Reynaldo Bessa é músico, escritor e professor.
Como você começa o seu dia? Você tem uma rotina matinal?
Quando abraçamos um ofício, de um jeito ou de outro, parece, acabamos nos tornando esse ofício. O escritor, assim como um monge, cria sua própria cela, hábitos, manias e até orações. O que posso dizer é que estou quase sempre imerso no universo da escrita. Vou escrevendo. Não necessariamente, livros, mas escrevo: artigos, ensaios, anotações, revisões, fichamentos, ideias etc. Então, de um jeito ou de outro, estou ali, todas as manhãs à escrivaninha. Nem que seja para, durante algum tempo, ficar olhando o mouse piscando na folha em branco. E como disse Sartre: “uma folha em branco não é apenas uma folha em branco”. Durante todos esses anos, para onde eu iria, meu deus, senão para a escrivaninha e ficar cutucando palavras? – Ai, palavras, ai, palavras, que estranha potência a vossa – (Cecília Meireles). Bom, acordo, faço um café, e logo vou. É como seguir o canto das sirenas.
Em que hora do dia você sente que trabalha melhor? Você tem algum ritual de preparação para a escrita?
Alguns adoram a madrugada. Eu também gostava dela quando iniciei. Mas com o tempo passei a escrever pela manhã, logo cedo. Falam que a madrugada propicia mais a criatividade porque é mais silenciosa. Bom, São Paulo é uma cidade ruidosa demais a qualquer hora do dia. De fato, ruídos incomodam, mas prefiro a manhã, porque nessa parte do dia, sinto-me renovado, mais disposto. Há aquela revitalizada sensação de que aquele trecho turvo, aquele personagem indefinido ou aquela frase imprecisa ainda podem ser revistos, recuperados. Não sei se é um ritual, mas antes de começar a escrever, preciso de uma caneca de café bem quente. Também tento manter minha mesa bem arrumada, organizada. Com esta, é sempre uma grande batalha e, na maioria das vezes, eu perco.
Você escreve um pouco todos os dias ou em períodos concentrados? Você tem uma meta de escrita diária?
Há momentos e momentos. Às vezes escrevo mais, noutros, menos. Mas persisto. Se nessa refrega consigo uma frase que valha a pena, já valeu. Penso que isso talvez seja uma meta. Escrever é difícil, e até onde posso, tento fazer isso com prazer. Quando começo um livro, procuro trabalhá-lo até sentir que ele já não mais me quer. Nem sempre funciona. Tenho contos inacabados, livros parados, ideias engavetadas. Isso acontece porque quando estou escrevendo um livro, pode surgir outro que acredito – nem sempre estou certo – ser mais visceral, mais definido. É como um cavalo que parte muito depois dos outros e chega em primeiro. Então, paro o livro que estava escrevendo e finalizo o segundo. Aquele geralmente serve como um tipo de aquecimento para este. De tempos em tempos, revisito os textos inacabados. Se percebo que vale algum esforço, reescrevo-o, caso contrário, esqueço-o de vez e deleto sem pena. Não estipulo metas, mas necessito de prazos.
Como é o seu processo de escrita? Uma vez que você compilou notas suficientes, é difícil começar? Como você se move da pesquisa para a escrita?
É como observar uma fruta desde o seu nascimento. Todos os dias, uma olhadinha. Até conseguir colhê-la antes de ela despencar e partir-se ao chão. Mas primeiro há o caos. Você sabe que há algo ali que vale a pena. Você já conhece o processo. Já se conhece. Então, sabe que há, ora. Mas não consegue ainda organizar o furor do grande baile desordenado. A mente-escritor tem as ferramentas: apara, lapida, corta, reescreve, reflete, monta, desfaz. Tudo isso ainda no campo do etéreo, certo? Nada ainda escrito. Aí você percebe que alguns blocos já se formaram. Você os tem presos. Pode repeti-los na mente, de trás para frente. Estão ali, como belos pássaros em uma gaiola. Já é possível fazer um pequeno alicerce. Pode-se já visualizar o que se pretende. Depois é ainda mais trabalho e trabalho. Mas agora a coisa vai. Sempre comparei a escrita a uma construção: demora-se mais no alicerce. É uma barulheira danada. Finca-se e bate-se coisa em demasia. Fica-se nisso um tempo considerável. Depois tudo vai, e vai. Às vezes emperra, por algum motivo, mas depois vai de novo. É uma estrutura, né? Tudo cumprindo a sua respectiva função. Há uma equação justificando tudo, não? Na escrita também há uma equação. Um caractere fora do lugar certo e a coisa desanda. O prédio desaba. E aí é começar tudo de novo. E é melhor assim. Nada de remendos na estrutura. Tudo de novo.
Como você lida com as travas da escrita, como a procrastinação, o medo de não corresponder às expectativas e a ansiedade de trabalhar em projetos longos?
Há inúmeros motivos para as travas. Algumas resultam de o escritor achar que o que está escrevendo não está muito bom e ele não sabe como melhorar a coisa. Pelo menos por um determinado tempo. Ou, em alguns casos, por achar que deve experimentar uma abordagem diferente, mas ainda não sabe bem por onde ir. Ou por algum erro na estrutura, ou pelo cansaço, exaustão do processo. Várias. Elas fazem parte. Gosto sempre de citar Hemingway que dizia que só ia para cama quando sabia como recomeçar no dia seguinte. Pela manhã, ele não iria arrancar ideias das tripas, mas sim do que já havia escrito à noite. Tudo já estava li. Era só trabalhar o texto. Quando travo, vou dar uma volta, abro um vinho, leio, faço um café, leio um pouco mais. Nesse meio tempo, sinto os personagens, as frases, os parágrafos agarrando-se em mim, querendo me trazer de volta para o fundo daquele emaranhado universo. E de volta à coisa, algumas frases vão surgindo faceiras, e rio. E chove frases, e rio ainda mais. Em momentos assim, sinto-me pago. Digo: “a pena vale a pena”.
Quantas vezes você revisa seus textos antes de sentir que eles estão prontos? Você mostra seus trabalhos para outras pessoas antes de publicá-los?
Para mim, não existe texto pronto, mas a compreensão, o limite, o paradigma que lhe cabe no momento. Não sei quantas vezes os reviso, não conto, mas sei que faço isso inúmeras vezes. Começo com leituras silenciosas, uma coisa meio como quem afina um instrumento. E tudo vai lindo, aí uma corda soa em desarmonia. Afino-a. Nem sempre é fácil. Subo demais, desço demais, procuro o caminho do meio. Depois os reviso como quem degusta vinhos. O que a palavra me parece aos olhos, ao nariz, ao paladar. Tudo está em harmonia? A harmonia que me apraz? A minha harmonia. Ainda como quem degusta um vinho deixo todas as palavras na boca, sobre e sob a língua. Espero um pouco, depois as bebo. Por último – acho que é por último, não tenho certeza – apenas deixo as palavras um tempo na boca e não as bebo mais. Cuspo-as e vejo se ainda permanecem na boca: redondas, encorpadas, como eu as quero. Mas isso não é fácil, não. É como dizia Philip Roth: escrever é estar sempre errado. É isso. Sobre mostrar o que estrou escrevendo, aprendi com o mesmo Roth, que isso pode ser saudável. Uma vez, mostrei um trecho de um livro que estava escrevendo. A pessoa me mostrou um outro viés da narrativa. Ela me disse: “não, ele não deve fazer isso. Ele pode até imaginar, mas não deve fazê-lo. Achei interessante e mudei na hora. Gostei do resultado. Não teria me perdoado se tivesse mantido a minha versão. Só ressaltando que esta pessoa não é escritora. É evidente que a noiva não deve mostrar o vestido a todo mundo. Mas para algumas pessoas pode até dar ainda mais sorte ao casamento. (risos)
Como é sua relação com a tecnologia? Você escreve seus primeiros rascunhos à mão ou no computador?
Com exceção de notas, fichamentos, ideias que me caem em lugares inopinados, faço tudo no computador. Não leio e nem escrevo no celular, não consigo. Esses teclados mínimos me deixam maluco. Afora isso, não tenho nenhuma resistência à tecnologia. Acho uma mão na roda. Sei que alguns escritores de renome ainda hoje preferem escrever à mão e só depois passam tudo para o computador. Cada escritor tem o seu jeito. Quando comecei a escrever, adorava fazer isso à mão, com caneta, mas com o tempo, me adaptei bem ao teclado. E tem outra. Quando tenho de escrever com caneta penso muito rápido e a mão parece não acompanhar, então, quando vou tentar ler o que escrevi, não entendo quase nada. Nisso, tenho que reescrever boa parte do texto. Por essas e outras, prefiro escrever direto no computador.
De onde vêm suas ideias? Há um conjunto de hábitos que você cultiva para se manter criativo?
Se soubesse de onde surgem as ideias, com certeza não sairia de lá. A primeira que passasse pela porta, eu pegaria primeiro. (risos) Penso que elas vêm de diversos lugares ou da mistura de todos eles. Um caldo borbulhante. Do que vivi, do que leio, do que gostaria de viver, do que sou, do que gostaria de ser. Das minhas vidas possíveis e principalmente, das impossíveis. Sei lá. Dizem que Joyce era esquizofrênico, assim como sua filha. Ela se tratava com Jung. Joyce escrevia. Foi salvo pelo ofício da escrita. Foi o que Jung disse a ele. Penso que escrevo para escapar de mim mesmo. Para me manter criativo, leio, leio, viajo, tomo café em botecos, converso com pessoas, vou à feira comer pastel, degusto vinhos, leio, mantenho o sonho de pular de paraquedas, bungee jump, andar de balão, apesar do meu extremo medo de altura. Arrisco-me em receitas culinárias complexas que nunca acabam bem. Entre outras coisas, leio.
O que você acha que mudou no seu processo de escrita ao longo dos anos? O que você diria a si mesmo se pudesse voltar à escrita de seus primeiros textos?
Mudou muita coisa. No inicio eu era prolixo e achava que quanto mais escrevesse, melhor. Fui aprendendo que na maioria dos casos, na escrita, o menos pode ser mais. Aprendi na marra que, às vezes, cortar, deletar, apagar é muito melhor do que escrever inúmeras palavras bonitas. O que diria a mim mesmo se pudesse voltar à escrita dos meus primeiros textos? Se entendi bem a questão, diria: “não falei que você iria se arrepender de ter escrito isso?”
Que projeto você gostaria de fazer, mas ainda não começou? Que livro você gostaria de ler e ele ainda não existe?
Gostaria de me aventurar no universo infantil/infantojuvenil. Até já tenho algumas ideias de livros, mas sempre reluto, sempre os coloco num canto feito uma fruta que se espera que amadureça. Por enquanto, só vontade.
Tenho uma fila de livros para ler até morrer. Mais um? (risos) Ah, talvez um livro de algum grande autor que tenha escapado de um buraco negro. Gostaria muito de saber o que tem mesmo dentro daquela coisa. Se é que há mesmo algo ali. Seria como procurar o sentido da vida? Sei lá.