Raisa Christina é artista visual e escritora, autora de “mensagens enviadas enquanto você estava desconectado” (Substânsia, 2014).
Como você começa o seu dia? Você tem uma rotina matinal?
Minha filha me acorda pontualmente às seis ou às vezes acordo pouquinho antes dela. A rotina, nesse começo de dia, está muito atrelada à de Catarina: fazer seu café da manhã, dar banho, fiscalizar a escovação de dentes, ajudar a vesti-la e deixá-la na escola. Ao voltar para casa, como alguma fruta e tomo chá. Em seguida, começo a escrever ou a desenhar, o que depende do projeto em andamento.
Em que hora do dia você sente que trabalha melhor? Você tem algum ritual de preparação para a escrita?
Gosto de escrever pela manhã e pela tarde. Sou do dia. Posso produzir bem enquanto há luz. À noite costumo ler. Tanto para pintar como para escrever, há um aquecimento da mão que é importante pra mim. O desenho pode me ajudar nesse sentido. Risco um papel muitas vezes sem retirar a ponta do lápis da superfície da folha. Faço círculos e mais círculos, dando pequenas voltas com o pulso, depois sigo com essa linha para cima e para baixo, tentando ocupar todo o campo do papel. É uma boa maneira de aquecer a mão e tensionar a relação com a caneta e o retângulo branco.
Ponho no papel algumas frases ou pedaços de frases que colhi recentemente e elas são o primeiro material. Poucas vezes gosto das primeiras linhas que escrevo. Mas elas são muito necessárias para que surja algo depois delas. Os textos são geralmente curtos e podem vir num fluxo de prosa ou espalhados em versos. A opção por uma forma ou outra tem a ver com o ritmo que o material inspira.
Você escreve um pouco todos os dias ou em períodos concentrados? Você tem uma meta de escrita diária?
Desenho ou escrevo todos os dias. Mas posso passar períodos mais longos sem desenhar e permanecer tranquila. A relação com a escrita é diferente. Se sigo dias sem escrever com um mínimo de atenção, logo me sinto estranha, como se estivesse em dívida comigo mesma. A dinâmica da vida parece pouco menos obscura quando me dou um tempo para escrever qualquer coisa que quase sempre supõe um leitor específico, ainda que não se trate da escrita de cartas.
Não funciono tão bem com metas que me exijam quantidade. Gosto de listar em tópicos atividades que preciso realizar durante o dia, ações que posso simplesmente começar. Por isso preciso estar perto de minhas agendas e calendários pendurados na parede. Preciso ver as datas e pôr em escrito aquilo que devo fazer porque posso me distrair facilmente se estou apaixonada ou na presença de Catarina, por exemplo.
Claro que há projetos que nos agarram e exigem certa urgência. Tento ser fiel a eles e aproveito para praticar a solidão, o que equilibra o termômetro interno e a escuta do mundo. Nesse sentido, fico contente quando me proponho uma disciplina que otimiza minha produção, mas também que me permite burlar suas amarras toda vez que preciso dar uma volta no calçadão da praia, olhar as pernas dos rapazes ou chorar sozinha na sala de cinema.
Como é o seu processo de escrita? Uma vez que você compilou notas suficientes, é difícil começar? Como você se move da pesquisa para a escrita?
Meu processo de escrita é sentar com um caderno, uma caneta em mãos e uma vontade grande de algo que ainda não alcanço em entendimento. Não tenho tantas exigências em relação a ambientes ideais. Com criança por perto, a gente nunca vai ter silêncio e ordem, então sou levada a trabalhar meu estado de concentração nas situações mais adversas. Escrevo isso rindo, mas é a pura verdade. Não acho tão difícil começar. Começo escrevendo palavras mais ou menos soltas e restos de frases que me rondam, aí vou ocupando a página com muita mancha e gordura. Gosto mais da fase seguinte, que é a de ir rasgando, retirando tudo aquilo que não serve e reescrevendo para dar um arranjo ao texto. Reescrever é mais prazeroso.
Como você lida com as travas da escrita, como a procrastinação, o medo de não corresponder às expectativas e a ansiedade de trabalhar em projetos longos?
Meus textos são curtos. Se surgem travas de verdade em um texto particular, parto para outro ou começo a desenhar. Talvez em outro momento eu retome o texto antes travado e encontre alguma chave para ele. Por enquanto, não tenho ambição de escrever romances. O texto mais longo que escrevi foi a dissertação do Mestrado em Artes e para tanto necessitei de um rigor maior com o trabalho mesmo da escrita. Pela primeira vez, senti que deveria delimitar horários mais rígidos. Escrevia até à noite, depois que Catarina dormia. Isso acontece raramente. Precisei criar uma cumplicidade grande com aquele texto, que, apesar do ambiente acadêmico, foi bastante literário. Minha orientadora me encorajava e, no final das contas, a pressão dos prazos e a avaliação de outros pesquisadores foram dados positivos. Foram positivos porque encontrei um modo de torná-los assim: entendi que se tratavam de um desafio e, sobretudo, entreguei-me à pesquisa com muito amor. A dissertação falava dos desenhos de mapas e retratos que fiz em parceria com jovens skatistas que percorrem a cidade de Fortaleza.
Quantas vezes você revisa seus textos antes de sentir que eles estão prontos? Você mostra seus trabalhos para outras pessoas antes de publicá-los?
Não tenho ideia de quantas vezes reviso, mas acho que deveria revisar mais. No fundo, me acho apressada. Perceber um problema no texto já impresso e que poderia ter sido revisado anteriormente, se houvesse mais cuidado, é algo que aborrece. É muito importante a revisão feita também por outros profissionais. Há uma série de hábitos que a gente mantém na escrita sem examinar com o devido cuidado. São pequenas manias que por vezes não fazem sentido real ao texto e até o empobrecem. Gosto de enviar a alguns amigos antes de publicar porque eles trazem dúvidas e ativam percepções distintas em relação ao material. Gosto de ler em voz alta para mim mesma, na maioria das vezes, mas também para os mais íntimos. Acho um exercício bom esse de sentir o texto com a nossa voz e depois escutá-lo na voz e na entonação de outros. As sequências de palavras adotam novos corpos.
Como é sua relação com a tecnologia? Você escreve seus primeiros rascunhos à mão ou no computador?
Primeiramente escrevo à mão. Reescrevo à mão e só depois digito no editor de texto ou no Google Drive para compartilhar com alguns amigos antes de publicar. Não desenho em softwares porque ainda fico besta com a alteração do risco na estrutura do papel. Com a escrita é algo parecido. Compor vagarosamente linhas de palavras no papel me agrada. É um pequeno prazer. Acho bonito reparar nas letras enfileiradas, gosto de rasurar e escrever em cima, puxar uma seta na lateral para propor outra ordem ou desfazer todo um parágrafo.
De onde vêm suas ideias? Há um conjunto de hábitos que você cultiva para se manter criativa?
Com frequência penso nas pessoas para quem gostaria de escrever. A escrita começa bem neste ponto em que vislumbro alguém. Entretanto, não me parece que escrevo correspondências exatamente. Sem dúvida parto desse endereçamento ao outro, a um outro muito concreto na minha cabeça. Há sempre um leitor me rondando, uma necessidade de declarar algo para alguém e dessa necessidade o texto escapa e se amplia. Quando me dou conta, já é maior do que um “você” e pode até mesmo chegar a muitos.
As ideias vêm dos rostos que se fixaram nas minhas lembranças, vêm de um hematoma na pele, dos problemas da menstruação, do desenho dos monólitos de Quixadá, do aprendizado num passeio de caiaque ou da tela em branco que havia comprado para fazer o retrato do rapaz que dias depois me disse que não. Os hábitos que cultivo para criar têm a ver com o modo de atenção em mim e naquilo que me rodeia. Se me desligo dessa atenção, desse modo de operar com olhos bem abertos e mãos curiosas, escrevo menos.
O que você acha que mudou no seu processo de escrita ao longo dos anos? O que você diria a si mesma se pudesse voltar à escrita de seus primeiros textos?
Acho que o tempo nos ajuda a saber quais são as palavras que estão com a gente. Nos meus textos mais antigos, às vezes tenho a impressão de que fingia tomar certas palavras que no fundo não eram minhas, não condiziam com a voz narradora que estava ali presente. Eu talvez dissesse a mim mesma, naquela época, para não ter medo de escrever em primeira pessoa, para ler mais e especialmente não demorar tanto a ler poesia. A poesia me chegou bem mais tarde e acho que por isso me forcei tanto tempo a escrever numa prosa tradicional, acreditando inocentemente que havia modelo de conto e crônica a ser seguido.
Que projeto você gostaria de fazer, mas ainda não começou? Que livro você gostaria de ler e ele ainda não existe?
Penso em fazer um livro de contos sobre os retratos que não consegui fazer. Gostaria muitíssimo de ilustrar uma nova edição dos poemas de Victor Heringer e também de publicar algo em parceria com Pedro Bomba. O livro que eu gostaria de ler e que ainda não existe é um sonho mesmo: seria o livro de poemas que Alejandro Zambra escreveria a partir de uma pequena série de aquarelas minhas (rs).