Ricardo Assumpção Fernandes é publicitário e escritor, autor de “Através” (Folhas de Relva, 2021).

Como você começa o seu dia? Você tem uma rotina matinal?
Acordo cedo, por volta das seis e meia. Gosto de sentir o cheiro da manhã, do café coado. Ouço o barulho dos motores dos carros na rua, imagino seus motoristas, para onde vão, a que horas acordaram? Volto a atenção ao coador de café, despejo água fervente no filtro, tomo cuidado para o líquido não transbordar da garrafa. Olho para o lado, o cachorro balança a cabeça, enfia o focinho embaixo da manta que usa como travesseiro. Recusa a manhã. O primeiro latido vem por volta do meio dia, hora do seu almoço, quando a cidade já estabeleceu uma rotina e os bichos da selva, se eu estiver com sorte, se decantaram em algum filtro imaginário. À tarde, pego esse filtro e procuro dar vida ficcional às personagens no papel borrado do coador.
Em que hora do dia você sente que trabalha melhor? Você tem algum ritual de preparação para a escrita?
Começo a preparar a escrita pensando, ao mesmo tempo, na cena ou assunto e na linguagem a ser utilizada. Se tenho de produzir um artigo ou ensaio, busco referências, normalmente na parte da manhã. Pesquiso na internet, leio outros textos, pergunto a pessoas próximas se leram algo semelhante. Após essa breve pesquisa, escrevo na parte da tarde, quando já estou abastecido de referências.
Para textos de ficção, seja um conto ou trecho de novela ou romance, procuro entrar na atmosfera que envolve a obra. Se o texto exige uma carga dramática maior, por exemplo, leio obras intensas antes de começar a escrever. Quando penso em prosas poéticas, meu aquecimento é ler ou mesmo escrever poesias. As tardes costumam ser mais produtivas.
Você escreve um pouco todos os dias ou em períodos concentrados? Você tem uma meta de escrita diária?
Depende. Escrevo artigos todos os dias. Quando são textos de opinião, como os do Jornal do Brasil, gosto de produzir o conteúdo num único dia e, de preferência, sem interrupção na escrita. Deixo o texto decantar e no dia seguinte avalio se faz sentido, sem dar muita atenção, nesse primeiro momento, a uma revisão ortográfica detalhada. Caso a atmosfera do texto esteja em linha com a impressão que desejo passar, vou à fase de revisão, mudo uma ou outra palavra, quebro uma frase em duas, se necessário.
Para um romance, novela ou conto mais longo, escrevo, num primeiro momento, todos os dias, para que a história não se perca. Deixo o texto descansar, volto após um tempo, leio, faz sentido? Se não, reescrevo um ou outro trecho, sem metas diárias ou semanais. A pausa é importante para a construção da história, para aperfeiçoar a narrativa. Já numa etapa de revisão da novela ou romance, quando é necessário cortar excessos, reescrevo incessantemente. Acordo cedo e vou até a noite, madrugada.
Como é o seu processo de escrita? Uma vez que você compilou notas suficientes, é difícil começar? Como você se move da pesquisa para a escrita?
Minha escrita se constrói enquanto compilo dados. Gosto muito de ler e pesquisar à medida que escrevo. Busco inspiração e referências em romances, músicas, pinturas ou notícias do cotidiano. Leio e escrevo, depois reviso. Isso porque, no momento da escrita bruta, primeiro rascunho de um livro, o mais importante, para mim, é a sensação que desejo provocar no leitor. Ao ler um texto que me provoca alguma emoção, escrevo logo em seguida, sob o risco dessa emoção se perder.
Quando começo um romance, desconheço o final da história. Por esse motivo, minha pesquisa se desenvolve à medida que produzo o texto, sem me preocupar com uma estrutura hermética. E se me deparo com algo que pode ser usado em outro momento do livro ou mesmo num artigo, poema ou conto, guardo a referência num arquivo de computador, folha de papel ou pequeno caderno com anotações. Ao lado das anotações, escrevo em poucas palavras a ideia associada e a data.
Como você lida com as travas da escrita, como a procrastinação, o medo de não corresponder às expectativas e a ansiedade de trabalhar em projetos longos?
Entendi que, no meu caso, a procrastinação normalmente está relacionada a dúvidas sobre como conduzir a história. Não falo de coisas chatas que acontecem no dia a dia e nos tiram a vontade de escrever. Isso passa em horas ou, no máximo, dias. Mas houve um momento, enquanto escrevia o romance “Através”, que tive receio não de escrever, mas de ler o que eu mesmo havia escrito. Foi uma situação estranha, como se o fato de eu ler fosse mudar a história. Aí, parei e pensei: mas não é o leitor que constrói a história? Eu não sou um leitor? Então posso ler e, se quiser, mudar. Tenho, como autor, essa vantagem: a de poder ler, escrever e reescrever.
Uma autorreflexão também faz parte do processo de escrita. Às vezes, as travas nos mostram caminhos alternativos. Nesses momentos, perguntas como ”Por que será que parei nesse estágio?” ou “Será que existe outra maneira de contar isso?” podem ajudar a destravar.
Já nos textos curtos, as travas são diferentes. Os artigos de opinião, por exemplo: nem sempre tenho sobre o que escrever, nem sempre tenho uma ideia genial, nem sempre o leitor vai gostar do que ler. Nesse caso, penso em bons articulistas e nos textos não tão bons que escreveram. Ainda assim, os considero ótimos articulistas (e bons amigos, embora não conheça a maioria), o que me faz pensar que tão importante quanto um bom texto é a presença constante na coluna do periódico.
Quantas vezes você revisa seus textos antes de sentir que eles estão prontos? Você mostra seus trabalhos para outras pessoas antes de publicá-los?
Vou começar pela segunda pergunta: meus textos, sem a leitura do outro, são textos obtusos. Não só gosto como preciso do olhar alheio para posteriormente publicar um artigo, conto ou romance (embora essa preciosa contribuição nem sempre seja possível). Não acredito numa escrita individual. Porque as letras, as palavras, as coisas e a humanidade já existiam muito antes de nascermos. Escrever é uma atividade essencialmente coletiva. O escritor se inspira no mundo e devolve a este mundo um texto em forma de palavras num fundo branco. Assim, se alguma alma generosa se dispuser a compartilhar a leitura e dar sua opinião, nem que seja um breve comentário, estará contribuindo com a elaboração do texto. Uma obra, seja um artigo de três linhas ou um grande romance, é resultado da multiplicidade de olhares, pensamentos e reflexões anteriores à nossa existência.
Quanto à revisão, depende muito do tipo do texto e de quanto tempo eu tenho. No caso de artigos, duas ou três revisões são suficientes, pois normalmente há prazos a se cumprir. Para textos mais longos, nunca estão prontos. Toda vez que eu leio tenho vontade de mudar alguma coisa, sempre. Se dependesse de mim, seriam obras em eterna construção. Ainda bem que existem editoras para colocar um ponto final nos livros.
Como é sua relação com a tecnologia? Você escreve seus primeiros rascunhos à mão ou no computador?
Tenho, em casa, vários cadernos espalhados onde anoto ideias. Gosto de escrever à mão, tenho a impressão de que o texto sai melhor. O problema é que, como minha letra é ilegível, especialmente quando acordo de madrugada com algum insight, gasto mais tempo depois tentando decifrar a anotação do que com a anotação propriamente dita. Também escrevo muito nas bordas de revistas. A preferida para anotações é a Scientific American Brasil. Tenho uma pilha delas com garranchos que eventualmente podem virar um conto ou poema.
A escrita em cadernos ou bordas de revistas é, no entanto, anterior ao rascunho. Para organizar as anotações num formato de artigo, conto ou mesmo trecho de romance, o computador é bastante prático.
De onde vêm suas ideias? Há um conjunto de hábitos que você cultiva para se manter criativo?
Não faço a menor ideia. As ideias surgem sem regra aparente e gosto que seja assim. Meu trabalho consiste em organizar este caos, do qual me utilizo como combustível para produzir textos com alguma originalidade e legibilidade. Sinto-me satisfeito ao criar a partir da profusão de pensamentos aparentemente desconectados da realidade ordenada. Não há, portanto, hábitos que procuro cultivar para me manter criativo. Há, sim, hábitos que procuro evitar. Dormir pouco é um deles.
Meu processo criativo dependia muito da observação de pessoas nas ruas. Não era propriamente um hábito, pois não havia rotina ao sair para caminhar, observar e anotar. Com a pandemia, fiquei mais recluso e, com isso, procuro imaginar pessoas a partir do que eu ouço e leio nos jornais, revistas e internet. De certa forma, posso dizer sim que a pandemia fortaleceu a característica de imaginar situações. Fazer disso um hábito pode ser interessante. Ótima, essa pergunta.
O que você acha que mudou no seu processo de escrita ao longo dos anos? O que você diria a si mesmo se pudesse voltar à escrita de seus primeiros textos?
A prática aperfeiçoa o processo de escrita, sem dúvida. Por isso não creio que teria condições de escrever os meus primeiros textos de maneira diferente. O que não me impede, ao revisitá-los, de perceber a existência de uma boa história. Gosto de pensar na linguagem como, também, uma forma de contar melhor um acontecimento, real ou imaginário. Se pudesse, portanto, voltar alguns anos, apenas buscaria escrever mais para apurar a concisão e beleza do texto. Mas não sei se, anos atrás, teria tempo para isso.
Que projeto você gostaria de fazer, mas ainda não começou? Que livro você gostaria de ler e ele ainda não existe?
Trabalho no meu segundo romance e tenho em mente o terceiro, que ainda não comecei. Com o “Através”, formarão uma trilogia. Suas histórias, seus personagens, independentes, podem se encontrar nos desencontros do tempo ou nas margens dos rios subterrâneos. A ver. Penso também num livro de crônicas e artigos já publicados, assim como uma reunião de minicontos, poemas e textos em prosa poética. Há muito ainda a escrever e a ler. Talvez, na esquina de uma prateleira, numa livraria distante, quase fechada por causa da pandemia, exista um livro à espera de um leitor que tire o pó das suas folhas. Gostaria de ler esse livro.