eterno, infinito. Quero escrever, quero ler, vivenciando esse novo sempre possível.