Rafael Mendes é escritor e tradutor, autor de Ensaio sobre o belo e o caos (Urutau, 2018).

Como você começa o seu dia? Você tem uma rotina matinal?
Acordo todos os dias às sete da manhã, preparo o primeiro café, leio alguns poemas ou abro um texto escrito no dia anterior para ler com a cabeça ainda limpa da poluição diária.
No trabalho, numa aba oculta do computador, vou tentando escrever, reescrever, fazer apontamentos no poema/conto para serem trabalhados posteriormente. Também gosto de ouvir entrevistas de outros escritores, creio que há muito aprendizado nesses relatos — por isso a importância desse projeto. Após o trabalho, tento separar algum tempo para me concentrar totalmente na escrita, seja por uma hora ou dez minutos. Stephen King, Ray Bradbury e tantos outros escritores já disseram e eu repito como mantra: o escritor se faz no trabalho diário.
A vantagem dessa realidade em que a escrita ocorre quando possível é que eu fico mais focado. Penso no Bolaño escrevendo feito um maluco para finalizar seus últimos livros e deixar sua família numa situação confortável. Como disse alguém “Escreva como quem vai morrer”.
Em que hora do dia você sente que trabalha melhor? Você tem algum ritual de preparação para a escrita?
Depende. Venho trabalhando na minha primeira coletânea de contos, enquanto ajusto os últimos versos do novo livro de poemas. Acho que o poeta é um imã, uma antena, pronto para captar frequências que o rodeiam e transformá-las em versos. Assim, o horário não influencia tanto.
Na prosa creio que revisões são mais produtivas pela manhã, (re)escrita à noite. Pela manhã tenho o silêncio na casa, nenhum pensamento circulando na cabeça, e isso me ajuda encontrar erros, inconsistências, frases que soam mal, imagens ruins, estórias ruins. Faço anotações no texto, no caderno, passo o dia trabalhando com essas discussões em segundo plano.
À noite, tento ler antes de escrever. Um conto curto, poesia. Algo que me coloque num certo estado de espírito onde sou capaz de escrever ficção. Então escrevo.
Você escreve um pouco todos os dias ou em períodos concentrados? Você tem uma meta de escrita diária?
Tento escrever todos os dias, apesar de não ter nenhuma meta definida. Muitas vezes o que define o “deu por hoje” são tarefas e coisas outras da vida.
No momento venho trabalhando na reescrita do livro de contos. Tenho tentado reescrever um conto por semana. Então, há dias que em que abro o documento e fico apenas ajustando vírgulas, ordem das frases, buscando palavras mais precisas e sonoras, frases mal construídas, cenas que precisam melhorar. A edição, talvez, seja a parte mais difícil de ser escritor. Muitos detestam, eu gosto — apesar de ser tarefa amarga. Existem textos que nascem inteiriços, quase prontos. Contudo, uma boa reedição, no mais das vezes, melhora o texto substancialmente. É ali que separamos o joio do trigo. Deixa de ser fluxo criativo violento para tornar-se uma orquestra, onde cada parte deve contribuir para o todo, onde arestas são removidas, e o texto chega ao seu limite.
Quando não estou trabalhando num livro, permaneço com o objetivo de escrever diariamente. E aqui, que fique claro, não falo de qualidade nem de quantidade. Falo de treinar a percepção, aguçar os sentidos. É o tomar notas, esboçar ideias, argumentos.
Como é o seu processo de escrita? Uma vez que você compilou notas suficientes, é difícil começar? Como você se move da pesquisa para a escrita?
Não sou muito organizado. Digo, quando começo a escrever uma estória não sei para onde ela irá me levar. No mais das vezes, a fagulha é uma situação, uma personagem — olhar o que se passa ao meu redor, anotar coisas que as pessoas me contam, isso sempre dá frutos. E dali vou escrevendo, deixando que a estória me leve.
Chega um momento que a estória está formada, você sabe pra onde está indo, o que está fazendo. E aqui começa o trabalho mais planejado. Saber quem são essas personagens, qual é sua estória, o que querem, o que amam, o que odeiam. Em resumo, torná-los humanos.
Quando a coisa não anda, tento um exercício que aprendi numa oficia de escrita. “E se”. E se meu personagem ganhasse um fusca no bingo. E se o gato do personagem tivesse câncer e ele precisasse de dinheiro para a cirurgia. Explorar o limite, o irreal, o macabro. Quando penso em Cortázar, Mariana Enríquez e Samantha Schweblin, tenho certeza de que usaram esse método em alguma medida — intencional ou não.
Como você lida com as travas da escrita, como a procrastinação, o medo de não corresponder às expectativas e a ansiedade de trabalhar em projetos longos?
Nos momentos de bloqueio tento traduzir. Acho que a tradução — e o bilinguismo de modo geral — me dão inúmeras oportunidades de escrita. Então, quando não estou escrevendo nada em português, saio escrevendo em inglês. Costuma funcionar. Às vezes, o texto começa na língua A, trava, é traduzido para a língua B e funciona — curioso notar que o resultado final nas línguas A e B costumam ser distintos, as estórias vão para lugares distintos.
Acho que a procrastinação faz bem. Nos levar menos a sério. Assisto vídeos de receitas, jogo videogame, compartilho memes de engraçados com os amigos. É entender que mesmo quando não estamos escrevendo, nosso cérebro está capturando situações, ideias, imagens, trejeitos. Em casos urgentes, contudo, sento-me à mesa e faço um exercício que a Angélica Freitas sugeriu certa vez: pegue papel e caneta, escreva sem parar — literalmente sem parar — por quantos minutos conseguir, o braço vai doer, a mão vai arder, mas não pare, continue, dez, quinze minutos. Depois, releia esse bloco de massa cinzenta. É bem provável que haja algo que possa ser aproveitado.
Quantas vezes você revisa seus textos antes de sentir que eles estão prontos? Você mostra seus trabalhos para outras pessoas antes de publicá-los?
Aprendi o valor da revisão, da reescrita, e dela não largo mais. Tento reescrever um texto várias vezes, até que esteja satisfeito com ele. Coloco na gaveta, deixo ali por semanas — meses até. Para me distanciar, esquecer da personagem, do enredo, de que eu escrevi. Então, releio e tento buscar por sons, imagens, frases que ainda não funcionam.
Até recentemente não costumava mostrar meus textos para ninguém. Agora, tento mostrar para amigos escritores. Gosto das suas opiniões e comentários, sobretudo quando dizem está ruim, está preguiçoso, isso não funciona, isso não me convence. Pedro Moreira tem sido meu principal interlocutor, temos trocados nossos textos e comentários. Acho isso enriquecedor.
Também mostro algumas coisas pra minha companheira. Ela não é escritora, e isso é uma vantagem. Escritores tem um olhar apurado para certos aspectos do texto, enquanto os leitores que não escrevem fazem apontamentos que possivelmente passariam desapercebidos.
Como é sua relação com a tecnologia? Você escreve seus primeiros rascunhos à mão ou no computador?
Eu raramente escrevo à mão. Não tenho costume. Minha caligrafia é ruim, meus braços doem. Porém, gosto de reescrever poemas no papel para entender melhor a cadência dos versos, das quebras, depois transportá-los novamente para o computador.
A tecnologia me auxilia muito. Por algum motivo, tenho muitas ideias naquele período ébrio que antecede o sono. O bloco de notas do celular já foi usado para escrever esboços inteiros de contos e pomas. Além disso, na reescrita utilizo muitos dicionários. Tenho uma preocupação em encontrar o melhor substantivo, verbo e adjetivo para cada frase.
De onde vêm suas ideias? Há um conjunto de hábitos que você cultiva para se manter criativo?
Ler. Ler muito. Ler sempre. Não acredito em escritor que não lê. Parece contrassenso, mas eles caminham entre nós. Já encontrei ideias muito boas em textos de outros autores. Por vezes, citam uma personagem lateral no enredo, uma situação, uma frase, uma imagem. Dali início meu próprio texto.
Outra fonte de ideias são os jornais. Principalmente seções com notícias, digamos, absurdas e inusitadas. No site do Uol fica entre a seção de esportes e fofocas. O bizarro me encanta.
Por fim, a observação. Deixar a tela do celular quando estou no transporte público e observar os demais passageiros. Como se vestem, coçam o rosto, falam, olham, enfim, catalogar especificidades.
O que você acha que mudou no seu processo de escrita ao longo dos anos? O que você diria a si mesmo se pudesse voltar à escrita de seus primeiros textos?
O gênio não existe. A musa não existe. O que existe é o suor, a edição, o esforço, o cansaço, a raiva, a reescrita, a frustração, o prazer de ver um texto finalizado. Escrever, criar, é maravilhoso. Diria ao jovem Rafael: Escreva como quem vai morrer. Também diria: valorize a edição, a reescrita, o tempo de maturação de cada frase. Ouça mais, observa mais. Não tenha medo de experimentar.
Que projeto você gostaria de fazer, mas ainda não começou? Que livro você gostaria de ler e ele ainda não existe?
Tenho publicações em antologias em inglês publicadas aqui na Irlanda e no Reino Unido. Porém, ainda quero publicar um livro de minha autoria nessa segunda língua. Também quero escrever um romance — uma estória incipiente circula entre minhas anotações.
Tenho escritores favoritos ainda vivos. Aguardo lançamentos futuros. No mais, existe uma pilha de livros que de gente morta que ainda não li.