Priscila Gontijo é dramaturga e escritora, autora de “O som dos anéis de Saturno” (7Letras), semifinalista do Prêmio Oceanos 2021, ambos pela editora.

Como você começa o seu dia? Você tem uma rotina matinal?
Sim, depois de tomar o café da manhã eu escrevo ao menos até o horário do almoço. Se estiver em sala de roteiro, escrevo até as 10h, pois tenho o compromisso em equipe que me impede de seguir até o horário de almoço. Mas retorno à escrita de ficção ao final do dia. Quando não estou em sala de roteiro, escrevo durante toda a parte da manhã.
Em que hora do dia você sente que trabalha melhor? Você tem algum ritual de preparação para a escrita?
Minha rotina vem sofrendo alterações ao longo do tempo e mudou completamente durante a pandemia. Antes, eu me sentia melhor iniciando o trabalho no horário do lusco-fusco, a transição do dia para a noite, esse “entre” parecia o momento ideal para me sentar diante do computador. Atravessava a madrugada até o sol fustigar o teclado. Eu tinha essa compulsão de escrever e reescrever na mesma noite até ter uma versão razoável que não me envergonhasse no dia seguinte. Ia me deitar com as mãos trêmulas e acordava quebrada. Com a idade, além dos problemas de coluna e de enxaqueca, fui me disciplinando para ter uma rotina mais saudável.
Na pandemia, parei de fumar e de ouvir música durante o desenvolvimento da primeira versão, seja de um texto dramático, de um roteiro, romance ou conto. Inclusive, costumava tomar uma taça de vinho para aquecer antes de abrir os trabalhos. Abdiquei de todos esses hábitos. Além disso, Kubrick, o meu companheiro felino de 17 anos, faleceu há pouco tempo e desde que o bichano ficou doente parou de me acompanhar nas revisões, pois não conseguia mais subir na mesa do escritório para deitar ao lado do computador ou ronronar sobre o teclado, o que afetou a minha escrita e a labuta cotidiana. Ainda assim, me sinto melhor para trabalhar no período da manhã, quando os sonhos estão fervilhando na cabeça e há uma espécie de espreguiçar interno.
Você escreve um pouco todos os dias ou em períodos concentrados? Você tem uma meta de escrita diária?
Eu costumava alternar períodos de grande atividade de escrita com períodos de leitura, mas atualmente escrevo um pouco todos os dias. Ao menos no período da manhã. Se não estiver com prazo apertado como roteirista ou professora, escrevo no período da tarde também. E é o método que indico. Quando se escreve todos os dias a maneira de pensar o texto se transforma. Você dorme e acorda completando frases, esmiuçando enredos, lapidando paisagens. Escrever exige muita disciplina e rigor e, como sou perfeccionista, acredito que essa seja a melhor forma de ficar em paz comigo mesma, ao menos, em parte. Minha meta é escrever três páginas por dia, porém, aprendi a não me cobrar tanto ou criar altas expectativas. Se as três páginas não vierem, um bom parágrafo já me conforta, o importante é não falhar no compromisso diário.
Como é o seu processo de escrita? Uma vez que você compilou notas suficientes, é difícil começar? Como você se move da pesquisa para a escrita?
Não separo as duas atividades, faço tudo junto. Uma vez que me sento para escrever, eu busco seguir o movimento dos dedos, sem me pressionar tanto. O que importa é me abrir ao som das palavras, deixar a musicalidade interna do texto ditar o ritmo da escrita. Aprendi a tocar piano antes de me alfabetizar e acredito que isso possa ter alguma influência na minha relação com a palavra. Assim como ter nascido em uma família de escritores e jornalistas. No convívio diário com artistas e intelectuais, amigos de meus pais, percebia que a pesquisa participava da criação. Tomei gosto pela investigação, adoro fuçar gírias novas, conhecer personagens de idades distintas, crenças e valores outros, anotar detalhes inusitados de algum acontecimento. E faço pesquisa de campo também. Além disso, aprendi muito quando trabalhei como pesquisadora de texto da TV Globo. E leio muito, desde a infância. Então tenho uma boa biblioteca para a pesquisa literária. Como a minha mãe foi repórter e pesquisadora, eu me lembro de uma época, quando era criança, de conversar com o Otto Lara Resende no telefone, porque caso a minha mãe não estivesse em casa, ele relatava a pesquisa para mim, pois ambos trabalhavam juntos, como jornalistas. O Otto não conseguia segurar a descoberta – ainda não existia celular – e a despejava inteira, com detalhes, enquanto eu anotava tudo. O Otto também dizia: “Quando você ler uma notícia, procure não se identificar somente com a vítima, um artista não pode testemunhar os acontecimentos por uma via única”. Ali já estava sendo iniciada no maravilhoso mundo da contradição humana, no dialogismo constitutivo de toda enunciação, apesar de não ter nenhuma consciência disso, na época. Mas nunca me esqueci de suas palavras.
De modo que as três atividades: anotar, pesquisar e ler se entrecruzam na elaboração escrita. E para começar algo novo, nada como ter prazo. É a técnica que uso. E ler sempre. A leitura estimula a criação, assim como a observação atenta, quando se vai ao mercado, por exemplo, ou à farmácia. E ouvir as conversas no ponto de ônibus. Andar de metrô e trem é fundamental para desenvolver os diálogos.
Como você lida com as travas da escrita, como a procrastinação, o medo de não corresponder às expectativas e a ansiedade de trabalhar em projetos longos?
Prazo, prazo, prazo. Com um Dobermann no seu encalço, você destrava rapidinho. Sempre existe o prazo para algum edital ou algum produtor teatral ou de cinema, alguém no meu cangote cobrando o texto da peça, do roteiro. No caso da escrita de romance, eu mesma invento a data final para a entrega. Quando surgem as travas, eu leio alguns autores emergenciais: Nelson Rodrigues, Clarice Lispector, Katherine Mansfield. Também adoro descobrir escritores contemporâneos, agora estou apaixonada pela escocesa Ali Smith. Se a prosa não funcionar, me agarro aos poetas geniais como Hilda Hilst, Mário de Sá Carneiro ou Ana C., capazes de operar milagres em uma mente embotada.
De qualquer maneira, não costumo me entregar tão fácil. Trabalhei com o diretor teatral Antunes Filho como dramaturga e como atriz e o que se aprende neste ofício é que não existe desculpa para não entrar em cena. Imagina se um ator avisar ao elenco que não pode fazer a peça naquele final de semana porque está travado? Em vinte anos de carreira, nunca vi isso acontecer. Já saí direto da emergência do hospital para o palco. E o mais curioso é que os deuses do teatro ajudam. A gente sempre dá conta. Será que existe diferença do ator para o autor? Os dois trabalham com ofícios criativos, que exige técnica e sensibilidade, disposição e entrega. Como escreveu Fernando Pessoa: “O poeta é um fingidor. Finge tão completamente que chega a fingir que é dor a dor que deveras sente”. Por que o ator não pode faltar e o autor inventa uma desculpa para não fazer? O escritor precisa ter humildade para encarar a labuta e compreender que o seu ofício não é melhor e nem pior do que nenhum outro. E mesmo os autores mais geniais, os samurais da criação, eram disciplinados, procuravam não se afastar por muito tempo do trabalho e escreviam que nem uns possessos. Claro que as pausas existem e são necessárias, principalmente entre uma obra e outra. Não estou fazendo apologia da produtividade, muito pelo contrário, apenas atentando para o compromisso com a literatura e com a prática da escrita. Escrever se aprende escrevendo. E também implico com essa glamourização do escritor, esse patamar bíblico em que os alçam, como se fossem seres superiores.
Procuro não pensar nas expectativas dos outros, penso nas minhas. E também não sinto ansiedade em trabalhar em processos longos, sinto ansiedade em não trabalhar em processos longos. O que me deixa angustiada é quando não estou empregada, sem salário para pagar o aluguel. Isso me causa muita ansiedade porque é uma vida por demais incerta, de uma inconstância absoluta, sem nenhuma estabilidade. Quando o aluguel está em dia, trabalho com tranquilidade.
Quantas vezes você revisa seus textos antes de sentir que eles estão prontos? Você mostra seus trabalhos para outras pessoas antes de publicá-los?
Eu reviso incansavelmente. A quantidade de vezes depende do texto e se há ou não prazo de entrega. Se for um conto, na melhor das hipóteses, o texto é escrito, revisado no dia seguinte e nos dias posteriores, durante uma semana. Depois vou revisar em voz alta e deixo decantar. Após um mês ou dois eu releio e reviso mais uma vez. E ainda haverá a revisão pós leitura crítica de um amigo próximo. Sempre tenho dois ou três leitores de confiança para mostrar antes de publicar.
Como é sua relação com a tecnologia? Você escreve seus primeiros rascunhos à mão ou no computador?
Eu escrevo tanto à mão, quanto no computador. Mantenho os dois hábitos. Tenho sempre um caderno comigo, dentro da bolsa e na mesa de cabeceira. Tenho rascunhos no computador também. Preciso dos dois dispositivos para criar.
De onde vêm suas ideias? Há um conjunto de hábitos que você cultiva para se manter criativa?
O hábito que cultivo é ler. Vejo filmes também, o cinema me inspira bastante. Talvez soe estranho, mas busco preservar o mínimo de solidão. Vivemos um tempo sem tempo, sem pausas, sem suspensão. Esse excesso de estímulos, de imagens, de propagandas, de marketing afeta a criação. E parece nos afastar da densidade. Então, se eu estiver vivendo um processo de luto, tento não fugir. É horrível, é quase insuportável, às vezes, é mesmo insuportável. Mas também é algo muito valioso para o desenvolvimento da percepção. É algo que te alarga por dentro, te faz entrar em contato com algo muito íntimo e autêntico de si mesmo. Acredito que a ficção habite nesse espaço, onde é mais difícil permanecer, mas onde é mais verdadeiro. A escrita é um ofício tóxico. Você lida com seus fantasmas, com seus medos, seus pressentimentos mais terríveis. O escritor corre atrás dos dilemas. Seus e dos outros. Fica cavoucando a terra atrás não dos ossos, mas dos escorpiões. Há um movimento interno que busca o monstruoso, o diabólico, o terror. A escrita precisa desses elementos para não desaparecer na poeira da superfície. Estar à beira da linguagem pede atenção aos precipícios. Sem personagens contraditórios e sem polêmica o texto não existe, não vale nada. Por isso é tão necessário cultivar o silêncio, a densidade, a solidão, o monstruoso em si. Para não ser aniquilado por essa toxicidade há sempre as longas caminhadas, a natureza, os bons vinhos e os amigos mais próximos.
O que você acha que mudou no seu processo de escrita ao longo dos anos? O que você diria a si mesma se pudesse voltar à escrita de seus primeiros textos?
Como disse antes, meu processo de escrita mudou radicalmente ao longo dos anos. Se eu pudesse voltar à escrita de meus primeiros textos eu não diria nada a mim mesma, porque foi daquele jeito que consegui realizar. Se pedisse paciência, ela iria rir. Respeito o tempo das coisas. Não tenho pressa. Como disse Rodin: “O que se faz com tempo, o tempo respeita”. E todo escritor precisa passar pelo começo. Levei tombos violentos, tenho o corpo e a alma repletos de hematomas, mas a minha escrita cresceu no pântano e aprendeu a rir disso. A precariedade é um motor. O humor nasce desses tropeços. Além do quê, eu não poderia ensinar para essa jovem aspirante nada sobre a intensidade e a urgência do hoje, porque só se compreende a perda quando se vive. A gravidade do abalo é algo que uma pessoa jovem é incapaz de alcançar. A não ser que ela seja Rimbaud.
Que projeto você gostaria de fazer, mas ainda não começou? Que livro você gostaria de ler e ele ainda não existe?
Gostaria de escrever um romance de quatrocentas páginas, com digressões e lacunas, bem na contramão da contemporaneidade. Também gostaria de escrever um romance erótico e divertido. E um conto de horror. Gostaria de ler um livro sobre mulheres que não se identificam com a maternidade e vivem vidas repletas de significado.