Rafael Tenório é jornalista e escritor.

Como você começa o seu dia? Você tem uma rotina matinal?
Sei que não é algo muito fora do normal nem interessante, mas costumo começar o dia com o café da manhã. Geralmente é café com leite, acompanhado de pão com margarina, com queijo ou frios. Antes da pandemia, eu costumava acordar às 6 da manhã e me preparar para sair de casa às 7, para trabalhar em uma função não relacionada à literatura. Apesar disso, o tempo todo estou pensando em coisas para escrever, inclusive de manhã, no transporte público. Acabou virando um hábito. Acho que isso se deve em grande parte ao Fala Aeh! (https://falaaeh.wordpress.com/), um blog que eu mantenho desde 2009 e me ajuda a escrever quase todos os dias. Acabo tendo ideias pela manhã, mas sinto que penso melhor à noite. Em geral, tenho muita preguiça durante as manhãs.
Em que hora do dia você sente que trabalha melhor? Você tem algum ritual de preparação para a escrita?
Sem dúvida, de noite eu escrevo bem melhor. Em parte é porque a preguiça da manhã passa quando a noite chega. No mais, parece que a ausência de sol e a presença da lua e das estrelas me afetam de algum modo. Às vezes me pego olhando o céu noturno, então penso no universo e os mistérios que ele abriga. Um bom exemplo das limitações do conhecimento humano está justamente no universo e o quanto ainda não sabemos sobre seus limites, origem, possíveis civilizações… Então penso no universo que existe em cada um, e o quanto não sabemos sobre o universo dos outros e do nosso próprio. Esse mistério, que pra mim ronda tudo o que existe, me atrai de um modo irresistível no sentido de tentar entender. E pra tentar entender a vida de modo geral, escrevo. É claro que de dia o universo continua lá, mas isso me parece muito mais evidente quando a luz do sol não ofusca todos os outros astros. Além disso, as noites me parecem mais silenciosas, tranquilas, e ouço no máximo latidos distantes de cachorros. Essa calmaria permite, digamos, que as águas da minha mente parem de se agitar e me permitam ver o que está no fundo. Quando isso acontece e não tenho nenhum compromisso no dia seguinte, costumo ter madrugadas bem produtivas.
Não tenho propriamente rituais para escrever. O mais comum é eu estar em um estado emocional que só eu conheço, mas não consigo explicar bem. Quando entro nesse estado, é comum que eu anote coisas no celular ou pedaço de papel mais próximo. Tem também outra coisa, que eu considero mais uma técnica do que um ritual: se quero usar uma experiência pessoal como ponto de partida para escrever, ouço uma música que me faz lembrar de determinado momento. Essa associação entre momento e música ocorre naturalmente e com frequência, porque sempre estou ouvindo álbuns e discografias inteiras. Ao ouvir a música associada à lembrança, mergulho numa atmosfera emocional que simula o que foi vivido. A partir daí, tento traduzir as imagens da memória em palavras. Claro que não é um processo exato, mas é um dos poucos que conheço.
Você escreve um pouco todos os dias ou em períodos concentrados? Você tem uma meta de escrita diária?
Escrevo um pouco todos os dias para atualizar meu blog, e isso acontece de segunda à sexta, exceto feriados. O blog já teve muitas fases, mas atualmente me dedico a micropoemas, com os quais exercito a criatividade e a capacidade de improviso. Em outros momentos organizo projetos de antologias e prossigo no meu primeiro romance, coisas que faço em meu tempo livre quando não estou muito cansado. Não trabalho com metas; não acredito em uma lógica industrial de trabalho, e penso que isso prejudica a qualidade do texto. Se fosse um texto técnico, que costuma ser redigido em contextos específicos e ter prazos de entrega, eu seria obrigado a cumprir cronogramas. Mas sendo literatura, e, portanto, arte, prefiro me reservar o máximo possível de liberdade. Outras pessoas podem se adaptar bem trabalhando como operários, mas eu estou mais para um artesão que trabalha para si próprio. Claro que, dependendo da editora e do prestígio do escritor, prazos são estipulados pela lógica mercadológica do processo. Mas, sempre que eu puder escolher, vou escolher liberdade.
Como é o seu processo de escrita? Uma vez que você compilou notas suficientes, é difícil começar? Como você se move da pesquisa para a escrita?
Não tenho um processo de escrita muito definido, e prefiro deixar as coisas assim. Qualquer coisa tem o potencial de me instigar, então presto mais atenção do que o normal no cotidiano. Acabo fazendo ligações espontaneamente entre o cotidiano e leituras, ou coisas que assisti. Além disso, meu blog tem uma seção de conselhos amorosos, que me ajudam a entender exemplos autênticos de problemas sentimentais. Não uso diretamente os conselhos em textos que escrevo, mas acabam me ajudando a criar tramas mais realistas quando há temática sentimental.
Acredito que sempre é difícil começar, não importa quantas notas eu tenha feito ou quanta vontade de escrever eu tenha no momento. Apesar disso, creio que a dificuldade sempre é maior com gêneros de texto com os quais tenho menos experiência. Por exemplo, eu não gostava de poemas, e depois de um tempo escrevendo um por dia, foi ficando progressivamente mais fácil, ao ponto de surgirem trechos inteiros em um lampejo intelectual. Nesses casos, em que nem parece uma ideia minha e sim um presente anônimo, eu apenas completo as lacunas, mas não é sempre assim. No momento, o gênero mais desafiador pra mim está sendo o romance. Eu planejei todo o texto, sei quantos capítulos são, o que acontece nesses capítulos, conheço os personagens, as funções de cada parte da história, mas ainda tenho muita dificuldade para escrever dentro do que planejei. É uma quantidade colossal de informações e possibilidades, de modo que ainda me sinto jogado à própria sorte em uma megalópole que não conheço. Frequentemente percebo que o planejamento da história não contempla tudo o que preciso na hora de efetivamente escrever os capítulos, então estou sempre indo e vindo, fazendo o itinerário pesquisa – escrita, não necessariamente nessa ordem, e não necessariamente com alguma ordem. Quando não são informações específicas sobre, por exemplo, cenário e objetos, tenho dúvidas sobre como passar essas informações para o texto. Nessas horas, corro para a estante e consulto autores que admiro. Apesar de qualquer pesquisa, em algum momento você precisa optar por determinados caminhos, e assim a história vai fluindo. É preciso mesmo fazer escolhas, porque é impossível se mover em todas as direções.
Como você lida com as travas da escrita, como a procrastinação, o medo de não corresponder às expectativas e a ansiedade de trabalhar em projetos longos?
Eu acredito que o melhor jeito de lidar com essas travas é escrevendo. Por experiência própria, percebi que, quanto mais você aceita essas travas, mais tangíveis elas ficam e mais vezes te impedem de trabalhar. As postagens quase diárias do meu blog me ajudam nisso, com a vantagem de não me esgotarem muito por serem textos mais curtos. Diversas vezes a mente dá um branco, então paro por alguns momentos e vou me forçando aos poucos para prosseguir. Em pouco tempo vão aparecendo algumas linhas, e quando percebo, tenho algum material. Algumas vezes, coisas de que gosto muito.
Para a procrastinação, estipulo alguma regularidade para escrever e conto com minha força de vontade, uma vez que escrever é uma atividade que decidi incluir em minha vida. Não penso muito nas expectativas dos outros, e sim na minha necessidade de estar escrevendo sempre. Pensar demais no que os outros querem acaba te desviando do que você quer enquanto escritor. Parto da lógica de que, se o autor não gosta do que escreve, não vale a pena continuar, mesmo que os outros estejam curtindo. Prefiro primeiro me agradar, e se acaso eu agradar o leitor, é uma consequência. Eu escrevo primeiramente para mim mesmo, e isso me permite acreditar profundamente em meu texto. A partir daí, acabo transmitindo essa crença aos outros, tendo sempre a consciência de que nem sempre vou agradar. Isso é especialmente útil para lidar com críticas leigas e especializadas, especialmente as deste último tipo.
Trabalhar em projetos longos é complicado. Muitas vezes quero acabar tudo num só dia, o que na maioria das vezes é impossível. O cansaço mental é grande, e o físico também, porque é necessário ficar sentado por muito tempo na frente do computador. Os altos e baixos da vida também podem atrapalhar muito, e nem sempre podemos fazer algo a respeito. Muitas vezes preciso parar de escrever e me distrair com outra coisa, mudar de cômodo ou até mesmo de ambiente. Já cheguei a escrever em mesas de livrarias e praças de alimentação, por exemplo. Conforme a necessidade, dou pausas, que podem ser maiores caso eu tenha outras obrigações no momento. É claro que esse meu “sistema” pessoal é lento e pode exigir anos para que um texto esteja pronto, mas é o meu jeito artesão de mim mesmo. Acredito que existem coisas que, se possível, não devem ser apressadas.
Quantas vezes você revisa seus textos antes de sentir que eles estão prontos? Você mostra seus trabalhos para outras pessoas antes de publicá-los?
Não tenho um número definido nem médio de revisões. Acho que cada texto pede uma atenção diferente. Pra mim é algo que varia muito, mas tenho uma espécie de intuição que me diz quando parar de revisar. Acredito que sempre é possível melhorar um texto, e as possibilidades de melhoria vão aparecendo quanto mais você ou outros releem o texto. Pessoalmente, gosto de deixar os meus textos o mais parecidos possível com a ideia original, de modo que não faço muitas alterações. Não costumo mostrar meus textos a ninguém antes da publicação, porque sou ciumento com o que escrevo e também por precaução contra plágio ou vazamento de informações. Sem dúvida meus textos seriam melhores se eu contasse com opiniões dos outros, mas gosto de manter minhas criações o máximo possível sob meus cuidados. Gosto de seguir minha intuição sempre que posso quanto a bater o martelo sobre algum texto, e até agora tem funcionado bem. Talvez eu tenha um revisor fiel no futuro, mas ainda não o conheci. Ou conheci e ainda não sei disso.
Como é sua relação com a tecnologia? Você escreve seus primeiros rascunhos à mão ou no computador?
Quando se pensa em escritores, o que vem à mente pode ser uma pessoa clássica, antiquada e avessa à tecnologia, mas definitivamente não é o meu caso. Me acostumei a usar computadores, celulares e aplicativos desde a adolescência, e jogo games até hoje. Existem, inclusive, referências a livros dentro de jogos eletrônicos, bem como livros adaptados para jogos. Acredito que essas influências só contribuem ao escritor de hoje, especialmente os que escrevem ficção científica.
Usar computador ou papel para os rascunhos, pra mim, depende mais do que está à mão no momento. Se estou no metrô, uso o celular ou um caderninho. Se estou em casa, o computador é mais prático, mas nada me impede de usar computador, caderno, celular e o que mais eu precisar, tudo ao mesmo tempo. Às vezes acontece das anotações estarem em lugares diferentes e eu precisar localizar tudo pra passar pro computador. Por mais que eu tente, meus rascunhos são bem caóticos até eu ter a oportunidade de centralizar tudo nas pastas do meu notebook. Acho que computadores são mais práticos por permitirem escrever mais rápido do que no papel, aproximando a velocidade de escrita da velocidade do pensamento. Já perdi ideias por causa do tempo que eu demorava pra escrever com caneta, o que acontece menos digitando em um teclado. Acredito que tecnologias digitais estão aí pra facilitar a vida do escritor, e podem acabar sendo um tema em si para bons livros.
De onde vêm suas ideias? Há um conjunto de hábitos que você cultiva para se manter criativo?
Experiências pessoais e dos outros me trazem muitas ideias. Fora isso, livros, filmes, séries, programas de TV, textos na internet e praticamente qualquer outro material costumam me ajudar. Respondendo de outro modo, a vida, com todas as suas particularidades, fornece muito material interessante para todos aqueles que sabem enxergar. Essa fonte nunca se esgota e é filtrada pela subjetividade de cada um. Então, o que eu vejo na vida nunca vai ser o mesmo que você vê. Existe uma infinidade de pontos de vista sobre infinitos temas e assuntos, e isso é ao mesmo tempo problema e solução. Existe muito a se pescar nesse mar, mas são tantos peixes, de tantos tipos, cores e tamanhos diferentes, que você precisa de algum critério do que pescar. Nesse sentido, recentemente descobri que ensaios de teoria literária me ajudam. Apesar disso eu não gosto de depender de teoria, porque a teoria só vai até a soleira da porta. O resto você precisa descobrir sozinho.
O que você acha que mudou no seu processo de escrita ao longo dos anos? O que você diria a si mesmo se pudesse voltar à escrita de seus primeiros textos?
De início, meu texto era quase um confessionário direto de situações pelas quais eu passava. Me apaixonei por várias mulheres durante a vida, e essas “musas”, como eu as chamava, me ajudavam a criar personagens bastante realistas. Também lembro que meu estado emocional definia o tom de meus textos. O que eu escrevia girava quase sempre em torno de temáticas amorosas tendo alguma musa como centro, e eu não conseguia sair desse circuito. Anos depois, comecei a me voltar pra fora de mim, escrevendo sobre elementos cotidianos e problemas sociais. Me senti mais crítico, ácido e atento ao redor. Não que eu tenha parado de fazer coisas mais sentimentais ou falar de amor, mas acredito que amadureci ao ponto de poder escolher entre o mundo aqui de dentro e o mundo lá fora, ou até mesmo mesclar os dois. Hoje em dia consigo impedir que meu estado emocional defina o tom do meu texto, de modo que posso escrever coisas felizes mesmo estando triste, ou vice-versa.
Se eu pudesse voltar à escrita de meus primeiros textos, diria a mim mesmo um clichê, mas que por isso mesmo abriga muita verdade: não conte tanto os passos dados e aproveite mais o caminho.
Que projeto você gostaria de fazer, mas ainda não começou? Que livro você gostaria de ler e ele ainda não existe?
Tenho muitos projetos engavetados, tantos que nem sei se apenas uma encarnação é suficiente. Entre eles, destaco um em especial, um romance que se passa em um futuro pós-apocalíptico e tem vários elementos de ficção científica. Imagino que deva ser bem divertido fazer algo do tipo, e é com dor no coração que coloquei um outro romance na frente dele, o primeiro da minha vida. Ele tem uma temática mais juvenil e amorosa, e está sendo um laboratório muito desafiador. Apesar disso, acho que terminar esse romance amoroso vai me ajudar no de ficção científica, e nos próximos.
O livro que eu gostaria de ler e não existe eu tenho certeza de que nunca vai ser escrito: ao terminar de ler Dom Casmurro, quis muito ler a mesma história contada do ponto de vista da Capitu, só que escrita pelo próprio Machado. Ainda que alguém faça algo do tipo, é quase impossível manter o nível machadiano, e mesmo que alguém consiga, ainda assim não vai ser a mesma coisa que o Machado escrevendo. Se essa ideia fosse bem executada atualmente, poderia causar discussões interessantes na literatura. Por outro lado, se o próprio Machado tivesse feito um “Dom Casmurro segundo Capitu”, o Dom Casmurro não teria tido o mesmo impacto que teve. Talvez seja melhor tudo como está.