Renato Torres é poeta, músico, compositor, ator e produtor musical.

Como você começa o seu dia? Você tem uma rotina matinal?
Em primeiro lugar, preciso dizer que acredito na escrita como algo análogo à própria vida, e não apenas uma parte do fenômeno da vida. Explicando melhor: creio que estamos a escrever o tempo inteiro ao, simplesmente, viver. O ato da escrita formal, literária, ensaística, etc, seria apenas a ordenação formativa desse fato tácito, imbuído de intencionalidade e direção. Dito isto, ao despertar (sempre que possível) procuro repassar a narrativa dos sonhos, que pra mim são uma forma de escrita fulcral. Há/houve mesmo períodos de intenso exercício de transcrição de sonhos, o que impulsionou diversos projetos meus. No mais, vou escrevendo por demandas ou por impulsos intuitivos.
Em que hora do dia você sente que trabalha melhor? Você tem algum ritual de preparação para a escrita?
Para mim não existe esse horário preferencial, considero qualquer horário adequado a escrita, bastando para isso a disposição e/ou demanda. Não tenho um ritual específico, apenas me concentro no que quero escrever.
Você escreve um pouco todos os dias ou em períodos concentrados? Você tem uma meta de escrita diária?
Todos os dias há algo de escrita sendo produzido – mesmo que por vezes ela não vá para o papel, não se materialize de forma objetiva. Estou sempre atento ao que vai me acontecendo, às minhas percepções dos fenômenos cotidianos da vida. Tenho sempre em mente que no momento em que escrevo fisicamente sobre algum suporte, estou reunindo “escritas” anteriores, feitas dessas vivências e de suas observações. Não tenho metas diárias de escrita, procuro respeitar o que é necessário a cada momento, ou seja, não me forço, ou forço minha escrita a dar mais do que ela tenha a dar num determinado momento. Pelo contrário, quando sinto que um texto trava em algum ponto, paro a escrita objetiva, e vou viver: ler, conversar, observar a natureza, ver um filme. É aí que essas outras escritas subjetivas alimentam o que escreverei.
Como é o seu processo de escrita? Uma vez que você compilou notas suficientes, é difícil começar? Como você se move da pesquisa para a escrita?
Creio já ter respondido um pouco na questão anterior. Meu processo é existencial, vivencial, empírico. Mesmo ao me lançar a outros escritos e livros, acredito estar a vivenciar outras experiências que serão fundamentais para a minha escrita posterior. Não acredito muito em métodos tradicionais – ainda que faça uso de vários deles. Ou como seja, acredito muito mais numa certa “voz do coração”, num instinto delicado que me aponta caminhos enquanto escrevo. Nenhum texto “se esconde”, por assim dizer, na obliteração de uma folha em branco se me ponho à disposição de minhas intuições – e confio plenamente nas primeiras ideias, ou nas primeiras frases que me surgem. Posso até vir a modificá-las depois, mas então já cumpriram sua importantíssima função em fecundar o solo outrora vazio da página. Me movo da pesquisa à escrita com me movo na vida, atento aos percalços do caminho, como quem viaja utilizando no caminho meios diferentes de transporte, por terra, água e ar.
Como você lida com as travas da escrita, como a procrastinação, o medo de não corresponder às expectativas e a ansiedade de trabalhar em projetos longos?
Procrastinar, para mim, significa estar fora de seu próprio eixo, desconhecer os propósitos íntimos de seus próprios projetos. Se escrevo para algo que seria a demanda de outrem, um projeto de outrem, procuro introjetar aquelas ideias como se fossem integralmente minhas, como se fosse o meu próprio projeto. Se estou trabalhando num projeto meu, procuro tentar entender porque estou lutando contra ele, o que nele me incomoda ou perturba. Ter medo e ansiedade são sentimentos demasiadamente humanos, e é preciso encará-los no processo da escrita como energias partícipes. A depender de como as dirijo, de como as canalizo, posso ter resultados interessantes, ou por muita coisa a perder. Particularmente, incluo todas as minhas crises, medos, inseguranças e ansiedades em meus processos criativos, e busco entendê-las dentro desses mesmos processos, utilizando suas energias como vetores para alcançar resultados inesperados. De maneira geral, me parece uma opção melhor do que fingir segurança, autocontrole.
Quantas vezes você revisa seus textos antes de sentir que eles estão prontos? Você mostra seus trabalhos para outras pessoas antes de publicá-los?
Reviso sempre no momento em que escrevo, mostro para algumas pessoas de confiança, e dou um tempo para voltar a lê-los depois, com outros olhos. Não reviso demais, nem fico buscando obstinadamente uma quimérica perfeição, porque procuro respeitar o que eu chamo de “texto possível” naquele momento em que foi escrito, com todas as suas idiossincrasias, vindo igualmente de um “escritor possível”.
Como é sua relação com a tecnologia? Você escreve seus primeiros rascunhos à mão ou no computador?
Tenho uma relação tranquila com a tecnologia. Escrevo ultimamente bastante no computador e no celular, mas a depender do momento e do lugar onde esteja, puxo meus cadernos para manuscrever. Considero o manuscrito um lugar especial, onde um certo sabor anímico da escrita pode (e deve) ser preservado.
De onde vêm suas ideias? Há um conjunto de hábitos que você cultiva para se manter criativo?
Da vida. A vida humana é o fenômeno mais poderoso de que temos conhecimento – e um conhecimento ainda relativo, parcial. Acredito que da vida jorra uma abundância incessante de ideias, de imanências significantes, e nossa função como artistas é desvendar e ao mesmo tempo ampliar continuamente este vocabulário sígnico através do objeto estético. Os hábitos que cultivo permanecem basicamente os mesmos desde que eu era criança: manter-me curioso e com uma sensibilidade disponível ao deslumbramento, ao espanto, a ser mobilizado sentimentalmente (isso assumiu um lugar perigosamente banal e prosaico na sociedade do espetáculo, onde o senso comum acredita que o sentimento se resume a sensação de perdas ou ganhos no terreno amoroso/romântico). Ser, também, um artista de múltiplas atividades em diversas linguagens (música, poesia, teatro, artes visuais) me mantém alimentado e constantemente excitado criativamente.
O que você acha que mudou no seu processo de escrita ao longo dos anos? O que você diria a si mesmo se pudesse voltar à escrita de seus primeiros textos?
A mudança se deu no sentido do amadurecimento, de como me tornei um homem de 49 anos mais consciente de mim mesmo e de tudo o que faz parte de mim. Acolher minhas dores, limitações, medos, inseguranças foi e é fundamental para a sedimentação e adensamento de minha escrita. Eu diria a mim mesmo: “não tenha pressa; vá escrevendo e vivendo. Tudo se dará no seu próprio tempo, e em sua própria medida. Apenas siga sendo você mesmo.”
Que projeto você gostaria de fazer, mas ainda não começou? Que livro você gostaria de ler e ele ainda não existe?
O projeto que quero realizar é o que antes se chamava livro-CD, mas que hoje pode ser um livro com trilha-sonora, ou seja, um livro em que o leitor pode ler ouvindo sua trilha numa plataforma de streaming, ou pode ler, e num determinado momento parar a leitura e ouvir uma canção no streaming, e depois retornar à leitura, dando saltos entre esses dois suportes. Isso pode ser ampliado também até o audiovisual, alternando entre leitura e vídeo. O livro que eu gostaria de ler, e não existe, é o livro-memória absoluto: o livro de tudo o que já vivi na consciência e inconsciência, e que aviva ainda mais o sentido de tudo.