Rafa Carvalho é poeta, neoqualquercoisista, finalista do Prêmio Sesc de Literatura 2018.
Como você começa o seu dia? Você tem uma rotina matinal?
Tenho hoje uma rotina ideal. O que nem de perto quer dizer que eu a cumpra sempre, ou ao menos a ponto de se tornar, de fato, uma rotina. Minhas manhãs são oceanos. Acordo e tem um mar de variáveis ali, pra lidar. Essas correntes já logo me puxam prum lado ou pro outro. Deve ser meu ascendente em Peixes. Hoje me lembro e, na infância, eu tinha tanto uma tristeza melancólica, quanto uma alegria serelepe, que eram por demais intensas, mas alheias. Elas me tiravam da Terra. A primeira coisa terrena e prática externa que tive, assim profundamente, foi mesmo o caos. Não gosto de expectativas e tento não tê-las. Mas há uma esperança minha, uma estratégia, uma utopia provisória, dessa rotina ideal. Enquanto isso, a realidade dos amanheceres segue sendo caótica. Aos poucos, vou tentando organizar.
Em que hora do dia você sente que trabalha melhor? Você tem algum ritual de preparação para a escrita?
Depende do trabalho. Falando de escrita especialmente, a manhã é onde mais produzo. Trabalhos mais técnicos como revisões, transcrições e essas coisas, precisam ser de manhã. Agora, há o teor de cada tempo. Algumas inspirações precisam da madrugada, da tarde, dos ocasos. São portais diferentes. Gosto dessa possibilidade. Dessa vagabundagem no tempo. Mas meu período mais produtivo, nos sentidos assumidos da produção aos nossos paradigmas, é sem dúvida a manhã. Sempre fui à escola de manhã, por exemplo.
Eu tenho um tempo de trânsito entre o sono e a vigília. Uma alfândega de consciência em que é preciso permanecer um pouco. Ajuda quando alongo o corpo. Correr no verde por uns quarenta minutos, como uma reza dos músculos e pulmões. Ativar as mitocôndrias, contar com essa cumplicidade, do oxigênio. Gosto de fazer outras rezas também, conforme as marés. De tempo em tempo bebo coisas específicas pro desjejum. Confiando melhorar a vida com isso.
Há sempre algo mágico no passar da água quase fervendo, pelo café. Esse cheiro tem sido imprescindível. Se corro tomo um banho. Se não, não garanto. E aí começo à escrita. Se é poesia às vezes gosto de haver música tocando. Nas prosas, prefiro sempre o mais quieto possível. E precisa haver líquidos. Água sempre. Café, muito. Chás, sucos, álcool. Cada momento tem seu sabor. Também nessas variações há portais. Mas a água, o tempo todo, é um fundamento. Escrevemos melhor quando estamos bem hidratados.
Você escreve um pouco todos os dias ou em períodos concentrados? Você tem uma meta de escrita diária?
Não tenho metas. Tenho criado todos os dias. E em períodos concentrados, sempre que posso. Nunca senti tanto ímpeto de escrever. Nem uma chance tão boa de ter disciplina também, como agora tenho. Sinto que meus primeiros trinta e três anos foram muito dedicados à experiência. Preferi viver a ler, escrever. E parece que agora chegou um momento de contar. Organizar essa imatéria toda, antes que eu fique velho demais pra lembrar das minúcias de alguns sentimentos.
Antigamente, por exemplo, eu acordava cantando. Não tenho feito mais. E ainda não sei, muito bem, o que isso significa.
Como é o seu processo de escrita? Uma vez que você compilou notas suficientes, é difícil começar? Como você se move da pesquisa para a escrita?
O meu processo, muitas vezes, parece que não é meu. Ele é imprevisível quase sempre, embora se possa intuir. E variado demais. Muda muito. Tem sido raro compilar notas. E mais ainda, lê-las depois, quando compilo. Às vezes eu pesquiso no mesmo tempo em escrevo. Em outras, é tudo ao contrário. Tenho tentado aprender com o grão de areia que a onda move. Ser manipulado pela mídia, pela imprensa, política ou economia corruptas é sim um problema. Mas ser guiado pela vida não. O mar, como metáfora de existência, tem intenções generosas. Quero um dia ser apenas a pena. O grafite. Um carbono que deforma o suficiente pra imprimir seu estilo, sem estragar a origem, que realmente valha.
Como você lida com as travas da escrita, como a procrastinação, o medo de não corresponder às expectativas e a ansiedade de trabalhar em projetos longos?
A expectativa é uma desgraça humana. E felizmente, nunca vamos corresponder a elas. É difícil chegar nessa eutopia. Mas quando se chega, há aqui um novo chão, pra sustentar. Ninguém agrada a todo mundo. Dá pra citar dois presos políticos históricos que evidenciam isto: Cristo e Lula. O primeiro condenado conforme consulta popular entre o próprio povo judeu. O segundo, com sua sentença apoiada por milhões de brasileiros e brasileiras. Em ambos os casos, entre as desagradadas, figuram pessoas por quem os presos trabalharam muito.
Evidentemente, não estou comparando Lula com o Cristo humano. Infelizmente não tomei uma cerveja com nenhum dos dois, assim de corpo presente, pra assumir melhores bases. Mas chega a ser óbvio – e eu nem acredito nessa palavra – isso do desagradar. Nossas expectativas tendem a ser perfeitas. E a perfeição é muito menos humana, por exemplo, que a tradição de tacar pedras. Logo, juntando a isso nossa hipocrisia certa e infalível, temos um circo de horrores todo armado. É só vendar os olhos e entrar. Ironia é igual pipoca: só pode se você comprar lá dentro. Nada que tenha visão ou inteligência é aceito.
Jesus humano, por exemplo, o corpo do Cristo: não foi aceito.
Mas, voltando à pergunta: nós erramos. É natural. Algumas pessoas, como Tom Jobim, escolhem jogar fora a maioria das coisas, tentando ficar só com a nata da obra. E apurar isso. Outras pessoas, como Kafka, queimariam tudo. Dentre essas, há aquelas que queimam mesmo, e nós sequer sabemos que existem. Outros, como Van Gogh, o mundo prefere suprimir até que morram de míngua e indiferença, pra depois se apropriar devidamente de suas produções. Isso tudo sendo ainda pior com mulheres, que leem e escrevem muito mais a vida que nós, homens, mas ficam tantas vezes completamente ignoradas, à sombra dos seus maridos, além de outros machos, e tão comumente destinadas ao total esquecimento. Como Carolina Maria de Jesus e os contratos de “Quarto de Despejo”; o reconhecimento tardio de Noémia de Sousa, mãe dos poetas moçambicanos; como Conceição Evaristo e a Academia Brasileira de Letras; Adalgisa Nery e sua obra poética; Mary Shelley com Frankenstein; tantas demais, de quem talvez nunca conheçamos nomes, nem feitos.
Tô desviando mais uma vez o assunto, pois há isto: a história humana, até aqui, é perversa. Há um jogo complexo, meticuloso, e muitas vezes nojento, de interesses. Vivemos em um sistema que sobrevive justamente por cooptar tudo o que se opõe a ele. Reclamamos da ausência de bonecas negras, por exemplo. O sistema vai lá e incorpora tal demanda. Instigá-la mais. Mais e mais. Depois oferta. Cria um novo segmento de mercado. Mantém a si, e à margem crescente dos seus lucros. A preta velha matriarca sábia e sã segue pobre e esquecida num manicômio da cidade, cheia de histórias de rainhas e princesas negras pra contar. E ao invés de termos ela na escola, contando isso pras crianças em roda, levamos elas em filas, por ordem de tamanho, pras fileiras duma sala de vídeo. Pra que conte a Disney.
Nosso estágio atual, pós-moderno e ainda muito medíocre, não nos permite acessar os conteúdos. Ainda medimos o valor das coisas pelo mérito aparente dos status. Os corações não estão abertos, nem livres o bastante, pra sentirem o real peso de tudo. Com isso o, ou a, artista, fica com alguns desafios: 1- manter-se sabedor(a) de onde veio; 2- conferir dignidade ao seu ofício, e à arte como arte, trabalho, e bem comum social planetário; 3- fuder com as expectativas do mundo humano. Sobretudo as desumanas, ou seja: todas mesmo.
Bom, dito isso, e voltando à parte das metodologias. Eu acredito no processo. Nunca joguei um poema fora. Muito provavelmente não tenha um poema bom o bastante. Mas não jogo. Sou um acumulador dessas desimportâncias. Assumo todos os meus clichês dos 7 anos, dos 15 e os atuais. Erramos. Falamos merda. Fazemos merda. E eu amo o fato do verbo errar significar imperfeição e, também, viagem. Vivo errando e espero seguir assim. Sempre gostei das biografias obscuras, dos rascunhos e das partes desprezadas dessas obras. O disco que não vendeu. O quadro que fica esquecido no canto do museu. O Cristo que passa do seu lado, vestido de mendigo.
A humanidade ainda deve muito à sua fase anal. Precisamos desmistificar a merda. Aprender o ciclo da vida. Entrar nele. Girar no mesmo sentido do mundo: o anti-horário. Enquanto isso não acontecer, nossa terra será estéril. As muitas fraldas que a gente inventa seguirão cheias, tentando não vazar. E os homens poderosos com seus carros e discursos, seguirão louvando Freud de quatro, secretamente nos bancos traseiros, com as monas mais bem dotadas que o dinheiro pode pagar.
A vida às vezes empaca. Por que a escrita em si não travaria? É preciso achar os caminhos, entrar os portais, quebrar os muros, dar um jeito, seus pulos. Se vira. A procrastinação sim, é um problema. Talvez, nossa maior estupidez. A sinto diferente do descanso, de uma boa malandragem, da vadiação sadia ou ainda dessas transgressões, e subversões, necessárias. Procrastinação, pra mim, tem a ver com adiar, o inadiável da vida. Tento me manter distante dela, mesmo errando.
Sobre a ansiedade com trabalhos longos, na escrita, estou começando com eles agora. Vim vindo aos poucos, poemas curtos, poemas um pouco maiores, crônicas, contos… E só agora estou escrevendo um romance, fluindo a possibilidade de alguns ensaios, com outras narrativas, mais longas. Tem ido bem. Mas sim, a ansiedade é outra mazela dessas, gerais ao nosso tempo. Embora seja completamente contra-corrente, talvez nos valha essa paciência artesã. Assim como os textos maiores, com mais detalhe e relatividade. O cartesianismo já é tão demodé quanto acreditar em justiça feita pelas próprias mãos. O complicado nisso, é que o mercado espera que você resolva tudo numa imagem de 1×1, num texto de 140 caracteres, ou numa canção de 2 minutos. No máximo. À academia, não é nada diferente, no fundo.
E o curioso é que, com essa ansiedade crescente, não fizemos quase coisa nenhuma que preste realmente, entre os praticamente 2 mil anos que separam o homicídio de Cristo, do feminicídio da Marielle.
Mas enfim, eu tomei um café com Ana Maria Gonçalves esses dias, e falávamos dessas apropriações todas, do sistema. E de como a gente fica, no meio disso. Faltou dizer, assim, um último desafio da ou do artista aqui, nessa resposta: sobreviver. Pagar as contas de água e de luz, do banco e o mercado, além das cármicas. Comer, morar, dormir. Ir. Voltar. Fazer tudo isso dentro de um sistema que é este. Precisando vender arte, como um plantador de bananeiras tem que vender suas bananas. Não é fácil, mas, fazer nunca foi fácil mesmo. Por isso nossa sociedade se sustenta tanto assim, só das coisas que fala.
Quantas vezes você revisa seus textos antes de sentir que eles estão prontos? Você mostra seus trabalhos para outras pessoas antes de publicá-los?
Posso publicar um texto hoje, levando em conta os meios virtuais, na mesma hora em que escrevo, sem qualquer revisão. Posso, conforme o gerúndio, estar editando esse texto dali a pouco, depois de lê-lo melhor. E cada vez que eu leio um texto meu, tenho vontade de mexer. Terminar meu livro de contos foi uma loucura por isso. Eu acho que terei o “mesmo” poema, o “mesmo” conto, lançados em livros diferentes com edições diferentes. Da mesma forma que mudo as letras de minhas canções, incluo ou arranco estrofes. Sem fim, a arte é viva. Nós somos vivos. Com nossas ideias, momentos e luas. Acho que cabe um acordo interno, assim, para não enlouquecer. Ou pelo menos coube comigo. Assumir que minha obra será sempre incompleta. E que poderá sempre estar melhor. Como eu mesmo. Assumir que sou humano quando escrevo, quando reviso, quando posto, falo. Tudo. Que tudo isso é feito com nosso cansaço, nossos estresses e pressão arterial, com nossa lombar e esse excesso da descompostura contemporânea dessa geração. Nossas dores de barriga, maus funcionamentos do intestino e todos os receios do dia a dia político e econômico do mundo.
Esse acordo nos ajuda a amar aquilo que somos e fazemos. É isso. Meus textos nunca estão prontos. Eu também não. Não tenho problema nenhum em expor esses processos às pessoas. Publicar um texto é como ser visto num mercado ou na praça, no parque ou no bar. Vivemos, e a nossa imperfeição está exposta. Saímos na rua, e nossa imperfeição está visível. Publico um livro e é o mesmo. Agora, a cumplicidade de alguns é sempre um alívio. Tanto pro nosso estar no mundo, quanto para o estar de nossos textos. Tenho amigas e amigos com quem conto, por suas interlocuções, críticas, acolhimento e gentileza, de atentos olhares. É raro, claro. Talvez seja mais fácil conseguir amigo pra emprestar dinheiro, que pra ler. Bem dizer, não temos tido muito tempo pra ter ou ser amigos, né? Não me excluo disso. De 5 mil, no fim das contas, parece que sobramos só nós. E o espelho. No fundo eu acho que insisto por isso. A literatura carrega uma possibilidade. De consciência e inteligibilidade. Pra sabermos sermos solitários. E solidários, enfim, com toda a nossa vizinhança.
Como é sua relação com a tecnologia? Você escreve seus primeiros rascunhos à mão ou no computador?
Meus tendões, pescoço e coluna sofrem menos com o teclado do computador. Que com a escrita à mão. O computador também deixa tudo mais facilmente editável, transferível, sem falar que é hoje o destino final pra quase tudo. Me vejo rendido a isso, embora ame os manuscritos. Rascunhos, rabiscos, como já disse. Tenho nisso percebido o matrimônio que é a literatura. E assimilado que, escrever à mão, é como beijar na boca. Preciso voltar a fazer mais isso.
De onde vêm suas ideias? Há um conjunto de hábitos que você cultiva para se manter criativo?
Como devo ter sido muito prolixo na pergunta 5, vou meio que pular essa. As idéias vêm de todos os lados. No meu caso, especialmente dos cantinhos. Gosto da miudeza. O único hábito pra se manter criativo é manter-se vivo. Vivo mesmo. Quem tá vivo, sente. Sentir é ver, cheirar, degustar, ouvir. Tocar a tudo. Com todos os sentidos disponíveis. Criar, com isso, é se dispor à convivência. Oferecer um ponto de vista próprio, enquanto sentimos os pontos demais, das gentes com que convivemos.
O que você acha que mudou no seu processo de escrita ao longo dos anos? O que você diria a si mesmo se pudesse voltar à escrita de seus primeiros textos?
Sinto que o meu processo de escrita, assim conscientemente, tem nascido agora, junto com meu filho. A escrita em mim até então, sempre esteve mais visível aos outros. Minhas primeiras professoras de língua cantavam essa bola lá atrás. Eu fazia figuinha, achando que era praga. De certa forma é, né. Ser contador de histórias. Artista. Um artesão das horas difíceis, do ordinário e da esperança humana, nesse mundo. Mas enfim, nesse caos que me descrevo, minhas maneiras de escrita, com temas, métodos, tudo, só mudou. Meu processo errou comigo esse tempo todo.
À escrita dos primeiros textos, eu posso sempre voltar. Como leitor, antropófago, remixer. O que me pega, do passado, são as pessoas que magoei. Deve ser um passo importante, no rumo da maturidade, entender o que são as páginas viradas. De algum modo, não se pode reescrever nada. De outro, se pode sempre recriar tudo. Hoje eu considero que tenho algum jardim. Com bons frutos, flores de perfume. E não digo só por metáfora. Tenho um quintal grande, com romã, maracujá, tenho até um carvalho bonito, num potinho de requeijão, que veio lá de Portugal e que segue esperando um pedaço bastante, de chão – que o quintal é grande, mas não pra um carvalho gigante, adulto. Criamos galinhas, estrelas. Saí da periferia da cidade, da rua de cima da favela, pra vir pra zona rural, vizinho da Casa do Sol e a memória de Hilda Hilst.
A vida vai andando, o mundo em seus giros. E essas merdas, que vamos fazendo, vão compondo tudo isso. Fertilizando nossas melhores chances. Eu não penso em voltar assim, como quem escreveria diferente. Nem mesmo para agir, de outros modos. Tudo que fiz, os erros tantos inclusive, me fizeram ser este, que responde a entrevista. O caminho é pra frente. Saramago, por exemplo, foi conseguir se ajeitar melhor pra desaguar toda a obra, depois de muita idade.
Sinto que cada qual tem seu tempo. Bach compôs um volume esplêndido de cantatas só nos primeiros anos de Leipzig, num intervalo curto, intensíssimo. As linhas da vida são mais como as linhas da mão, que as linhas dessa produção industrial em que vivemos. Minha bisavó andaluza, cigana, sabe mais dela, que qualquer cientista estatístico. Bom mesmo é não se separar do nosso tempo. Ele é como um pai, de quem ganhamos muito, se ouvimos, com o espírito atento.
Então, é isso. Melhor é nunca fechar o peito pro perdão. Saber respeitar as pessoas que ainda preferem os poços da mágoa. E reinventar nosso passado, como um bolinho de arroz delicioso feito com restos, uma receita de pão duro, essa compostagem que mantém a vida assim, pulsante. E a dica que eu me daria hoje, foi a que ganhei mais jovem, do Jorge Mautner: não pare de escrever, menino. Conte pro mundo as histórias que tem pra contar. Sua parte é essa. O resto, será.
Que projeto você gostaria de fazer, mas ainda não começou? Que livro você gostaria de ler e ele ainda não existe?
Ah! Eu sou como os poetas do uruguaio Leo Masliáh, que o Milton Nascimento cantou. Tenho sempre uns 400 mil projetos começados, por começar ou sem nunca ter fim. Os livros que mais leio são os que não existem mesmo. São aqueles sentidos que não cabem nas estruturas limitantes das nossas línguas. Livros de silêncio. Ou aqueles corriqueiros. Que o Guimarães Rosa dizia também gostar de ler. Uma vez estive com Gonçalo Tavares, o escritor português, junto de outros escritores em São Paulo. Tentando pensar no que haveria de comum entre toda pessoa escritora, em meio a tanta diversidade de estilo e personalidade. E ele disse que talvez toda pessoa escritora, boa, fosse também, muito leitora.
Lembro de ficar mal, um instante. Eu lia tão pouco! Um ótimo sinal de só poder ser escritor ruim. Mas ali mesmo entendi que eu lia sim. Mas esses livros, que acontecem no bairro onde eu cresci. Na favela, na quitanda, na fila do postinho de saúde, no jogo da várzea, passando na rua, no ponto do ônibus. No banco, na praia, no aeroporto. Na Dinamarca, Japão, Angola. São livros de que tive o privilégio de acessar. Que depois traduzo, com minhas imprecisões, pra versões da realidade mágica e fantástica que é essa nossa, que acabam sempre muito piores que ela, certamente. Claro que me envergonho disso. Mas faço de coração, como a pessoa limitada que enfeita a casinha com artesanatos de garrafa pet. Ou o humano limitado, que passa um café fraco de pó, mas forte no amor, pra receber uma visita.
E é seguir errante. Errando. Afinal, é o que dá. E também, eu tô com o Leminski nisso de achar que sermos exatamente aquilo o que somos, ainda vai nos levar além. Primeiro seria essa resolução pacífica com as nossas merdas. Daí, entender que temos, na literatura, esse imenso legado. Acessível. E ampliável. Um melhor usufruto disso, aumentaria muito a qualidade de tudo que fazemos entre um livro e outro. E o que fazemos entre um livro e outro é: nossa própria história.