Rita Maria Kalinovski é escritora, autora de “Por um triz”, “Meias para sereias”, entre outros.
Como você começa o seu dia? Você tem uma rotina matinal?
Começo o dia estabelecendo prioridades inevitáveis como pagar contas, ir ao mercado, e outras insignificâncias necessárias. Não consigo colocar os dias em parcimônias de disciplina, embora sinta que esse é um mote bonito para ser vivido, se pensar que com disciplina o tempo se torna mais largo a outros afazeres. Mas não consigo; se um dia uma xícara de café preto basta, no outro careço do leite, o pão com geleia, o queijo branco, a mesa posta, o vagar. Aí, cada gole dado se irradia pelo corpo todo. Assim, vou obedecendo meu próprio organismo. Por vezes sou obrigada a me disciplinar e repetir não sem esforço, atitudes aborrecidas, por exemplo, quando meu cãozinho está em tratamento homeopático, e preciso, devo estabelecer rotina de horários. Aliás, é uma aprendizagem, e me sinto melhor quando consigo essa “realização”, por ficar mais consciente; essa sim foi sempre uma busca até rotineira, não sem efetivo esforço: estar consciente.
Em que hora do dia você sente que trabalha melhor? Você tem algum ritual de preparação para a escrita?
O estímulo a escrever vem, numa eventual insônia, mas geralmente é pela manhã, quando os carros ainda não cumprem seu papel de barulhentos. As palavras chegam como um achado. Um texto lido antes de dormir, uma sensação, uma lembrança, um acontecimento. Mas principalmente com uma palavra. A palavra, uma vez lida e quase nunca antes empregada, acende a possibilidade de um poema ou várias possibilidades, mas a escolha da vertente possível não é consciente; alguns poemas surgem na autoridade mesmo das palavras a se encadearem e desencadearem sem comando. Vezes há em que um poema nasce e se impõe, como uma inadvertida psicografia e vem pronto, é só transcrevê-lo; deixa-lo adormecer para que amadureça e então, a melhor parte, tentar refiná-lo, como quem lustra um objeto com cuidado. Há poemas que surgem prontos, sintéticos, precisos como uma flecha atirada e que acerta o alvo. Qualquer momento é momento, se criar for o mote.
Nos textos infantis, a condição é outra, preciso ter o início e o fim da história formatada na cabeça, para então depositar acontecimentos, conflitos, poemas ou questões que sigam a predeterminação dada no início. Este é um exercício de prazer, brincar com as coisas, dizê-las deixando brotar de mim a criança, ainda viva. Embora um grande prazer cria-la, a responsabilidade e o fio condutor precisa ter, no meu entender, algo a acrescentar sobre a vida e o mundo, que talvez a criança ainda não tenha percebido e me apraz ser o fio condutor dessa percepção ou sensibilização de mundo.
Você escreve um pouco todos os dias ou em períodos concentrados? Você tem uma meta de escrita diária?
Esse rigor, talvez necessário para abrir e aprimorar comportas criativas, não o tenho. Há fases onde a dedicação à tessitura da escrita é maior. Aí então sou capaz de sentar e deixar escorrer quase que num fluxo de consciência, o que surge. Depois, a tarefa de pinçar o que tem algum significado quanto ao que nos envolve como humanos. Procuro “documentar de forma poética”, o momento em que existo, seja em acontecimentos políticos, nas dores, nas alegrias ou nos barris das loucuras de todos nós.
Na literatura infantil, “recebo o santo” e não paro de escrever, sob pena de perder o “estilo” e a continuidade, caso pare para continuar em outro momento”. Em todo texto infantil preciso ter “pronto” ao menos o esqueleto da história para depois, poder “brincar” com o conteúdo.
Como é o seu processo de escrita? Uma vez que você compilou notas suficientes, é difícil começar? Como você se move da pesquisa para a escrita?
Acumulo todo o pensar/sentir/analisar/ler/refletir/estudar/revoltar-me/indignar-me enfim, o todo, injusto, me faz dizer algo. O belo e o que nos rodeia para o bem e para o menos bom; e perante o desgoverno dos que deveriam governar com competência, sabedoria, equilíbrio, humanidade e não o fazem, gerando dor ao seu redor, me saem na palavra, como válvula de escape. Mas são tantos motivos, que no momento, quando sopro a aridez pra longe, deixo vir outra temática, mais intimista. Esse material é esquecido para depois, quando esteja disponível para a busca da beleza, da lógica, do rigor, da crítica, com a maior economia possível de palavras, dizer. Depois, a organização, a troca das palavras por outras, mais adequadas, a cadência, o ritmo, até atingir a síntese, dizendo o máximo com o mínimo de palavras.
No texto infantil, a responsabilidade é maior, carece da obediência a certos protocolos, sem ser moralista, sempre pensando na função social da literatura infantil. Explorar os jogos de palavras, a clareza, a fantasia, a beleza, o senso crítico, etc. E o processo da revisão várias vezes, para que olhos infantis cobiçosos tenham no livro, material farto para sua emancipação.
Como você lida com as travas da escrita, como a procrastinação, o medo de não corresponder às expectativas e a ansiedade de trabalhar em projetos longos?
Felizmente não me cobro com relação a isso, portanto não sinto se há procrastinação ou não, pois faço da escrita um prazer onde deito sentimentos, tristuras, preocupações sociais e indignações políticas. Medo de não corresponder, não sinto, pois o compromisso da escrita é de mim para comigo, logicamente que o prazer multiplica “ene” vezes se o poema ou a História Infantil é apreciada. Os projetos mais longos que me proponho a realizar são os textos e ilustrações infantis, com suas características próprias. Esses leitores por serem muito atentos, exigem mais exatidão, mais responsabilidade, sensibilidade e agudez na hora de sua formatação textual ou imagética, pois é direcionada a um público em formação, ávido pela absorção do imaginário, das belezuras e dos sonhos dos criadores. É ali a possibilidade de a semente ser germinada. Precisa acontecer a sedução da criança, como um chamamento à leitura através do texto saboroso, o onírico, o inesperado. E a partir do livro lido, é fundamental esperar que mais um leitor seja atraído e caia na malha do prazer da leitura. Na verdade, em nenhum dos casos, trabalho em campo tenso. Aliás, campo tenso só para gerente de banco. Não conseguiria produzir texto, seja qual for em campo tenso.
Quantas vezes você revisa seus textos antes de sentir que eles estão prontos? Você mostra seus trabalhos para outras pessoas antes de publicá-los?
Nos textos infantis, incontáveis vezes, até deixa-los enxutos, sem acréscimos de palavras desnecessárias, mas que permitam ao texto muita clareza e lógica. Nos poemas, a atenção é diferente, a busca é mais no sentido filosófico, mãos dadas com a busca pelo que considero a verdade, a beleza que consiga atingir na palavra, ou a realização de poemas que registrem o momento sócio político atual. A mais saborosa parte na escrita é burilar, refinar, lustrar o texto. Ao trocar palavras, usar pinça para consertar relógio, sob pena de ao tentar modifica-lo, perder a poesia inicial, que chega como precioso achado.
Como é sua relação com a tecnologia? Você escreve seus primeiros rascunhos à mão ou no computador?
Logo que o computador me chegou, não abri mão de usar o bom e charmoso lápis para as escritas. Hoje, escrevo direto no computador, se estou frente a ele. Se não, tenho o velho caderno ou qualquer guardanapo mais próximo… (risos)
De onde vêm suas ideias? Há um conjunto de hábitos que você cultiva para se manter criativa?
Quando consigo aprofundar na meditação os poemas acenam e chegam quase inteiros, prontos. Algumas vezes, ao acordar, se a intenção for de criar, é meu melhor momento, quando os poemas deslizam, simplesmente. Não deixo de cultivar leituras, a natureza, o humano. Tenho o hábito de guardar a palavra-estopim que desencadeará algo novo ou escrevo a ideia para quando vier a “vontade” de escrever. A leitura de bons escritores me ajuda muito, assim como os filmes bem feitos como “Meia noite em Paris”, de Woody Allen, ou “Dor e Glória”, de Almodóvar; eles criam a magia necessária para que queira contribuir também com alguma coisa que faça sentido aos que leem. Aí, sinto-me mal por não ser mais assídua na criação, pois poderia melhor contribuir para a maior qualidade do que escrevo.
O que você acha que mudou no seu processo de escrita ao longo dos anos? O que você diria a si mesma se pudesse voltar à escrita de seus primeiros textos?
Antes, escrevia de maneira bastante sucinta, havia a procura extremada pela síntese perfeita, onde com três ou quatro frases, acredito, dizia todo o conteúdo a que me propunha. Seria como um hai kai mais solto, sem o “protocolo” rígido exigido. Estes poemas me exigiam mais. È mais difícil colocar um pensamento ou um sentido com número tão pequeno de palavras. Atualmente, a atenção volta-se mais a uma escrita mais despreocupada com a síntese, embora em ambas as formas, a síntese é procurada. Se o conteúdo agrada ao leitor, certamente o receberá, embora mais longo. Hoje, a proposta é por poemas, simplesmente. Que podem surgir na extrema síntese ou na forma mais longa, tentando expor o pensamento, o sentimento e a análise na quantidade de palavras necessária à expressão.
Que projeto você gostaria de fazer, mas ainda não começou? Que livro você gostaria de ler e ele ainda não existe?
Gostaria de escrever um livro que embora não didático, seria ao mesmo tempo de grande benefício a muitas pessoas. Por ser tema delicado, amadureço, atrás da cabeça, a possibilidade de ter coragem para a empreitada.