Ricardo Maciel dos Anjos é escritor e tradutor, autor de “Saga de um mundo despedaçado”.
Como você começa o seu dia? Você tem uma rotina matinal?
Meus dias começam sempre com um passeio com minha cachorrinha. Esse é o ritual essencial. Até mesmo por que, ela tem hora certa para ir à rua e não me deixa dormir até tarde! O que faço depois varia bastante. Há dias em que me exercito, há dias em que vou às compras, há dias em que fico à toa. Considero as manhãs como o período mais flexível, geralmente dedicado ao mundano.
Em que hora do dia você sente que trabalha melhor? Você tem algum ritual de preparação para a escrita?
Depende do trabalho! Para trabalhos ‘burocráticos’, como serviços de tradução, revisão, ou para escrita acadêmica, prefiro à tarde. Isso, às vezes, causa um pouco de conflito, pois o pós-almoço sempre fica sendo o tempo apropriado pela necessidade de uma eventual soneca – o que pode interferir nesse horário de trabalho. Nada que um café não resolva!
Já minha escrita criativa fica reservada para o final da tarde e começo da noite. Mais uma vez, a cachorrinha é a representação do ritual: o passeio vespertino marca o divisor de águas entre o burocrático e o criativo. Após o retorno, coloco as ideias em ordem, escolho uma trilha sonora adequada (quase sempre heavy metal, em suas inúmeras vertentes), abro uma cerveja e mãos à obra. Quanto à cerveja, acaba sendo um ritual também. Há uma frase, comumente atribuída a Ernest Hemingway, que diz algo parecido com “escreva bêbado e revise sóbrio, ou escreva sóbrio e revise bêbado. A verdadeira obra de arte tem tanto Dionísio quanto Apolo em seu cerne”. Sou bem adepto dessa filosofia.
Você escreve um pouco todos os dias ou em períodos concentrados? Você tem uma meta de escrita diária?
Não consigo exercer a escrita criativa todos os dias. Na verdade, até consigo, mas depende de inúmeros fatores. O principal é saber o que quero escrever. Não consigo me obrigar, ‘espremer’ o cérebro até que saia algo. Na minha experiência, o que é escrito na base do ‘chicote’ quase invariavelmente acaba sendo ou excluído ou revisado de cima abaixo. Penso que isso não deixa de ser um pouco de desperdício de tempo – gastar tempo escrevendo algo aquém do meu padrão de qualidade, para depois gastar mais tempo ainda corrigindo e revisando, sendo que eu poderia ter deixado as ideias fermentando e amadurecendo mais um pouco. Pouco ortodoxo, eu sei.
Como é o seu processo de escrita? Uma vez que você compilou notas suficientes, é difícil começar? Como você se move da pesquisa para a escrita?
Não sou nada ortodoxo nesse aspecto. Faço muito poucas anotações. O que anoto é, no geral, um esqueleto, um roteiro, um mapa. A maioria das decisões autorais vem no momento da escrita, ou da revisão. O que costumo fazer é sempre ter algumas ideias em mente, em ‘segundo plano’, sempre fermentando, sempre evoluindo. Isso me permite ter alguns momentos de quase epifania. Às vezes, vem-me uma iluminação, uma ideia, uma continuação, algo do tipo, no banho, na academia, no passeio com a cachorrinha. É esse o sinal para a escrita do dia. Quanto a pesquisa, meu estilo de escrita e gênero literário (literatura fantástica) pedem relativamente pouca pesquisa. Mas quando preciso pesquisar algo, é feito no momento, às vezes até como parte do próprio processo de escrita.
Como você lida com as travas da escrita, como a procrastinação, o medo de não corresponder às expectativas e a ansiedade de trabalhar em projetos longos?
A procrastinação em si não me é problemática, uma vez que meu estilo de escrita pede tais momentos de pausa, de reflexão, de ócio. São nesses momentos de não-escrita que as ideias têm espaço para crescer e se desenvolver. O que me agoniza é a falta de perspectivas de continuidade, de me encontrar num beco sem saída de trama. Numa obra mais linear, em que você não pode variar de ponto de vista, de focalizador, de linha de trama, isso pode ser quase fatal – é algo que, muitas vezes, te faz ter que revisar uma quantidade imensa de texto, talvez mudar muitas coisas, de forma a eliminar os fatores que levaram ao beco sem saída narrativo.
Quanto o quesito expectativas, creio que isso seja bem tranquilo para mim. Costumo dizer que escrevo sempre algo que eu gostaria de ler – e sou um leitor muito chato. Sou extremamente crítico com o que leio e assisto – com qualquer história que eu venha a ler, assistir ou jogar. Nem mesmo obras amplamente aclamadas costumam escapar ilesas… já fui xingado por ser ter críticas a fazer sobre Drácula! Isso só para dar um exemplo de um ‘clássico’ cujos méritos enxergo claramente, mas não sem críticas.
Tudo isso para dizer que, na escrita, sou muito criterioso. Não sou sem falhas, mas me esmero para atender as minhas consideráveis expectativas de leitor. Sempre tento fazer o exercício de me colocar no papel de leitor, de ser um pouco menos ‘pai’ dos personagens. Com esse distanciamento, fica melhor para perguntar: ‘isso é plausível?’, ‘ele realmente faria isso?’, ‘isso não ficou um pouco absurdo?’, dentre tantas outras perguntas que não se consegue responder quando se está no papel de escritor-coruja.
Quantas vezes você revisa seus textos antes de sentir que eles estão prontos? Você mostra seus trabalhos para outras pessoas antes de publicá-los?
A revisão é um trabalho que pode ser interminável. Sempre se acha algo a mudar. Um detalhe, um elemento, uma vírgula. Por isso, é necessário um certo autocontrole – o reconhecimento de que a obra está, finalmente, boa o suficiente. Por isso mesmo é bom se ter uma perspectiva de publicação: quando se tem um prazo, ou a ideia de que tem de haver uma versão definitiva para enviar à editora, tem-se um estímulo adicional para dar um ponto final à obra. Mas vale dizer que considero ter uma segunda e uma terceira opinião essencial. Tenho meus leitores de estimação, que leem tudo que escrevo e que têm a mais completa liberdade para dar retornos e sugestões.
Como é sua relação com a tecnologia? Você escreve seus primeiros rascunhos à mão ou no computador?
Tudo no computador. Meu caderninho de rascunhos fica na cabeça! Mesmo as anotações que faço – quando faço – ficam em formato digital. No momento, tem um arquivo do Bloco de Notas na minha área de trabalho com uma linha do tempo aproximada para o livro que estou escrevendo. Considero imensamente mais fácil acessar e editar essas informações na tela. O que reservo para o papel é o que não consigo fazer no computador: desenhar. Nunca tive talento algum para confecção ou edição de imagens digitais – eis aí um motivo (dentre muitos!) para eu ter desistido da faculdade de arquitetura, no passado longínquo… Mas, mesmo no papel, minhas habilidades artísticas ficam muito aquém do desejável. A única coisa que sei desenhar com alguma destreza são mapas, algo essencial para a criação de mundos fantásticos!
De onde vêm suas ideias? Há um conjunto de hábitos que você cultiva para se manter criativo?
Minhas ideias vêm de todos os lugares. Podem vir de outras obras literárias, podem vir de obras cinematográficas, de séries, de seriados de animação japonesa, de videogames, de músicas que ouço. O meu grande hábito para me manter criativo é não parar: sempre ter algo para ler, algo para jogar, algo para ouvir. Isso e manter a cabeça aberta. Não acho que alguém tem, necessariamente, que consumir apenas exatamente o que escreve. Explico: há quem ache que um autor de romances de ficção científica deve ler apenas outros romances de ficção científica, ou, se muito, assistir a filmes e seriados do gênero. O mesmo valeria para qualquer outro gênero, como terror, fantasia, drama realista, erótico, ou qualquer outro. Discordo. Ter alguns parâmetros e convenções do gênero em que se insere é importante, sim, mas não se deve se isolar do resto do mundo. Como eu disse anteriormente, minhas ideias vêm de qualquer lugar – muitas vezes, dos mais inusitados!
O que você acha que mudou no seu processo de escrita ao longo dos anos? O que você diria a si mesmo se pudesse voltar à escrita de seus primeiros textos?
Em termos de método, pouco ou quase nada mudou. O que realmente mudou foi no estilo. Sinto que minha escrita amadureceu bastante desde que me enveredei no mundo das letras. O que não é nada surpreendente, se considerarmos que eu tinha o quê, dezenove ou vinte anos quando comecei a escrever meu primeiro romance? (Atualmente, tenho 32). Às vezes sinto que eu escreveria meu primeiro romance de maneira completamente distinta, mas isso significaria reescrever tudo que já publiquei e tenho pronto para publicar. Afinal, a revisão pode ser um processo eterno.
Que projeto você gostaria de fazer, mas ainda não começou? Que livro você gostaria de ler e ele ainda não existe?
Sempre tenho ideias e mais ideias de coisas para escrever. Por exemplo, no momento, tenho ideias para contos envolvendo diversos personagens dos meus romances. Seriam contos que exploram lados que não entram nos romances, por quaisquer motivos, seja por vozes narrativas incompatíveis com as dos livros, seja por não se encaixarem na cronologia. Para além do meu universo de literatura fantástica, no momento não tenho nada planejado. Quanto às leituras inexistentes, realmente não sei! Até ontem, estava lendo os romances da série Duna de Frank Herbert. Ela peca pelo lado oposto: ao invés de não existir, ela não termina, além de ser uma leitura um tanto quanto maçante. Resolvi parar ao final do quinto volume e dar um fôlego na leitura, ler algo diferente. Comecei um do Ian McEwan, “A Barata”. Não sei o que virá depois, mas eu realmente nunca parei para pensar em algo que eu gostaria de ler, mas que nunca foi escrito. O que eu sei, com certeza, é de livros que estou esperando serem traduzidos para o inglês, do japonês – o terceiro, quarto e quinto volumes da série Quantum devil saga, da autora Yu Godai. Dos inexistentes que poderiam existir, penso que possivelmente um terceiro Alice, de Lewis Carroll. Ou um dos romances que comecei a escrever e avancei até bastante na escrita, mas acabei por abandonar…