Rafael Reginato é poeta, doutorando em literatura.

Como você começa o seu dia? Você tem uma rotina matinal?
Começo o dia preparando o café e a vitamina de banana e mel de meu filho. Todos os dias, faça chuva ou sol, final de semana ou não, enquanto ainda der para comprar o leite. Gosto de sentir o aroma do café em lufadas de fumaça exalando da cafeteira italiana ganha numa rifa de escola e invadindo toda a casa, decerto algum rito espiritual herbáceo de ascendência xamã que purifica minha mente antes de iniciar a rotina do dia. Quando sento para tomar o café, já sublevadas as ideias, penso na lista de afazeres do dia. Sou como Clarice: uma pessoa muito ocupada, tomo conta do desmundo. A lista de tarefas existe logicamente para cumprir os compromissos formais (prazos do doutorado, pagamento de contas…) e para procrastinar os informais. Como escrever faz parte de minhas desobrigações, não escrevo literatura todos os dias. Leio muito mais do que escrevo, obviamente. Há dias em que organizo alguns textos para participarem de concursos literários, editais ou chamadas para publicação, reviso originais, reescrevo algo, mas não necessariamente crio. Perco tempo dessa maneira porque minha melhor hora para criar é pela manhã, mas durante a pandemia me acostumei a escrever em qualquer hora vaga. Cada vez mais tenho experimentado o que Moacyr Scliar falou um dia sobre acostumar-se a escrever em qualquer hora e em qualquer lugar (o que se tornou absolutamente necessário com tantas obras de construção, reformas, latidos de cachorro, funk do vizinho ou sofrência gritada que a pandemia nos presenteou). Foi assim que, apesar da pandemia, consegui publicar dois livros (um romance chamado Desterrilha que havia iniciado há muitos anos e que pude reescrevê-lo até ficar do jeito que queria) e minha dissertação de mestrado em literatura. Ah, também publiquei um livro infantil por uma editora artesanal aqui de Santa Catarina, a Butecanis Editora Cabocla, ilustrado por minha esposa. Mas nos últimos tempos de pandemia tenho me dedicado mais à poesia, talvez por acreditar na palavra poética como forma de ainda abrir alguma janela de respiro no meio do caos rarefeito que vivemos, mesmo que uma frincha. Acho que a poesia me ajudou a expressar e dar vazão subjetiva às minhas dúvidas e angústias pandêmicas. De uma forma ou de outra, prefiro trabalhar nas manhãs; sou um ser diurno e muito pouco notívago, concentro minhas energias, inspiração e transpiração sob a luz do sol. Gosto de sentir a cabeça esvaziada ao fim do dia (como se dizia Hemingway ao acabar um conto), beber um cálice de vinho com minha esposa, ler para meu filho antes de fazê-lo dormir. Minhas noites existem para amar, relaxar os membros e sonhar o dia seguinte.
Em que hora do dia você sente que trabalha melhor? Você tem algum ritual de preparação para a escrita?
Antes pensava que trabalhava melhor pela manhã, mas, como disse, com a pandemia já nem sei mais. O fato é que, perdendo algumas manhãs em compromissos familiares ou formais, substituí a possibilidade da “sesta da tarde” pela leitura e pela escrita. Comecei a anotar em retalhos de papel, folhas soltas, novas abas do computador (o meu é um labirinto de abas abertas) ideias para poemas, contos, ensaios. Aprendi a apreciar uma suposta fixação na transitoriedade dos esboços. Ou seja, apostar na permanência da ideia forte. Assim, deixo passar algum tempo, alguns dias, até constatar o retorno ou novos contornos do que era potencialmente apenas ideia. É nesse jogo de encaixes e aproveitamentos, nessa permissão à perda de algo, que acabo ganhando um texto. Às vezes, embora raramente, eles surgem por completo. Na maioria, refulgem aos pedaços, vão sendo montados, num trabalho entre memorização e esquecimento, numa espécie de coleção de ideias, imagens poéticas, inícios, continuações, às vezes finais antecipados, que nem sempre se realizam no texto final. É claro que esse processo, ou antiprocesso, granjeia algum êxito no caso desses textos ou gêneros de menor fôlego que citei. Quando trabalho num romance, além de precisar de minhas manhãs de volta, necessito de maior tempo de maturação, alguma organização e preparo. Nesse caso, costumo anotar em folhas de caderno ou mesmo num arquivo de computador traços fundamentais que me guiarão ao longo da narrativa: por vezes são a escrita-base de algum trecho que me dê o tom sintático da linguagem que pretendo empregar, por vezes é alguma alusão metafórica ou alguma imagem-gatilho que deverá constar na história e se apresentar como chave de leitura, por vezes são nomes de personagens e uma ou outra característica (na verdade, psicologicamente falando, meus personagens constituem-se ao longo do romance, nunca a priori, como penso ser qualquer trajetória de vida). Quando enfrento algum bloqueio inicial, costumo tomar banho, uma ducha que seja. Já me convenci de que o vapor do banho quente (como aquele ebulindo da cafeteira italiana) facilita o diálogo com meus fantasmas e o encontro de soluções muitas vezes impensáveis no clima seco do quarto.
Você escreve um pouco todos os dias ou em períodos concentrados? Você tem uma meta de escrita diária?
Se eu dissesse que não esboço ou rascunho algo todo dia estaria mentindo. Verdadeiramente não escrevo um texto completo todos os dias, embora haja dias que sim. Nos últimos tempos, que coincidem com a pandemia, escrevi bastante, mas não medindo os dias ou qualquer assiduidade diante do computador. De qualquer forma, no último ano publiquei um número bastante razoável de textos, entre contos, romance, literatura infantil e, é claro – já que não posso esquecer-me do doutorado -, artigos acadêmicos. Costumo ter uma lista diária de prioridades que, volta e meia, são substituídas por novas ou procrastinadas (foi o caso desta entrevista), uma vez que acabo me dividindo entre a vida de pai, de marido, de pesquisador, de escritor (a ordem pode ser invertida, dependendo da situação). Seja como for, levo a escrita muito a sério e necessito sempre, para que ela flua ou se realize, que essa divisão de mim mesmo esteja bem delimitada, cada papel no seu lugar, cada hora a seu tempo, porque necessito mergulhar com profundidade num texto quando me proponho a isso, porque preciso colocar minha mente e poros à disposição das palavras.
Como é o seu processo de escrita? Uma vez que você compilou notas suficientes, é difícil começar? Como você se move da pesquisa para a escrita?
Acho que estou adiantando cada resposta na pergunta anterior, mas como romancista devo saber prolongar a atenção, angústia – ou mesmo o desagrado – de quem lê. Há algo que eu não disse. Sempre após escrever satisfatoriamente um longo trecho de algum texto, naquele justo instante de retomada de fôlego em que alguma fluidez foge ou se dispersa, costumo caminhar um pouco (ou pelo quarto, ou pela casa se estiver silenciosa, ou no pátio de casa) falando sozinho na maioria das vezes, tecendo diálogos, inventando conversas, desobstruindo a mente. Esse artifício costuma dar certo e logo retorno correndo ao quarto evitando falar com alguém no caminho para não perder o fio redivivo do pensamento. Às vezes esses solilóquios podem acontecer enquanto levo meu filho na escola (ele já me flagrou desconfiado falando sozinho enquanto dirijo). Também mantenho um caderninho de anotações e uma caneta numa gaveta do banheiro para os casos de insônia criativa e, não raras vezes, minha esposa ao amanhecer deparou-se comigo sentado no vaso sanitário do banheiro com o computador aberto sobre as pernas do pijama. Como disse, tenho me habituado a escrever em qualquer ocasião, e mesmo com o pouco silêncio da pandemia. O que ainda não me acostumei é a pensar fora de algum silêncio necessário. Minhas preliminares à escrita necessitam sempre do silêncio, no máximo de um sussurro. A escrita, no entanto, é ruidosa, bravia, caudalosa, rompedora de todo dique ordenado, de todo compromisso pré-agendado, de todo estado físico. A escrita, para mim, é basicamente uma libertação mental e espiritual, um encontro com a abstração prazerosa, orgástica, transgressora, alívio vital, ainda que, no meu caso, uma vitalidade que, dependendo do dia, pode ser a conta-gotas (sem esquecer, embora lamentando o lugar-comum e aqui necessário, dos pequenos frascos e das grandes essências). Eu creio que a pesquisa que realizo antes de escrever, além da leitura inesgotável de outros romances ou outras obras literárias, recai mais sobre minha própria memória. Mesmo nos romances que escrevi até hoje – e aqui considero engraçada a generalização popular de uma necessária e prévia pesquisa de campo ou etnográfica ou antropológica ou sociológica ou psicológica ou museológica ou bibliográfica qualquer, o que, em minha opinião, fundamenta tão somente a escrita do gênero “romance histórico” – necessitei sempre e absolutamente de minha própria memória. Talvez porque muito do que escrevi partiu de fulgurações da experiência, ainda que da experiência de outros, observada, escutada, compreendida como uma possibilidade de material literário. Uma única exceção foi a encomenda de um conto que tivesse como pano de fundo a guerra do Contestado ocorrida aqui em Santa Catarina, publicado num suplemento literário do estado. Foi a única vez em que procurei encarnar um pouco do que havia aprendido com a leitura de Érico Veríssimo. Do contrário, parti sempre da observação do cotidiano, da realidade próxima, embora possa já ter lançado mão de minha própria rememoração de acontecimentos históricos em um romance ou outro, como forma de situar o tempo em que a narrativa acontece.
Como você lida com as travas da escrita, como a procrastinação, o medo de não corresponder às expectativas e a ansiedade de trabalhar em projetos longos?
Devo estar mesmo adiantando algumas respostas. Além do banho quente e dos passeios conversando comigo mesmo para retomar o fôlego nesses momentos em que a escrita emperra, também guardo um cachimbo na gaveta. A fumaça evolando do cachimbo tem o mesmo efeito do vapor do chuveiro ou da que exala da cafeteira italiana pela manhã, minha eterna procura pelo gênio da lâmpada, porém à do cachimbo acrescento a chance de ganhar alguma tontura, desprender-me da obrigação de continuar, abandonar-me a uma pausa maior e me entregar apenas à contemplação das argolas de fumaça ganhando o espaço. É também um momento libertador e de relaxamento cerebral. Vale a pena tentar. Para dizer a verdade, meu medo maior agora passa por escrever minha tese de doutorado, que é um terreno ainda inóspito para mim. Escrever literatura já é um hábito que me acompanha desde pequeno, para o qual desenvolvi meus segredos, meus macetes, minhas táticas de como lidar. A literatura permite a liberdade de brincar, de jogar, de esconder-me e ressurgir num susto, de montar e desmontar, efeitos da surpresa escrita. Gosto de uma certa tradição da brincadeira que se encontra na literatura latino-americana (mas não só), essa espécie de juguete narrativo, essa montagem lúdica e desafiadora, quando não enganadora e impostora, que está em Cortázar, Borges, Bolaño, porém de alguma maneira também em Ricardo Piglia, Kafka, Henry Miller, Saramago, Luiz Ruffato, Ítalo Calvino, Veronica Stigger, etc. Não me refiro ao realismo mágico, ao gênero fantástico ou ao maravilhoso, mas ao brinquedo que também carrega memória de que fala Walter Benjamin e à capacidade do escritor ou escritora de desnortear a narrativa ao seu bel prazer como quem brinca, joga com o leitor, à medida que o jogo infantil da literatura é já literatura séria, madura, arejada, leve e complexa ao mesmo tempo. É vendo a literatura como essa arte do brincar, com tudo o que isso possa representar, que lido melhor com essas supostas travas da escrita e procrastinação. Quando algo parece não funcionar no texto, mudo as palavras de lugar, embaralho-as como os dadaístas nos ensinaram para relaxar a tensão de criar. Às vezes é apenas mero exercício criativo, mas às vezes dá certo. Quanto ao medo de não corresponder às expectativas, penso que ele costuma durar mais tempo, mesmo depois da obra já terminada. Meus livros foram publicados em intervalos longos, separados por uma década. Meu último romance Desterrilha foi revisitado, modificado, reescrito, reduzido, acrescido, quase deletado, inúmeras vezes ao longo de anos e, ainda assim, não tenho garantia nenhuma de que seja um bom livro. Ou melhor, autogarantia. Sou o meu maior crítico (essa parte do crítico em mim que, ao contrário do escritor, não consigo transformar em brincadeira). É claro que, em paralelo a todo projeto grande como um romance, trabalho em vários projetos literários menores de contos e poemas que, de alguma forma, ajudam a delinear meu pensamento para a continuação da narrativa maior. Procuro não ser ansioso, apesar de ser brasileiro. Tenho como filosofia interna aquilo que diz o personagem de Saramago em Ensaio sobre a cegueira: “um escritor acaba por ter na vida a paciência de que precisou para escrever”. Acho que o exercício é esse, confucionista, o da paciência. Paciência para lidar com a ansiedade, paciência para lidar com a frustração, paciência para lidar com o trabalho literário, paciência para lidar com a realidade brasileira (essa precisa de uma dose extra), a paciência do pássaro que observa tudo do alto, a distância, tentando encontrar na floresta densa e escura, uma greta confiável.
Quantas vezes você revisa seus textos antes de sentir que eles estão prontos? Você mostra seus trabalhos para outras pessoas antes de publicá-los?
Reviso incontáveis vezes, como de novo antecipei na resposta anterior. Nesse processo de revisão, lapidação, burilamento, costumo deixar o texto em suspenso. Esse tempo de dormência do texto é necessário para mim, já que raramente meus textos se materializam num jorro. Considero o acabamento do texto, após seu repouso, uma etapa bastante importante. Tenho tentado, com alguma dificuldade, alcançar a economia sintética na literatura a que se referiu Hemingway, e mais recentemente Mia Couto em seus últimos livros, como segredou numa live a que assisti. Penso que o avançar da idade (a experiência, para atenuar o termo) nos leva a intuir alguns atalhos, aos quais apenas a memória falhando e os olhos cansados admitiriam acessar. É assim que escrevendo tenho me permitido os buracos, os vãos, as fendas, os esquecimentos, as idas e retornos próprios da memória, esse sexto sentido apontado por Borges. E por falar no escritor argentino, que já cego ditava seus textos e pensamentos à sua secretária (o que já rendeu um conto que dá título ao livro de Lúcia Bettencourt), também tenho minha secretária, ou melhor, leitora crítica doméstica. Costumo passar alguns dos textos que escrevo à minha esposa, às vezes inteiro, às vezes leio apenas um trecho para ela tentando sentir sua reação. Na pandemia pratiquei mais vezes isso. A versão final de meu último romance passou apenas pela leitura dela, além da editora que o publicou, é claro. Sou um pouco misantropo literário, poderia ter mais pares, mas temo pelas veleidades literárias. É verdade que há comunidades literárias sempre se formando, o que é necessário, mas procuro apenas flanar por elas e confesso que muitas vezes esses encontros me servem muito mais para dividir as angústias ou bebê-las todas na espuma do copo do que propriamente garantir uma “crítica literária”. Se vier, melhor. Se não vier, ainda tenho o conteúdo do copo aonde me agarrar. Não quero dizer com isso que desconsidere a opinião dos demais. Muitas vezes são cintilações absolutamente luminosas e certeiras que escuto deles. Mas a verdade é que procuro contaminar minha escrita o menos possível, preferindo a influência de outros livros mesmo, da palavra impressa. Sou pouco oral, um ser da palavra escrita, que cultua a página impressa (agora também cada vez mais e infelizmente a digital). Entendo os encontros com amigos escritores como frutíferos passatempos, hoje em dia necessariamente políticos (não esqueçamos o que as índoles antidemocráticas pensam da cultura enquanto habitual alvo). Prefiro conhecer suas vidas, embora eu também os leia. Mas não converso tanto sobre escrita porque já basta ter de conviver com a minha e com meus fantasmas onipresentes. Melhor é me perder nesses encontros do que me achar.
Como é sua relação com a tecnologia? Você escreve seus primeiros rascunhos à mão ou no computador?
Conheci numa pequena e escura peça no fundo das casas de meu avô na Vila dos Comerciários, em Porto Alegre, minha primeira Olivetti. Minha apenas por empréstimo, já que eu chegava lá passando pelos degraus do pátio ladeados por dois retângulos de grama sempre escondido, ou pensava que ninguém me via. A peça servia de escritório para meu avô e eu levava para lá os rascunhos de supostas letras de música, histórias ou poemas escritos à mão em retalhos de papel também furtados dele. Passava bastante tempo (o suficiente para não ser descoberto) ensaiando o escritor diante da máquina de datilografar, sincopando minha batida cardíaca com o tec-tec mágico da máquina. Meus olhos luziam sobre o papel se recheando de letrinhas negras. Creio que até hoje é assim, embora com menos magia e com mais compromisso crítico. Mas a maneira de brincar com as palavras e de se encantar com o resultado permanece. A diferença é que agora tenho o meu notebook e normalmente já não escrevo manuscritos em papel, como fiz durante muito tempo, embora o início de muitos poemas (ou até mesmo a sua totalidade) nasça escrito à mão no papel. Mas isso não é regra para contos, romances ou textos narrativos. Esses eu já me habituei a iniciá-los e desenvolvê-los diretamente no computador, sem qualquer perda.
De onde vêm suas ideias? Há um conjunto de hábitos que você cultiva para se manter criativo?
Acho que me nutro de imagens, daquilo que vejo mais do que ouço. No caso de meu primeiro romance Entreilha, escrevi ouvindo sempre Vivaldi e Bach. Acho que determinados floreios estilísticos que observo hoje nesse livro, um tanto barrocos, se devem à música que escutava. Mas, no geral, escrevo sem música nem nada. As imagens inspiratórias de que falo são em verdade cintilâncias, átimos, átomos, abstrações que aos poucos, e se durarem alguns dias, podem se tornar ideia escrita. Essas imagens partem de situações observadas, sentidas ou experienciadas diante de duas naturezas: a natureza homônima batizada com esse nome por natureza (animais, vegetais, terra, organismos invisíveis, rios, mar…) e a natureza humana. Gosto de pensar num devir entre a paisagem externa e a paisagem interna. Creio que é dessa síntese, ou simbiose, com todos os conflitos inimagináveis que daí possam decorrer, que minha escrita costuma aflorar. Às vezes posso receber a alcunha de romântico ou idealista, mas os românticos também matam e enlouquecem, não apenas sonham. Em suma, minhas ideias vêm da observação do que me cerca cotidianamente e que tento transformar, em contato com minhas referências mnemônicas, numa suposta verdade, já que toda realidade é falsa e enganosa. Gosto nessa brincadeira, portanto, de lidar com a trapaça, de ser um vigarista da língua. Essa ideia não é nem original, tampouco inédita, mas é essencial em meu percurso de escrita, e dela não consigo me livrar. É o germe da minha falta de caráter literário. Não tenho problema também em assistir a filmes, ler livros, ir ao teatro ou ouvir música nos intervalos de um texto ainda não acabado. Penso que se houver alguma influência ou interferência no meu processo de escrita é porque ela foi suficientemente forte a ponto de desnortear o destino. Escrevo a barlavento e sotavento, sem distinção ou preconceito.
O que você acha que mudou no seu processo de escrita ao longo dos anos? O que você diria a si mesmo se pudesse voltar à escrita de seus primeiros textos?
Acho que minha escrita se tornou um pouco mais inadvertidamente política à medida que a ironia deixou de ser compreendida e passou à invisibilidade da sutileza. Penso que o invisível irônico é um bisturi tão fino que corta sem vermos, produz operações, tenta modificar com alguma precisão cirúrgica a estética e o gosto dos tempos. É do que agora mais precisamos, já que o pícaro assumiu de vez o picadeiro. Ainda assim, percebo que minha escrita adquiriu um tom menos humorístico desde meu primeiro livro (aquela obra que costumamos relegar e onde eu ainda tinha como guru Luis Fernando Verissimo) e, trabalhando novas formas de ironia, de inteligência, de astúcia, foi ganhando um semblante ou máscara que já não permite cair sob os olhos de qualquer leitor. E a graça que antes podia aparecer sob a máscara caída situa-se agora justamente na própria máscara. Sou um escritor mascarado, muito mais do que nos meus primeiros textos. Ganhei experiência, novas possibilidades de linguagem, carga de leitura, e isso, por si só, já é sempre modificador. Se eu pudesse voltar no tempo e dar um conselho àquele jovem escritor, diria olhando em meus próprios olhos: – Desfaça essa cara de guri assustado metido a engraçado… e vista logo uma máscara! É sempre carnaval no Brasil! (parafraseando Titãs).
Que projeto você gostaria de fazer, mas ainda não começou? Que livro você gostaria de ler e ele ainda não existe?
Eu gostaria de escrever mais livros híbridos, que não se enquadrassem em gêneros, que mal se soubesse se tratarem de ficção ou não ficção. Acho que esse sentimento de criação está em alta, mas preferia que ele se restringisse à literatura. É a literatura (e a arte, em geral) que podem ser fake e, ao mesmo tempo, produtoras de ricos sentidos, sem prejudicar a sanidade coletiva. Nessa guerra de imaginação, insisto em acreditar que a literatura e a arte podem nos devolver algumas verdades, mesmo que provisórias. Eu tenho uma ideia, ainda vaga, de escrever um livro para contar uma saga familiar de italianos imigrantes (sou de descendência italiana), já tenho algum material pesquisado, mas não quero contar uma epopeia, quero fracionar em pequenos dramas e comédias, contar partindo do agora e estilhaçando para trás, para o passado, unindo os pedaços, recobrar uma genealogia da qual também sou feito. Houve muita estupidez, muito drama humano, no assentamento desses imigrantes em nosso país, e mesmo antes de suas vindas. Há uma brutalidade que se esconde por trás da romantização que fazemos com o estereótipo do descendente italiano engraçado, trabalhador e patriarca. Há, portanto, camadas a dissecar, segredos a contar. Quanto ao livro que eu gostaria de ler e que ainda não foi escrito, penso que ele se intitularia “Não acredite em cebolas”. Seria a história de uma seita de zumbis motoqueiros que cometeriam religiosamente à meia-noite toda sorte de maldades contra a população e mesmo contra outros pobres motoqueiros. Uma das atrocidades seria acelerar suas motos de encanamento furado em frente a hospitais, maternidades e asilos. Os zumbis trariam na carenagem da moto e nas costas de suas jaquetas a imagem de uma grande cabeça de cebola. Reunidos aos domingos na avenida principal da cidade, bebendo cerveja e ouvindo música sertaneja, eles idolatrariam no alto de um carro alegórico a grande cabeça de cebola que atravessaria entre a multidão zumbi de mãos alçadas aos céus tentando arrancar da superfície da cabeça um pedaço da casca. Aqueles que conseguissem o feito, seriam recompensados com um jato invisível de ácido contra os olhos que logo faria com que chorassem até a morte de arrependimento por terem confiado numa cabeça de cebola crua.