Reynaldo Damazio é escritor e editor, autor de “Com os dentes na esquina”.

Como você organiza sua semana de trabalho? Você prefere ter vários projetos acontecendo ao mesmo tempo?
É a escrita que organiza, ou desorganiza, conforme o projeto. Na real, sempre são projetos, no meio do torvelinho. Cada trabalho tem seu caminho próprio, sua desordem própria, seu tempo e suas formas. Raramente a perspectiva fordista de tempo, em suposta continuidade e alinhavado por horas, dias, semana, mês, se adequa ao processo criativo.
Ao dar início a um novo projeto, você planeja tudo antes ou apenas deixa fluir? Qual o mais difícil, escrever a primeira ou a última frase?
Às vezes um projeto nasce do planejamento, outras vezes da falta total de planejamento, do acaso, do susto etc. Não saberia dizer qual prevalece, ou qual seja melhor. Quando você tem a primeira frase, o primeiro verso, uma imagem, um esboço, o planejamento se torna algo secundário, acessório, instrumental. Fluir já é outra história. Mais difícil que a última frase é saber que frases jogar fora.
Você segue uma rotina quando está escrevendo um livro? Você precisa de silêncio e um ambiente em particular para escrever?
Ambientes específicos e silêncio funcionam para meditação, para refletir sobre a própria escrita, organizar ideias, exercitar a percepção. Quando estou num processo de escrita, qualquer lugar, situação ou momento podem se ajustar ao fluxo do texto. Estar em fluxo com o texto, mover-se com ele, deixá-lo mover, é a grande questão.
Você desenvolveu técnicas para lidar com a procrastinação? O que você faz quando se sente travado?
Caminhar tem sido um bom método de criação, para lidar com impasses de todo tipo, crises ou bloqueios. Texto é corpo e corpo é movimento. Numa visão expandida do tempo, não linear, nem compartimentado, prazos (e a procrastinação) são abstrações. Basta decidir o ponto final.
Qual dos seus textos deu mais trabalho para ser escrito? E qual você mais se orgulha de ter feito?
Até o presente, o que deu mais trabalho foi o poema longo “Um móbile de Calder na cabeça” (o título original era “na mente”). Fiz uma plaquete de pequena tiragem, mas devo incluí-lo num próximo livro. Foi o que levou mais tempo para ser escrito também. E, no entanto, é um texto que não teve qualquer planejamento, rotina, método, nada. Ele simplesmente foi escrito num longo arco temporal, aos trancos e fragmentos, à deriva, como se eu fizesse uma trilha pela escrita, com a escrita. Caminho feito de linguagem. Eu simplesmente retomava a partir de um ponto e seguia, com intervalos super irregulares, os passos-versos iam se encaixando.
Como você escolhe os temas para seus livros? Você mantém um leitor ideal em mente enquanto escreve?
Sendo muito sincero, não acredito em temas. O que importa na literatura é o modo como se escreve. Quase não me interesso por um livro pelo “assunto”, exceto em leituras de trabalho, ou de pesquisa pessoal, que podem ser até pesquisa e trabalho literários. Mas tentando responder à pergunta, acho que há questões de fundo que nos escolhem, ao longo da vida, como parte de nossa formação, do modo como pensamos e sentimos, como encaramos o mundo. Não existe leitor ideal, porque não há texto ideal. Se houver leitura, já valeu.
Em que ponto você se sente à vontade para mostrar seus rascunhos para outras pessoas? Quem são as primeiras pessoas a ler seus manuscritos antes de eles seguirem para publicação?
Depende da intimidade com quem vai ler e nunca tem um ponto ou momento específico. Pode ser meu filho, um amigo, a namorada, editores. A leitura é um gesto amoroso, como a escrita.
Você lembra do momento em que decidiu se dedicar à escrita? O que você gostaria de ter ouvido quando começou e ninguém te contou?
Lembro: era bem pequeno e meus pais me levaram à Cidade da Criança, em São Bernardo do Campo, num domingo. Lá peguei o jornalzinho que eles editavam e havia uma seção de crônica dos leitores. Eu tinha uns seis anos, se muito. Escrevi um textinho quando cheguei em casa e mandei. A minha “crônica” foi selecionada e publicada na edição do mês seguinte. Minha mãe guarda essa página até hoje e suspeito que algo tenha se movimentado ali. Gostaria de ter ouvido: “tem certeza que quer mesmo se meter com isso?”. Só pra responder que sim.
Que dificuldades você encontrou para desenvolver um estilo próprio? Algum autor influenciou você mais do que outros?
A maior dificuldade é sobreviver. Manter a viva a paixão pela literatura. Não tenho a menor ideia do que seja meu estilo. Talvez seja por falta de estilo. Minha escrita é meu corpo em movimento e transformação. Muitas autoras e autores me influenciaram e novas leituras seguem influenciando e desinfluenciando. Dos livros que realmente transformaram tudo logo cedo, gostaria de mencionar Água viva, de Clarice, Antologia poética, de Drummond, Quarto de despejo, de Carolina de Jesus, O estrangeiro, de Camus, Os ratos, de Dyonélio, e Triste fim de Policarpo Quaresma, de Barreto. Li Machado também nessa época, mas a pancada mais forte do bruxo veio depois, com as pancadas de Orides, Cabral, Kafka, a poesia concreta.
Que livro você mais tem recomendado para as outras pessoas?
Se puder citar dois, indicaria de primeira os livros Reino dos bichos e dos animais é o meu nome, de Stela do Patrocínio, infelizmente esgotado, e O hospício é deus, de Maura Lopes Cançado. Ambos são fundamentais pra repensar a poesia, a prosa, a literatura, a linguagem e a vida. Temos que repensar o país, a história, a cultura, diante do fim a que chegamos.