Pollyana Quintella é escritora.

Como você organiza sua semana de trabalho? Você prefere ter vários projetos acontecendo ao mesmo tempo?
Faço um tanto de coisa ao mesmo tempo, e acho que é assim que funciona pra mim. Quando a obsessão com a escrita parece me esgotar, está na hora de mexer no arquivo. Da minúcia do arquivo, vou conversar com algum artista, e assim sucessivamente. No fim das contas, as atividades constituem um ecossistema próprio. É esse gesto de entrar e sair; percorrer e intercalar ações de naturezas distintas, embora retroalimentativas, o que produz uma saúde do trabalho, sobretudo quando se trabalha muito. Para isso funcionar, como boa virginiana, a agenda organizada é minha melhor amiga (haha!)
Ao dar início a um novo projeto, você planeja tudo antes ou apenas deixa fluir? Qual o mais difícil, escrever a primeira ou a última frase?
Meu planejamento se restringe à agenda, com definições rígidas que me garantam tempo para produzir com fôlego. Enquanto trabalho com pesquisa ou texto, preciso estar sozinha. De resto, a produção acontece a partir da repetição e da insistência. Acho terrível a perspectiva romântica que paira sobre certo imaginário coletivo, de que ideias são tiradas da cartola. É um desserviço. De um lado, desencoraja pessoas que tendem a se considerar incapazes de produzir suas próprias Eurekas, de outro, supervaloriza quem sabe lançar as ideias na praça. Escrita é uma espécie de musculação, se você treina todo dia, verá resultados a médio e longo prazo. Mas se só vai de vez em quando, talvez esteja enganando a si mesmo.
Por fim, acho que meus textos não começam nem pelo início nem pelo fim, tendem a surgir como pontos nodais no meio da estrutura. O texto se erige como um frankenstein, a partir de fragmentos independentes e, em algum momento, as coisas vão tomando seus lugares.
Você segue uma rotina quando está escrevendo um livro? Você precisa de silêncio e um ambiente em particular para escrever?
Se estou com o meu computador, consigo me virar em qualquer lugar. Silêncio é bom, mas nem sempre é possível. Café também é bom, mas na medida certa. Vinho, só quando o texto precisa delirar um pouco mais (e nunca além de umas duas taças, rsrs). De resto, não são as circunstâncias externas que interessam. Para mim, está mais na capacidade de se concentrar e insistir. É preciso agarrar o texto como se agarra dois chifres. Uma hora sai.
Você desenvolveu técnicas para lidar com a procrastinação? O que você faz quando se sente travada?
Não sou do tipo que procrastina, ao contrário, posso dizer que tenho uma disciplina intensiva. O que faz a coisa funcionar é a própria organização da rotina. Se o texto está agarrado em dado momento, a solução é fazer outra coisa e oxigenar a cabeça. Pode ser outra atividade intelectual, ou coisas simples e quase meditativas, como lavar a louça. Tenho a sensação de que já resolvi um punhado de parágrafos imaginários enquanto varria a casa ou passava um café. O pensamento faz parte do corpo — precisa se esticar, andar, comer, transar e ser levado para passear. Por vezes, manter a bunda sentada na cadeira é justamente o que está atrapalhando o seu texto. Outra saída é, obviamente, ler outras coisas. Nunca se escreve um texto sozinho, sempre levamos conosco uma turma mais ou menos escolhida. Aliás, eu nunca conheci alguém que escrevesse bem, mas lesse pouco. Uma atividade está intimamente vinculada à outra, acho que todo mundo sabe disso, mas vez ou outra esquece.
Qual dos seus textos deu mais trabalho para ser escrito? E qual você mais se orgulha de ter feito?
Tendo a evitar esse tipo de eleição. Prefiro pensar no trabalho enquanto um todo contínuo, um organismo que ganha corpo na medida que afirma seus conjuntos e vizinhanças. Mas de modo geral, gosto dos textos em que consigo trazer o repertório da estética, da história da arte e da teoria da imagem para refletir a respeito de situações que estão fora desses campos. É algo mais próximo da crítica cultural do que da crítica de arte. São textos contaminados, cujos critérios deslocados talvez produzam algum frescor possível. O problema é que reler os textos que escrevemos é sempre sofrido. Fico querendo mexer em tudo de novo, então prefiro não reler nada e me concentrar no que estou escrevendo agora. Conheço as minhas armadilhas.
Como você escolhe os temas para seus livros? Você mantém uma leitora ideal em mente enquanto escreve?
Os temas mais nos escolhem do que nós escolhemos os temas. O tema costuma ser o ângulo, a aparência, o recorte de uma inquietação maior, aquilo que está nos mobilizando no momento. E isso varia muito a depender do papel que cada texto tem. Se ensaio, se crítica de intervenção… A verdade é que quando quero refletir sobre algo que não sei, arrumo um pretexto para escrever a respeito. A escrita exige que você construa intimidade com seu objeto. Quanto aos leitores, a melhor maneira de não subestimá-los é não pensar muito neles.
Em que ponto você se sente à vontade para mostrar seus rascunhos para outras pessoas? Quem são as primeiras pessoas a ler seus manuscritos antes de eles seguirem para publicação?
Mariano, meu companheiro, lê em primeira mão e dá seus pitacos. A depender do texto e da discussão, compartilho com outros amigos. Ter um olhar externo faz toda diferença. Admiro profundamente o trabalho de bons editores. São verdadeiros cirurgiões e, muitas vezes, iluminam o melhor de nós. Quando o texto é publicado sem uma boa revisão, me sinto desprotegida.
Você lembra do momento em que decidiu se dedicar à escrita? O que você gostaria de ter ouvido quando começou e ninguém te contou?
A escrita me aproxima da aventura do pensamento. Para mim, existem poucas coisas mais emocionantes do que isso. Como se sabe, não é bem uma escolha, está mais para a direção do próprio desejo. Foi Agamben quem disse essa coisa que parece dar conta do recado: “Quem quer escrever não quer escrever esta obra, este romance, quer escrever em geral, que é a experiência mais insensata e estranha, mas, acredito, também a mais profunda. Creio que seja isto: no querer escrever, na realidade, há uma espécie de desejo e de experiência da possibilidade. Querer escrever significa querer tornar a vida possível.”
Quando pirralha, acho que eu gostaria de ter ouvido algo mais ou menos assim: se você quer escrever, comece a ler obsessivamente agora. Mas, no meio do texto dos outros, no meio do caminho, permita-se delirar e levar a cabeça para lugares desconhecidos. Parece besta, mas pensar é uma aventura que requer coragem. E a escrita é uma de suas ferramentas.
Que dificuldades você encontrou para desenvolver um estilo próprio? Alguma autora influenciou você mais do que outras?
Não estou muito interessada nesse negócio de estilo.
Que livro você mais tem recomendado para as outras pessoas?
Dom Quixote, sempre.