Ricardo Jardim Andrade é professor titular do departamento de Filosofia da UFRJ.

Como você começa o seu dia? Você tem uma rotina matinal?
A minha primeira atividade do dia é tomar o café da manhã: pão torrado com manteiga e geleia, acompanhado de café com leite. Se tiver um croissant, melhor ainda. Sem esta base alimentícia, mas também afetiva, pois remete a hábitos familiares, não me sinto em condições adequadas para trabalhar e criar. Em seguida, faço uma oração e uma meditação. Depois leio o jornal e confiro a minha correspondência on-line. Só então me dedico às tarefas acadêmicas e outras.
Em que hora do dia você sente que trabalha melhor? Você tem algum ritual de preparação para a escrita?
Não tenho um ritual nem uma hora determinada para estudar, ler e escrever. Tudo depende das atividades e encargos do dia. Escrevi muita coisa à noite, até de madrugada, de acordo com as exigências do momento. Admito, porém, que pela manhã, todas estas atividades possam ser melhor realizadas. Obviamente, contudo, não é possível reduzir o dia à manhã, não é? (rs)
Você escreve um pouco todos os dias ou em períodos concentrados? Você tem uma meta de escrita diária?
No momento, estou aposentado, mas boa parte do que escrevi ao longo da minha carreira de magistério corresponde às demandas e compromissos acadêmicos, sem que isto implicasse, necessariamente, em “uma meta de escrita diária”. Estou finalizando algumas tarefas pendentes e, em breve, pretendo me dedicar a novas pesquisas, cujos temas estão sendo pouco a pouco delineados. Quando estas pesquisas estiverem num estágio avançado, possibilitando-me maior domínio dos temas estudados, por certo terei condições de criar mais e melhor.
Como é o seu processo de escrita? Uma vez que você compilou notas suficientes, é difícil começar? Como você se move da pesquisa para a escrita?
A minha produção acadêmica se concentra em ensaios de natureza filosófica e científica. Costumo dizer para meus alunos que estudar, na área de filosofia e ciências humanas, é em grande parte resumir. Trabalho braçal e humilhante, completo com ironia. Braçal, porque é cansativo mesmo: exige muita paciência; humilhante, porque é preciso ficar muito tempo na escuta dos grandes pensadores e teóricos, esforçando-nos para compreender adequadamente seus ensinamentos e aguardando, sem pressa, o momento de as asas surgirem e com elas a capacidade de voar. Nesta etapa jubilosa do percurso, sentimo-nos em condições até de enfrentar os grandes, dialogar com eles, segui-los, mas com liberdade e criatividade. Como se sabe, “um anão nos ombros de um gigante enxerga mais longe do que o gigante”. O resumo é substituído, assim, pela análise e discussão das obras estudadas, o que possibilita ao pesquisador criar seus próprios textos com originalidade e correta fundamentação lógica. Existem, é claro, muitas outras maneiras de pesquisar, mas esta foi a que adotei a partir de minhas experiências pessoais. E, felizmente, deu certo. De fato, seguindo este caminho, estudei as obras de Husserl, Heidegger, Sartre, Dilthey, Ricoeur, Saussure, Jakobson, Benveniste, Freud e Lévi-Strauss, entre outros grandes pensadores, cujas ideias tenho exposto e discutido em meus cursos, palestras e escritos.
Como você lida com as travas da escrita, como a procrastinação, o medo de não corresponder às expectativas e a ansiedade de trabalhar em projetos longos?
A pesquisa deve ser vivida, tanto quanto possível, prazerosamente, ou seja, num clima espiritual e libidinal que Freud denominou “sublimação”. O trabalho intelectual, como qualquer outro, deve ser, portanto, prazeroso, não obstante implicar momentos de grande esforço e mesmo sofrimento. Como disse Nietzsche, “é preciso a angústia de se sentir um caos, para gerar uma estrela”. A angústia é um elemento essencial à criação estética e filosófica, mas o que realmente importa é o que ela possibilita: a geração da estrela. Aliás, o modelo do trabalho criativo, sempre prazeroso, mas também penoso, porque exigentíssimo, é o do artista. O trabalho sublimado ou libidinal – o oposto do trabalho alienado estudado e denunciado por Marx – implica, sim, momentos de insatisfação, mas o que se procura é a luminosidade da obra, o imenso prazer de inventar, o êxtase da criação. Como lembra Baudelaire, os poetas e filósofos realizam na criação, “o único milagre cuja licença nos foi concedida por Deus”. Afinal, como exclama Romain Rolland, “criar é matar a morte”.
Quantas vezes você revisa seus textos antes de sentir que eles estão prontos? Você mostra seus trabalhos para outras pessoas antes de publicá-los?
Reviso continuamente meus textos até o momento de divulgá-los. Nas primeiras revisões há, por certo, maiores alterações do que nas últimas. Raramente mostro meus escritos para outros colegas, até porque eles estão frequentemente muito atarefados. Contudo, solicitei, em momentos diferentes, a dois grandes professores e pesquisadores que lessem a minha dissertação de mestrado e a minha tese de doutorado e me dessem sua opinião sincera sobre estes textos, ambos, diga-se de passagem, bem avaliados pelas respectivas bancas. Os dois professores gostaram muito dos meus textos e recomendaram insistentemente que fossem publicados. Observo que estes textos foram redigidos ao longo de vários anos e resultaram de um árduo e persistente trabalho. Em momento algum pensei em abandonar minhas pesquisas, apesar das dificuldades que encontrei para conclui-las. Agradeço a meus orientadores por terem percebido claramente que a minha demora se explicava pelo meu empenho em realizar um trabalho bem feito, capaz de contribuir para o enriquecimento do campo de pesquisa explorado. Menciono estas avaliações, pois elas comprovam que o método do resumo e da análise, vinculado às três etapas da pesquisa que serão tematizadas adiante, produz resultados satisfatórios e merece crédito. Além do mais, indicam que se o objetivo do pesquisador for, de fato, realizar um trabalho sério e bem feito, não deve haver pressa, rapidez e uma busca desmedida de eficiência na produção intelectual. Tais exigências, hoje frequentes, na verdade, empobrecem a pesquisa e dificultam o seu avanço adequado.
Como é sua relação com a tecnologia? Você escreve seus primeiros rascunhos à mão ou no computador?
Grande parte dos meus trabalhos foram escritos à mão, embora tenha realizado, quando jovem, um curso de datilografia, para utilizar adequadamente as máquinas de escrever, pelas quais, no entanto, nunca tive muita afeição (rs,rs). Contudo, depois que aprendi a digitar no computador, embora continue a escrever os resumos à mão, recorro regularmente ao Word para finalizar a redação dos meus textos. Trata-se, sem dúvida, de um ótimo recurso, bem mais confortável do que as antigas máquinas de escrever.
De onde vêm suas ideias? Há um conjunto de hábitos que você cultiva para se manter criativo?
O estudo de um grande teórico, sobretudo no campo da filosofia, obedece a três etapas: a primeira corresponde ao domínio da terminologia e do aparelho conceptual do autor; a segunda, a apreensão da sua visão sistêmica do real; a terceira, a uma mudança radical de perspectiva que nos leva a ver o dia-a-dia com um novo olhar. Em suma, depois do domínio da linguagem e do enfoque sistêmico do pensador, trata-se de trazer a sua perspectiva filosófica para a vida. Como o grande poeta T. S. Eliot nos ensinou, “não devemos nunca deixar de procurar e o objetivo de toda busca é retornar ao ponto de partida e ver o lugar pela primeira vez”. É a admiração, o móvel permanente da filosofia, como nos ensinaram Platão e Aristóteles, que nos leva a perceber o estranho no familiar, o extraordinário no ordinário. Este deve ser o objetivo de qualquer pesquisa filosófica e é a ele que procurei me dedicar ao longo de minha carreira universitária. O método do resumo e posterior análise do texto permite-nos realizar estas três etapas satisfatoriamente. No meu entender, este é o caminho de uma leitura inteligente do texto, vale dizer, uma leitura que ultrapassa a superfície e apreende a estrutura interna do texto, permitindo-nos, assim, criar novas ideias enraizando-as sempre na vida. Afinal, como nos adverte Dilthey, “a razão é uma função da vida”.
Oportuno lembrar que inteligência provém do latim intelligere (inteligir), termo composto por intus (dentro) e legere(ler). Inteligir um texto é, portanto, ler dentro dele ou, empregando uma outra analogia, radiografá-lo. É assim que a leitura superficial de uma obra é substituída por um a estudo aprofundado da mesma. Como aprendi com A.-D. Sertillanges em A vida Intelectual, livro que li na minha juventude, a profundidade sempre traz consigo a extensão, mas a extensão, jamais a profundidade. Contudo, temos que reconhecer com Nietzsche, contra aqueles que condenam a visão panorâmica – na verdade, um recurso didático muito importante -, que “a profundidade é um buraco na superfície”. Creio que há uma relação dialética entre profundidade e extensão, ou seja, uma relação de complementaridade e reciprocidade: a extensão exige sempre a profundidade, mas esta enriquece consideravelmente aquela. Ficar apenas na superfície ou extensão é, sem dúvida, um grave erro.
O que acabo de dizer sobre a inteligência de um texto me trouxe à lembrança um episódio ocorrido quando realizava a minha tese de doutorado. Depois de enviar para o meu orientador, o caríssimo professor emérito Franck Tinland (Universidade de Montpelleir III), o segundo capítulo deste trabalho, ele me escreveu uma carta com esta observação, que muito me emocionou e estimulou: “Quanto ao seu texto, reencontrei a inteligência e a precisão de análise que eu já conhecia”. Disse, então, para mim mesmo:
Meu Deus, como é difícil ser inteligente, radiografar uma obra, apreender sua estrutura inteligível, para finalmente analisá-la, discuti-la com o seu autor e inovar no campo estudado. Não é fácil ser inteligente. Longe disso. Há cérebros privilegiados, reconheço, mas para a maioria dos mortais, como é o meu caso, trata-se de uma longa e árdua conquista.
O que você acha que mudou no seu processo de escrita ao longo dos anos? O que você diria a si mesmo se pudesse voltar à escrita de seus primeiros textos?
Indiquei acima o meu método de estudo no âmbito da filosofia e das ciências humanas. Este método começou no meu curso de graduação e foi se desenvolvendo aos poucos. A minha experiência de magistério por certo o enriqueceu. Quando participo de uma banca de mestrado ou doutorado costumo dizer para o candidato que o destinatário da tese ou da dissertação não são os avaliadores, mas alguém que não conhece o assunto, ou seja, um aluno virtual. Esta preocupação didática exige clareza e transparência na escrita. Na verdade, utilizei este método em toda a minha produção acadêmica, em particular na elaboração dos meus textos do mestrado e do doutorado e, também, nas pesquisas vinculadas ao pós-doutorado que realizei na Universidade de Paris IV. O professor Pierre Livet, da Universidade de Aix-Marseille II, que estava na banca da minha tese de doutorado, referindo-se ao meu texto e confirmando o que acabo de dizer, afirmou: “seu estilo é claro e a leitura agradável”. Como a minha produção acadêmica continua vinculada à filosofia e às ciências humanas não pretendo de modo algum abrir mão deste método, mas, ao contrário, aperfeiçoá-lo cada vez mais.
Que projeto você gostaria de fazer, mas ainda não começou? Que livro você gostaria de ler e ele ainda não existe?
Preocupam-me, em particular, questões socioculturais e políticas vinculadas à utopia de um novo mundo, ou seja, um mundo no qual, finalmente, haja paz, justiça, oportunidades iguais para todos e cuidado pela natureza. Concordo com Karl Mannheim quando em Ideologia e utopia distingue as ideias absolutamente utópicas das ideias relativamente utópicas. Diferentemente daquelas, que paradoxalmente contribuem para manter o status quo, estas últimas correspondem às possibilidades históricas e, por esta razão, podem e devem ser realizadas. Um livro que nos oriente e estimule a realizar a utopia de um novo mundo, indicando-nos o passo a passo desta tarefa urgente e grandiosa, seria muito bem-vindo. Uma obra desta dimensão seria o resultado de um trabalho coletivo e interdisciplinar, fundamentado, sobretudo, na filosofia e nas ciências humanas.