Renata Wirthmann é escritora, psicanalista e professora do curso de Psicologia da UFCAT.

De modo bem freudiano, no melhor estilo do conceito Nachtraglich, o processo de responder esse roteiro de perguntas me fez repensar algumas coisas sobre mim, minha rotina e minha escrita. O resultado: descobri que a rotina é uma grande paixão minha. Isso pode não ser tão interessante como biografia, mas bem satisfatório como funcionamento de uma vida. Algo que sempre penso lendo grandes biografias é que quanto melhor para o leitor, pior para quem viveu aquela vida. As histórias mais interessantes de serem lidas, foram terríveis de serem vividas. Esse não é meu caso. As coisas funcionam bem na vida, logo, a biografia ficará sem graça. Fazer o que? É o que é…Sou uma neurótica bem organizada, adoro caixinhas, gavetinhas, pastas, canetas coloridas e etiquetas, sempre com o objetivo de controlar tudo, já que não dá pra controlar a morte, uma neurótica, como eu, tenta controlar o processo até chegar lá, e que demore bastante!
Como você começa o seu dia? Você tem uma rotina matinal?
Como antecipei acima, a rotina é minha única religião. Sou uma pessoa apaixonada por rotina, planilhas e agenda. Acordo por volta das 6:15, faço atividade física, em casa, das 6:30 às 7:20, tomo banho, café da manhã (expresso duplo com pão integral e queijo minas) e saio para trabalhar às 7:50. Começo a trabalhar todos os dias às 8:00. Moro no interior de Goiás, em Catalão, meu tempo de deslocamento é de somente 7 minutos. Quando tem mais do que cinco carros na rua, falamos que estava engarrafado. Penso que um paulista, com centenas de carros ao redor, certamente acharia graça do nosso uso para a palavra “engarrafamento”. Essa é uma das coisas que me fez escolher morar e trabalhar no interior: poder aproveitar (controlar) melhor o tempo. Gosto de concentrar a maior parte do trabalho como professora e psicanalista pela manhã: aulas, supervisões, orientações, atendimentos. Em relação à escrita, nunca escrevo pela manhã. A velocidade e o volume das coisas que faço pela manhã não parecem me autorizar escrever, exceto aulas e relatórios.
Em que hora do dia você sente que trabalha melhor? Você tem algum ritual de preparação para a escrita?
Adoro escrever quando estou sozinha. Um prazer barato que tenho, como diria Freud ao descrever o prazer de voltar o pé para debaixo da coberta quente num dia gelado, é fugir mais cedo de uma reunião à tarde para ler e escrever. Sou professora do curso de Psicologia da Universidade Federal de Catalão (UFCAT) há quase duas décadas e, infelizmente, sou coordenadora do curso há dois anos(o que vai acabar ano que vem, para minha enorme felicidade). Uma mudança (que adorei e espero que continue assim para sempre) no funcionamento do trabalho na universidade, em decorrência da pandemia da COVID-19, foram que as reuniões administrativas passaram para o formato remoto (on-line). As reuniões nesse modelo se tornaram mais rápidas e objetivas. Conto os minutos para o término de cada reunião porque, quanto antes elas terminam, mais posso me dedicar à literatura e à psicanálise. Sei que alguns adoram o trabalho burocrático e funções administrativas, mas essa não sou eu. Sofro com reuniões e odeio cargos: coordenação, direção, pró-reitoria e o maior pesadelo de todos, reitoria. Não tenho vocação para carreira política ou administrativa. Amo sala de aula, pesquisa e extensão. Os dias que mais escrevo são sábado e domingo. Esses dias são todos meus para eu fazer com eles o que eu quiser. Acordo cedo nos finais de semana, meu sono acaba sempre antes das 7:00, mesmo no domingo. Cuido das plantas (adoro), cachorros (apaixonada) e me escondo na biblioteca (meu lugar preferido da casa). Sobre rituais de preparação para a escrita, assim como rotina, agenda e planilhas, adoro cadernos coloridos, muitas canetas e metros e metros de mesa, com muitos livros abertos ao mesmo tempo.
Você escreve um pouco todos os dias ou em períodos concentrados? Você tem uma meta de escrita diária?
Leio e escrevo todos os dias, mais regularmente sobre psicanálise. Tenho o hábito, mesmo já tendo 20 anos de docência, de preparar cada aula com um texto que depois se tornam artigos a ensaios. Minhas metas são as aulas que tenho que preparar, a exigência semanal de aulas me leva a ler e escrever diariamente. Em relação à literatura infanto-juvenil ela surgiu da clínica com crianças. Minhas principais linhas de pesquisa e extensão são a infância, o autismo, a psicose e a arte. A combinação dessas três me levou à literatura infantojuvenil. Primeiro usando a literatura como ferramenta para associação livre de crianças, depois escrevendo, junto com as crianças, suas próprias narrativas, depois a construção dos casos clínicos dessas crianças, por fim, elas foram se tornando personagens dos meus textos: o menino que preferia furacões à pessoas, a menina que queria ser água, a quase-quase-quase adolescente que queria pular o ser criança, entre outros. Outra escrita que passei a me dedicar de três anos para cá foi impulsionada por acontecimentos traumáticos no país. A guinada da extrema direita, a violência, a pandemia, a pobreza entre outras formas de sofrimentos da contemporaneidade tem me levado a escrever na rede. Tenho gostado muito desses pequenos ensaios e sinto que são mais acessíveis à população em geral que os artigos científicos. Claro que a universidade exige a publicação regular de artigos, e eu cumpro a meta exigida, mas não é aí que está meu afeto.
Como é o seu processo de escrita? Uma vez que você compilou notas suficientes, é difícil começar? Como você se move da pesquisa para a escrita?
Tenho sempre à mão dezenas de livros e artigos na mesa, fico fazendo zigue-zague entre ler e escrever. Essas duas coisas (ler e escrever) são, para mim, inseparáveis. Uma puxa a outra, nem sei qual vem primeiro, elas só vão se costurando. Leio e, dessa leitura, escrevo à mão tópicos de ideias nos meus cadernos coloridos e sem pauta. Quando esses tópicos começam a exigir texto, passo para o computador. Quando esse texto fica desordenado, imprimo e corrijo com a caneta. Quando sinto que está mais organizado, volto para o computador. Quando percebo que a escrita travou, volto para a leitura… Um eterno ziguezague.
Como você lida com as travas da escrita, como a procrastinação, o medo de não corresponder às expectativas e a ansiedade de trabalhar em projetos longos?
Tenho a sensação (constatação) de que assumo mais compromissos do que consigo cumprir, o que me leva a uma eterna dívida comigo mesma. Tenho dezenas de projetos engavetados esperando que eu consiga finalizá-los. Não tenho problema com a procrastinação, mas com a ambição. Realmente percebo que assumo mais coisas do que as poucas 24 horas por dia que me foram dadas pelos movimentos de rotação da Terra em torno de si mesma. Gostaria que a Terra girasse um pouco mais devagar para eu não ter que aprender a assumir menos compromissos, mas penso que a segunda opção será a mais provável de acontecer. Uma vez assumidos os compromissos os anoto na agenda, a de papel e a do celular. Supondo que se eu organizar impecavelmente os tempos para os trabalhos, vou fazer o tempo, que insiste em não ampliar, parecer maior. Sempre gasto mais tempo do que programei e a dívida nunca acaba. Infelizmente não tem mercado de tempos, se tivesse eu seria uma cliente fiel. Ou gostaria de experimentar, sem punição posterior, à todos vão caber, mas nunca cabem e a dívida com os projetos engavetados nunca acaba. Tenho a certeza de que nunca vou conseguir encerrar todos meus projetos e, certamente, nunca vou conseguir nem 1% de todos os livros que almejo. Em resumo, sinto que meu maior problema é a ambição de fazer o tempo se adaptar aos meus projetos de escrita e aos meus desejos de leitura. Se um dia eu conseguir controlar o tempo, coloco em dia minha lista de escrita e leitura. Gostaria de ter a esperteza e habilidade de Sísifo para tramar contra os deuses do tempo, sem a punição posterior.
Quantas vezes você revisa seus textos antes de sentir que eles estão prontos? Você mostra seus trabalhos para outras pessoas antes de publicá-los?
Mostro todos os meus textos para o Wesley Peres (marido). Estamos juntos desde meus 17 anos de idade e ele também é psicanalista e escritor. Na nossa história nós estudamos, formamos e trabalhamos sempre juntos. Sempre li os textos do Wesley e ele sempre leu meus textos, sobretudo os textos literários. Essa parceria de escrita e leitura compartilhada há 24 anos é o que me deixa mais segura em relação aos meus textos. No início da pandemia percebi que precisava de mais um olhar sobre meus textos pois meus processos estavam muito lentos e a fila de projetos não estava avançando como eu desejava, pensando nisso pedi o impecável olhar e revisão do Sérgio Tavares. Após o trabalho com o Sérgio senti que meus textos melhoraram muito e não me imagino mais escrevendo sem a revisão dele. Não sei escrever sozinha, sem o olhar de um terceiro. Minha neurose é nem freudiana nesse ponto, tenho um enorme respeito pela linguagem e gosto que um outro confirme se a respeitei.
Como é sua relação com a tecnologia? Você escreve seus primeiros rascunhos à mão ou no computador?
Gosto de livros impressos e cadernos. Adoro canetas coloridas e marcadores de páginas. Meus livros são lotados de post its e não sei ler sem um lápis na mão e riscos nas páginas dos livros. Apesar de adorar tudo isso, amo a tecnologia. Adoro escrever e ter acesso aos meus textos em qualquer lugar que eu estiver. Tudo que escrevi ou estou escrevendo está na nuvem e acho isso poético e maravilhoso. Escrevo nos intervalos que acontecem ao longo do dia, principalmente os não programados, os tempos que surgem de modo imprevisível na agenda. Com a nuvem, ao invés de rodar o dedo em redes sociais, circulo entre os textos que estou escrevendo ou aulas que estou preparando e qualquer pequeno intervalo se tornam trechos de textos. A tecnologia é uma grande aliada na minha ambição de controlar o tempo.
De onde vêm suas ideias? Há um conjunto de hábitos que você cultiva para se manter criativa?
Da leitura de textos literários, da leitura de textos psicanalíticos e da escuta da clínica, das supervisões, da escuta em sala de aula… em resumo, da leitura e da escuta. A escuta em psicanálise é uma espécie de leitura. A associação livre é um esforço de produzir um texto que, quando escutado, se compõe. A formação em psicanálise exige uma atenção flutuante ao texto para que as intervenções possam ser feitas e isso, de algum modo, se torna literatura. A prática analítica determina que a primeira incumbência do psicanalista é escutar e escutar cuidadosamente. Descobrimos que existem poucos bons ouvintes no mundo por que as pessoas escutam sempre focalizadas em si mesma, a maneira habitual de escuta é altamente narcisista e egocêntrica. Vejo que algo parecido acontece com os leitores, que procuram na literatura uma espécie de espelho e não portas. Quando não conseguem se ver num texto, não localizam suas próprias experiências, sentimentos ou perspectivas e crenças, elas têm a sensação de que não estão entendendo o livro e abandonam a leitura. A escuta flutuante da prática clínica seria uma boa proposta para a leitura para a literatura.
O que você acha que mudou no seu processo de escrita ao longo dos anos? O que você diria a si mesma se pudesse voltar à escrita de seus primeiros textos?
Tenho a sensação de que demorei demais para me autorizar a me chamar escritora. Sempre escrevi, mas sempre academicamente. Demorei mais de 10 anos para perceber que a psicanálise era minha entrada na literatura. Dois prêmios me autorizaram a dizer que meus textos eram literatura: bolsa Funarte de criação literária e o prêmio CEPE de livro infantojuvenil.
Que projeto você gostaria de fazer, mas ainda não começou? Que livro você gostaria de ler e ele ainda não existe?
O primeiro livro que comecei a escrever, em 2003, está na gaveta até hoje. Trata-se de um livro em que a Frida Kahlo se torna minha personagem, em primeira pessoa, como se estivesse em análise, deitada no divã, e eu na tarefa de escutá-la de modo flutuante. Ela conta sobre corpo, dor, sexualidade e arte. Cada quadro é o resultado de uma sessão de análise. Parte dessa ambição se tornou minha dissertação de mestrado em 2004. Em 2006 fui ao México para retomar esse projeto numa exposição que reunia centenas de documentos da secretaria de Diego Rivera que havia morrido. Esses documentos estavam guardados há 50 anos. Consegui autorização da embaixada do México e do Museu da Casa Azul para digitalizar e catalogar tudo. Todo esse material está no meu computador desde então. Esse material de cerca de 600 documentos me assombra. Todos os dias, nos últimos 15 anos, penso nele. Em abril deste ano (2022) eu mandei uma mensagem para o Sérgio Tavares pedindo socorro sobre esse projeto. Preciso transformar esse fantasma em obra.
* Entrevista publicada em 10 de julho de 2022.