Pedro Fernandes de Oliveira Neto é professor de Teoria da Literatura, Literatura Brasileira e Literatura Portuguesa na Universidade Federal Rural do Semi-Árido.
Como você começa o seu dia? Você tem uma rotina matinal?
A manhã é a mais difícil das partes do dia, embora me sinta profundamente renovado quando a utilizo bem porque sei que esse é um momento crucial do dia. Se tudo dependesse de mim, suponhamos que eu trabalhasse exclusivamente com a leitura e a escrita (sim, isso pode ser um trabalho, mas suspeito que no Brasil ainda está para existir o que, por ausência de palavra, chamo profissionalização da escrita), tenho certeza que a manhã seria o período do dia reservado apenas aos afazeres automáticos. Ler e escrever, trabalhos de elevada complexidade, portanto, não estão nesse rol. Recordo que durante o período de mestrado, quando comecei e vivi em exclusivo para essas duas atividades, usava o início do dia para responder e-mails, acrescentar atualizações nas redes sociais, alimentar o blog Letras in.verso e re.verso, fazer ligações, cuidar da casa, enfim, isso que chamo de tarefas automáticas. E só durante o resto do dia, incluindo mais a noite, me dedicava ao trabalho de ler (pela tarde) e de escrever (pela noite). Mas, esse modo de vida fora do ritmo tradicional tem suas implicações; isso não durou nem dois anos completos e logo me senti profundamente esgotado. Os meses finais do mestrado, fosse porque estava envolvido numa variedade de atividades incluindo uma pesada seleção para o doutorado, foram difíceis. De maneira que, quando comecei o doutorado, num intervalo de um ano depois de concluir o mestrado, prometi a mim mesmo que instituiria a pontualidade de escritório para conduzir o trabalho de leitura e escrita: passaria a me dedicar durante o dia e reservar a noite para os afazeres automáticos. Levei algum tempo. O tempo suficiente para a leitura da Odisseia, de Homero e a releitura de Os Lusíadas, de Camões. Lia um canto toda manhã e escrevia uma ou duas laudas sobre o que lia. Mas, não tardou me adaptar. Em geral, não tenho grandes dificuldades de estabelecer mudanças e logo me adequá-las. No caso aqui isso não foi apenas uma mudança iniciada com o período do doutorado; eu trabalhei pela manhã durante um ano depois do mestrado e as aulas me obrigavam a acordar cedo e manter outro ritmo diferente do que levava nos anos seguintes à graduação. Mas, essa vida exemplar só durou os dois primeiros anos de doutorado. Meu reingresso à universidade, agora não para aulas durante a manhã mas durante a noite, fez com que eu voltasse a flertar com aqueles anos de mestrado. Tudo praticamente voltou ao que era antes, sobretudo porque passei a dedicar as noites que ficava em casa para o andamento da escrita da tese. Só há três anos voltei a trabalhar durante o dia e o resultado atual é este: uso as manhãs para cuidar dos afazeres automáticos e, em grande parte da semana, para trabalhar; quando não estou em sala de aula, vou aos estudos ou aos afazeres a ela relacionados. É uma rotina que se repete até mesmo em grande parte dos fins de semana. Ou seja, uso a manhã como a maioria das pessoas, mas, se pudesse, de verdade, sei que não seria assim; seria como nos tempos de mestrado.
Em que hora do dia você sente que trabalha melhor? Você tem algum ritual de preparação para a escrita?
Desde quando minha rotina mais ou menos se estabilizou em expedientes diurnos, noto que as manhãs e as tardes são os horários mais atrativos para escrever. Assim, quando não estou em sala de aula (o que é um bocado raro), escrevo mais pelo meio da manhã e entre o crepúsculo e parte do início da noite, reservando o intervalo entre os dois turnos para a leitura. Continuo a ter problemas para ler logo cedo ou escrever nos horários subsequentes ao almoço e depois do jantar. Tudo parece se concentrar noutra parte e resulta complexo me prender exclusivamente ao texto. Isso não me impede ir aos jornais, que é sempre uma leitura mais despretensiosa; e faço isso mesmo diariamente logo cedo, com atenção apenas para as colunas culturais. Há muito que dos jornais não leio mais que isso e com especial atenção para os internacionais. No Brasil, os cadernos de cultura não chegam nem ao que alguns se dizem ser, suplementos. Essa nossa mania de substituir as figuras fundamentais de pensar a cultura e a literatura por jornalistas com uma rasa especialização em cobertura cultural e-ou literária é um problema seríssimo. Só tem contribuído, em parte, para conteúdos tacanhos, leituras equivocadas e o fortalecimento da escola do gosto-não-gosto. É uma pena que num país tão pobre tenhamos continuado por esse caminho, desprezando algumas das ricas experiências do passado e, claro, aqueles que estudam, leem, pesquisam seriamente tais objetos. E sabemos que estes estão em toda parte. Digo isso porque quando os grandes jornais se preocupam com o especialista é exclusivamente aqueles do mesmo eixo de pensamento e centrado nos dois grandes centros urbanos do Brasil. Isso impede, por exemplo, de compreender mais a sério determinados fenômenos produzidos por editoras em relação a escritores fora desses eixos levando a dois impasses: a recusa de criadores ou a celebração dos medíocres. Bom, nesse passeio pela web, vou a alguns blogs de crítica literária, sites sobre literatura que costumo visitar com certa atenção, e às livrarias virtuais checar sobre novos livros. Quando estou em paz com esse mundo, sinto que o dia pode começar e talvez seja esse o meu principal ritual de preparação. Fora isso, não tenho nenhum outro. A escrita pode acontecer em qualquer hora – desde que eu esteja no sossego de casa e entre meus livros. E geralmente, me sento para escrever quando o acaso me lança uma ideia. Isso parece ser uma variável que tomo à sério. A ideia pode vir em qualquer parte – o que é um problema. Se ela vem no meio de uma aula, por exemplo, é um desastre: corre sério risco de até ser confessada, mas geralmente mingua e morre. Ainda que eu anote, hábito que não carrego, se não para as ocasiões de leitura, não consigo prossegui-la. De toda forma, preciso de certa ordem; dias muito agitados, com coisas fora do curso normal, resultam em puro fracasso para o exercício da escrita. Isso porque cuido de um universo um tanto complexo: não estou, como disse, apenas entregue para as atividades de leitura e de escrita, tem as aulas, tem as orientações, as leituras de trabalhos acadêmicos e produções dos alunos, as burocracias da instituição, enfim, é um mundo que nem sei como consigo administrar. Mas, até agora tem andado. Se bem, não sei.
Você escreve um pouco todos os dias ou em períodos concentrados? Você tem uma meta de escrita diária?
Aqui é tudo sem roteiro e, por vezes, movido por uma angústia que não sei medir. Quase sempre, a escrita acontece quando eu tenho lido e anotado o suficiente; quando isso acontece (e ultimamente tem sido assim, devido as circunstâncias), sento e escrevo quatro a sete páginas entre uma manhã e uma tarde. É claro que o tempo mais investidonão está propriamente na escrita, mas na reescrita. Eu reviso muito o que escrevo. Quer dizer, refiro-me aos textos mais elaborados, um texto acadêmico, por exemplo. Os textos que escrevo quase semanalmente para o Letras in.verso e re.verso – que não ouso chamá–los de resenha, embora veja o emprego desordenado da palavra até por quem nem sabe ao certo o que é uma resenha – são textos que saem numa manhã ou numa tarde e revisto apenas uma vez antes de ir online. Vez ou outra posso voltar ao texto, muito tempo depois e introduzir mudanças. Sou do tipo que se descobrir um tuíte com erro, apago e publico outra vez, independente de, por milagre, alguém ter retuitado ou curtido. Mas, os textos acadêmicos, não; estes eu trabalho muito na reescrita. E é um problema: eu gosto muitíssimo desse trabalho de manipular a palavra, rever a posição dos termos, o uso do vocabulário, encontrar soluções para coisas que não estão claras ou que não exploram suficientemente como deveria, mas isso também motiva a estranha sensação de um trabalho sisífico. E, no meu caso, toda revisão é grave, porque é rizomática. Sabendo disso, tenho adquirido hábito de escrever pouco. Dizer a ideia toda, explorando inclusive o percurso para sua existência, e só depois vou por enxertos, acrescentando coisas. O outro problema é que isso tudo atrapalha prazos; tenho escrito cada vez menos para revistas acadêmicas, porque na hora de enviar o texto, sinto que há uma revisão a ser feita e não tem prazo para findar. Recentemente, quando escrevi o texto de apresentação do livro que organizei para a Coleção Estudos Saramaguianos, por exemplo, foi o editor que sofreu com minhas idas e vindas. Sei que isso não tem um fim. Daí, eu desisto do texto, não leio mais e acredito que fico em paz. É certo que minha convivência com o blog há mais de uma década e com os jornais me ensinou a ser objetivo e a aceitar o texto como endless work, mas o doutorado me colocou essa condição de ser cada vez, insistentemente, cruel comigo mesmo. Não é fácil.
Não trabalho com metas, embora organize, na minha cabeça, as coisas por prioridades. Se posso de meta, a exceção parece ser, de alguns anos para cá, a responsabilidade de entregar semanalmente um texto para o Letras in.verso e re.verso. Nem sei se exista algum leitor assíduo que fique do outro lado do computador à espera que pingue minhas notas sobre um livro qualquer, mas este é um compromisso comigo mesmo e que tenta seguir o ritmo das parcerias editoriais. Eu classifico esse trabalho como uma vontade própria porque não recebo absolutamente nada em troca – às vezes nem o livro comentado, mas a necessidade que me permita não me entregar totalmente para o trabalho mecânico que as profissões nos cobram é maior. Quer dizer, independentemente de qualquer coisa, escrevo para mim, para não me cegar pelas ideias alheias (impostas pela continuidade da leitura teórica) nem deixar me prender à sistemática de uma ordem. Fora isso, o que mais tenho, no âmbito acadêmico, são rebotalhos de textos que ficam guardados numa pasta que chamo de lixeira esperando que eu volte a eles e dê a continuidade merecida. Ainda carrego a ilusão que poderei voltar a cada um deles e conseguir dar a forma que merecem, torná-los em intervenção, livro. Mas, agora tudo é ainda mais incerto, não é? Talvez eu precise ou ir a eles logo ou me desfazer dessa ilusão de controle sobre as coisas. Agora, quando estava no doutorado, sim, trabalhava com metas: e era uma lauda por dia. Às vezes nem isso rendia: eu fazia uma lauda num dia e desmanchava no outro ou reduzia tudo a um pequeno parágrafo. E não falo do trabalho literário; este parece que foi apenas um sopro e se perdeu algures entre desilusões e outros rumos da escrita. As leituras teóricas – embora depois do doutorado elas tenham se restringido as das dissertações e teses que leio para as arguições ou aos textos que constituem os cursos universitários – transformam tudo numa triste aridez. Depois, quando tratamos as leituras literárias, são sempre como objetos de pesquisa. A gente perde a capacidade de fruir. E o que um dia alguém chamou de prazer do texto, é um gozo seco. Não quer dizer que resulte em alguma alegria com o texto, com o trabalho – como disse, a feitura, a imersão nesse universo de palavras é sempre prazerosa – mas já temos perdida a inocência dos verdes anos.
Como é o seu processo de escrita? Uma vez que você compilou notas suficientes, é difícil começar? Como você se move da pesquisa para a escrita?
Isso depende do tipo de texto que vou escrever. Um texto sobre um livro lido, como os que escrevo para o Letras, demanda encontrar uma ideia que posso chamar de coluna dorsal do que vou escrever; essa ideia nem sempre tem relações estreitas com a obra lida, é por vezes uma inquietação mais geral ou nascida de outras leituras mas que utilizo como gatilho para as observações que busco desenvolver sobre o tal livro. Enquanto leio, colho muitas notas, em parte impressões, em parte diálogos com outras leituras, em parte passagens do livro lido; isso também é um problema, porque me obriga sempre a ter um lugar de silêncio e repouso para a leitura. Tenho dificuldades de me concentrar em lugares de barulho e movimento. Além disso, é inviável andar por aí com um livro numa mão e caderno e lápis na outra. Bom, isso é vício acadêmico – olhando agora, reparo isso. Então, colho notas, mas nem sempre as utilizo. Dependerá sempre da leitura. Há livros que suscitam questões que o melhor a ser feito é logo desenvolvê-las, às vezes mesmo sem ter concluído sua leitura; há outros que obrigam ir às notas, voltar a passagens do próprio livro, enfim, exigem uma maior atenção e sensibilidade para encontrar sua chave. Nesses casos, as anotações são fundamentais e servem mesmo para constituir uma leitura mais ou menos coerente. Agora, muito raramente vou a outros textos durante a escrita. Só depois, numa revisão, para melhor esclarecer um símbolo, um elemento, visito outros livros. Ainda no caso da leitura de um livro, evito recorrer a outras resenhas; se tenho interesse de escrever sobre o livro que estou lendo, não leio nem os textos de orelha. Receio deixar me influenciar pela leitura alheia e ir para o texto munido delas e não conseguir eu próprio encontrar uma visão. O produto final pode até ser o mesmo já encontrado por alguém, mas gosto da tarefa de encontrar por conta própria.
No caso de um texto acadêmico, os procedimentos são outros, e, em parte ao contrário desses: primeiro vem a ideia, como já disse, mas depois, realizo uma varredura sobre outros trabalhos considerando a questão a que pretendo me dedicar e só então constituo uma breve biblioteca sobre, a ser lida, anotada e enfim começar a escrever. Escrever, para mim, é uma atividade meio pulsional e um exercício quase criativo porque gosto de desenvolver raciocínios à correnteza do próprio movimento da escrita, então, todo esse trabalho meticuloso que a tarefa da escrita acadêmica impõe, por sua própria natureza, me angustia muito porque ainda que tenha a gênese do texto preciso me munir de materiais o suficiente até começar a escrever e não posso, evidentemente, me respaldar apenas na pulsão ou na criatividade. A dedicação integral a esses trabalhos de leitura e de escrita – porque, mesmo nos casos quando não estou devotado às questões que me são caras como leitor e pesquisador, estou na lida com essas duas tarefas – também permitem que esses processos não sejam, assim, tão estanques. Por exemplo, desde a tese, tenho me sentido mais à vontade com o ensaio, então acabo conseguindo conciliar as duas possibilidades de escrita que descrevi aqui, embora, no âmbito acadêmico esse gênero textual ainda seja subestimado como um exercício escritural e não a demonstração científica de um pensamento. O que é uma pena. Mas, estamos aqui para desfazer um pouco essas amarras tão radicais que as ciências naturais impuseram à ciência como um todo. Entre os meus alunos na graduação, procuro dirigi-los para esse trabalho com a escrita. Penso que precisamos com alguma urgência abandonar o modo repeat que nos obriga a sempre considerar apenas o que o outro disse como certeza. É óbvio que isso não significa desprezar o pensamento alheio; existem determinações incontestes, mas é que precisamos exercitar o diálogo, expandir pensamentos. Só alcançamos uma maturidade de pensar quando adquirimos uma autonomia que nos coloque em relação com o outro, jamais me submetendo a ele ou me subjugando.
Particularmente não tenho dificuldades de começar. Sou naturalmente – mas descobri que isso é produto de minha própria geração – um remanchão. Quantos dias essa entrevista ficou à espera até que eu me sentisse chamado a respondê-la? Então, quando a situação permite eu deixo tudo para alcançar certa pressão natural – a iminência do tempo é uma delas – e, enfim, me sentar e escrever. E embora isso pareça proposital, sei que não é. Tem a ver com uma imposição que preenche uma dimensão sobre a qual não guardo controle. De toda maneira, nunca deixei de cumprir com os prazos que me determinam. A dimensão outra pode ser uma vivência e uma segurança sobre o que preciso escrever. Sabe-se que, mesmo quando não estamos na lida direta com uma questão de pesquisa, não deixamos de ser envolvidos por ela. Isso implica dizer que, mesmo quando estou mais dedicado à leitura de uma literatura sobre uma questão estou também escrevendo, muito embora esse ato não esteja em realização. Quer dizer eu não consigo separar muito bem esse instante entre a pesquisa e a escrita. Ora, quando enfim vou ao trabalho de escrever, outros acidentes de percurso me obrigam à consulta ou mesmo uma parada para recobrar o movimento da pesquisa. Ao menos é isso que acontece comigo. Então, não consigo determinar com precisão onde termina uma e começa a outra. O que construo é um pequeno mundo e nele permaneço em mobilidade constante entre as tarefas que nele cabem e aí fico até encontrar minha condição de fora dele. Posso até voltar, mas será para construção de outro pequeno mundo e assim sucessivamente.
Como você lida com as travas da escrita, como a procrastinação, o medo de não corresponder às expectativas e a ansiedade de trabalhar em projetos longos?
Até agora nunca padeci da síndrome da página em branco; quando procrastino é porque sei que posso. Os medos e ansiedades se corrigem pelos resultados que obtemos antes com outras situações semelhantes. Agora, parte das dificuldades que sempre tenho – e creio que isso seja recorrente também para outras pessoas – é me envolver demais com uma ideia, uma questão; essa obstinação se por um lado é boa porque significa garantir foco sobre o que se pesquisa, por outro é ruim porque encurta nosso campo de visão ao ponto de não conseguir avançar ou ficarmos presos numa espécie de redoma, sempre constituindo as voltas em torno de uma ideia ou de uma questão. Em parte, acredito que isso se deve, principalmente a educação da tese. O que é uma tese? Uma ideia em torno da qual preciso constituir uma argumentação sólida o suficiente para confrontar ou justificar um ponto de vista. E acaba que essa situação de maior durabilidade se deixa transpor para uma situação mais breve. Quando isso acontece, no meu caso, parece existir só uma saída: colocar as ideias para quarar e me distanciar. Passo a ocupar meu tempo com outras obrigações, as mais triviais possíveis, para só então voltar ao nó e destrinçá-lo. Enquanto escrevia minha tese, essas situações foram recorrentes; mas nada que uma longa caminhada ou um fim de semana com os amigos que não resolvesse o dilema. A insegurança sobre o que escrevo sei que nunca deixará de existir; a preocupação com a reescrita, a revisão, a melhor maneira dizer pode ser lida como uma tentativa de contornar isso. Mas, também sei que sempre haverá um leitor mais atento, mais bem versado na questão ou apenas mais implicante que não olhará para o meu trabalho com bons olhos. Nisso, a maturidade parece ser a de aceitar que isso faz parte dos fluxos e contrafluxos do pensamento. É óbvio que, na atual conjuntura, com as redes sociais, o lugar onde quase sempre vai parar o que escrevemos, as situações não são nada fáceis: há uma legião solta de imbecis. Em casos como este, denuncia-se o que é de denunciar e ignora-se o que é de ignorar. A gente só deve confrontar com quem é de diálogo.
Quantas vezes você revisa seus textos antes de sentir que eles estão prontos? Você mostra seus trabalhos para outras pessoas antes de publicá-los?
Por mais que não queiramos admitir um texto nunca está pronto. O que alcanço é um distanciamento suficiente que me obriga a admitir que, não importa o que eu faça, aquilo não passará do lugar alcançado. É verdade que isso também é uma ilusão porque no futuro quando (e se) voltarmos a ele não deixaremos de encontrar coisas reprováveis. Depois que publiquei Retratos para a construção do feminino na prosa de José Saramago nunca mais voltei a lê-lo; e até voltei, mas li somente um parágrafo para encontrar, envergonhado, uma ou duas gralhas. Eu sei que, se quiser um dia fazer uma segunda edição do livro, terei que revisitá-lo com a acurada e devida atenção. Resta saber se conseguirei. Sei que o trabalho não é ruim, entende? Mas sei que ele poderia ser de outra maneira e não como a que saiu. Quando eu refiz o texto da dissertação para o livro, devo ter lido entre o processo de revisão e publicação umas dez vezes – esta deve ser a conta das revisões que faço sempre quando existe a possibilidade de fazê-las e pode ser mais porque, como disse, meu trabalho é continuamente reescritura. E todas as vezes acrescento e tiro coisas. No caso dos Retratos, sei que se tivesse continuado, estaria até hoje. Por vezes, tenho a sensação de que os textos só findam porque o abandonamos. As ideias ficam mais ou menos visíveis, daí a ilusória sensação de acabamento, mas, o texto é um eterno por vir.
Quando os textos são publicados como os vários capítulos de livro que escrevi ou a organização de livros, como agora com o Peças para um ensaio, os meus primeiros leitores são os organizadores ou os editores, respectivamente. Se escrevo para uma revista, suponho que a curadoria leia o material enviado. Quando passava pelo mestrado e depois pelo doutorado, esses primeiros leitores eram meus orientadores. Tudo isso para dizer que sou órfão de primeiro leitor. E não é por individualismo, falsa modéstia ou medo de reprovação, é mesmo porque as circunstâncias ainda não me fizeram encontrar com essa figura que fica entre o afeto da amizade e a sinceridade de um carrasco. Isso é ruim? Claro que sim e é por isso que não guardo quaisquer certezas se o que escrevo, exceto quando recebo retornos positivos, guarda alguma valia. Talvez por isso eu volte a pensar que eu sou o primeiro leitor, porque escrevo para resolver uma inquietação minha que poderá ou não se tornar pública. Escrever, para mim, é algo muito solitário. E quando isso se torna público ainda mais porque estou cego e não sei se estou diante de um paredão de fuzilamento ou de um pódio para receber uma coroa de louros. Faço as vezes de primeiro leitor de alguns amigos e, embora seja alguém vivido nesse trabalho de ler e comentar o trabalho alheio, parece que existe certo véu que dificulta a separação entre o espírito da amizade e o do leitor crítico, porque isso muitas vezes implica não no que o outro faz, mas no que você faria no seu lugar. Bom, isso não é simples, embora essa distinção aconteça muitas vezes de forma muito natural. O olhar do outro é, entretanto, indispensável.
Como é sua relação com a tecnologia? Você escreve seus primeiros rascunhos à mão ou no computador?
Tudo no computador. Até perto dos meus vinte anos não tive computador, então tudo era escrito à mão. Guardo ainda em algumas caixas contos, poemas, textos de opinião, enfim, um material farto que só tem servido ao acúmulo de papéis; alguns chegaram a se publicar em jornais – durante certo tempo colaborei com muita frequência com essa mídia – mas o resto é tudo muito prematuro ou imaturo. Essa relação com o computador não é de um todo amigável. Desde a aquisição do meu primeiro computador que todos os textos são fabricados nele. Até mais tarde, quando ainda escrevia conto, recordo de uma vez utilizar do computador, mas poesia, também dessas eras remotas, nunca; era sempre o manuscrito. Suspeito que se voltasse a esse gênero ainda seria pelo manuscrito. O mesmo acontece com o trabalho de anotação: mesmo que eu leia no computador, anotar só é possível se for manuscrito. Agora, qualquer outro texto, se fora do digital, sei que não daria conta. Recordo que durante o mestrado fiquei quase um ano sem computador e atravessei então um grave momento na escrita dos textos finais dos cursos, posterguei mais que o necessário; ainda escrevi três textos manuscritos, mas gastei um tempo maior que o comum para fazê-los e fui colocado diante de alguns desafios que a escrita no computador facilita. Uma escrita rizomática, como é no caso da minha prosa interpretativa ou acadêmica parece encontrar seu lugar ideal no digital. Uma escrita que se guia pela maturação com a palavra, pelo corte, pela redução, como é o caso recorrente na prosa literária ou na poesia, parece se encontrar melhor na escrita ao natural. Pelo menos é o que penso considerando alguma experiência própria.
De onde vêm suas ideias? Há um conjunto de hábitos que você cultiva para se manter criativo?
Continuamente falo que antes de tudo vem as ideias e a elas me refiro quase numa acepção romântica do achadomotivado pela musa inspiradora. Isso pode sugerir que acredite na criação como encanto ou um acaso. Embora acredite no acaso; embora acredite que uma ideia possa vir daí, não é crível que esta se desenvolva e se realize com as mesmas regras. A iluminação, a pequena centelha que se acende muitas vezes nas horas mais inadequadas, é produto de uma provocação que inclui uma vivência nas leituras ou na escrita anteriores. Isso significa dizer que as ideias me chegam do contínuo contato com os livros e com a reflexão sobre o lido. Por isso, costumo me cercar dos textos que me colocam questões, me desafiam, me provocam positivamente; embora esses textos sejam os que mais exigem enquanto leitor, neles parece que se concentram todo um manancial fundamental ao florescimento das ideias. E embora as ideias sejam o princípio de alguma coisa, são resultadas de algo em curso. Compreendo que a manifestação delas é produto de uma errância e só passam a existir quando adquirem forma, quando materializadas como objetos de percepção.
As ideias também podem não ser nossas, mas apropriações que adotamos para ampliá-las, rediscuti-las, revê-las por outro prisma. Quer dizer, só pude escrever um livro sobre a figuração do feminino na obra de José Saramago, porque os indícios estavam espalhados por toda a obra desse escritor e, era nesse caso, uma questão reparada por ele próprio e por outros pesquisadores. Mas, a sistematização disso e depois o seu desenvolvimento como uma terceira via, em contradição com a dicotomia masculino / feminino como até então era reparado, isto é, a criação da ideia minha, foi um processo a ser construído e não algo dado. Acredito na ideia como uma construção e não como o puro produto do acaso. Até porque os objetos forjados pela leitura e pela escrita só existem propriamente, muitas das vezes, quando o desenvolvemos. Não podemos esquecer que a linguagem, dimensão com a qual trabalhamos na leitura e na escrita e onde se formam as ideias, é, manifestação. Isso significa que a linguagem assim como a ideia é, a um só tempo mistério e revelação e esta só ocorre quando a realizamos. Talvez esteja aqui uma compreensão sobre nossa angústia: realizar não é uma tarefa das mais simples.
O que você acha que mudou no seu processo de escrita ao longo dos anos? O que você diria a si mesmo se pudesse voltar à escrita de seus primeiros textos?
O que mudou foi minha compreensão de texto e usos da linguagem. No princípio tudo se geria por uma espécie de impulsão: jogar no espaço em branco o que, de alguma maneira, se processa no pensamento. Agora, sabedor dessa impossibilidade, porque reside um lapso fatal entre o pensado e o dito, e entre o dito e o escrito, tenho me concentrado noutras frentes. Por mais que o texto seja uma espécie de monstro que, a certa altura me sufoca e me domina, entendo que ele existe por minha causa. Então eu me conformo com a possibilidade do domínio meu sobre ele. Isso implica certa maturidade que se constitui pelo cuidado com o que dizer, com as articulações do dizer, com a necessidade de ser compreensível e a necessidade de tocar lugares inabitados pelo pensamento. Quer dizer, concentro-me mais no que nos resta de materialidade na linguagem que é a escrita. Percebo que isso é produto de um longo convívio com a leitura minha e dos demais. Não diria que isso significa uma evolução, porque sou a medida de cada tempo e cada medida, para mal ou para bem, tem seu valor e implicação no que sou agora e futuramente; diria que se chama maturidade, produto de uma disposição para exigir mais na lida com a palavra a partir do momento que passo a compreender o texto como um objeto – talvez dos mais engenhosos, sofisticados e complexos que um dia já criamos – passível de contínua transformação. Agora, considerando a possibilidade de me reencontrar com o meu autor dos escritos no passado, pediria que fosse menos ingênuo (um pouquinho só e parece que já seria suficiente) tivesse um pouco mais de calma; este último conselho ainda dou para o autor de hoje. É que ler e escrever exigem um tempo que nunca responde pelo tempo que agora vivemos. Isso implica, inclusive, numa compreensão sobre a qualidade duvidosa do que se escreve na literatura de agora e, principalmente, nisso que chamamos de crítica literária, que consegue ser ainda pior que os literatos criados ao sabor do ato de ignorar a tradição e se filiar a esse ou aquele grupo de temas e de leitores com a pretensão de que estão inventando a pólvora. Creio que o Pedro do passado, por certo ímpeto da juventude que agora começa a desvanecer, tem muito desse modelo em voga, mas cada vez procuro me distanciar dele; ele não é de um todo mal, porque o ímpeto criativo, por exemplo, é indispensável em qualquer fase, mas certa crueldade com o que produzimos é fundamental para que não continuemos a engrossar as já longas filas da imbecilidade.
Que projeto você gostaria de fazer, mas ainda não começou? Que livro você gostaria de ler e ele ainda não existe?
Em mim não cabe todas as ambições e algumas a essa altura começam a murchar. É que junto com o ímpeto da juventude se vai muitos dos sonhos. Eu nunca joguei na loteria. Sou um sujeito de quase nenhuma sorte. Mas, se ganhasse na loteria empregaria tudo na construção de uma rede de amparo à cultura literária no Brasil: uma plataforma que pudesse albergar o que em pequenas quantidades, a duras penas e com a ajuda de outras mentes e mãos às quais sou eternamente agradecido, realizo com o Letras in.verso e re.verso, a Revista 7faces e a Revista de Estudos Saramaguianos. Confesso que meu maior desgosto do país é a displicência com que são tratados os intelectuais, os criadores literários e a privação que os governos impõem, cada um à sua maneira, sobre os mais pobres porque guardam a perversa mentalidade de continuarem tratando-os como renegados do acesso aos patrimônios simbólicos que são fundamentais ao desenvolvimento do pensar e ser humanos. Sei que isso chega a ser mais impossível porque há no próprio meio intelectuais e criadores que contribuem para a manutenção desse ridículo status quo que só existe numa romantização boba e barata das atividades que desempenham.
Mas, como receio que deva tratar de coisas mais palpáveis, penso que o projeto sempre adiado é de retornar aos restos de ideias e conseguir sistematizá-las a fim de estabelecer algo que se diga o curso de uma obra e isso implica, antes de tudo, revisitar a infinidade de coisas que escrevi na tese para organizar os dois livros possíveis que nela entrevejo e depois abraçar os projetos que ainda não vingaram: algumas pesquisas, os livros de ensaios, os livros de poesia, os de contos – estes dois últimos voltar para descobrir se ainda servem ou se devo sepultar de vez esses pseudocriadores. A maturidade deve servir para algo que não seja apenas postergar. Ou acumular mais ideias sobre um universo que é sempre incontornável.
Minha vida de leitor começou muito tarde. Pertenço a uma família em que a pobreza foi sempre maior que qualquer desejo fora do necessário; o livro, portanto, foi sempre objeto distante e de luxo. Mas, desde quando comecei a cultivar o amor pelos livros, e os amei mesmo na sua ausência, não parei de ler. Transitei pelas mais diversas formas, sei da existência de inúmeras que não alcancei conhecer e nem sei se um dia conhecerei, também desconfio pelo quase infinito patrimônio literário construído pela humanidade que exista uma variedade ainda muito maior que tudo isso, tão maior que não consigo captar pela minha própria dimensão imaginativa. Então dizer que ainda existe um livro por escrever seria como admitir que não existe vida fora da terra. Todos os livros já foram escritos. E se ainda não o conhecemos é porque nossa capacidade já não compensa alcançar o que produzimos. Agora, é verdade que alguns de nós são motivados pela necessidade de registrar sua presença e a de outros para além das dimensões de seu próprio tempo. Assim, embora encontre muitas das situações que vivi entre a infância e a adolescência na literatura que já li, gostaria que se registrasse tal como foi esse passado, não apenas meu, mas dos que ainda lutam com a perseverança e a dedicação de ruptura com um circuito social extremamente perverso que se formou no Brasil. Há certas histórias, gostos, práticas linguageiras, imaginações, que gostaria de contar. Se não conseguir, fica o registro da possibilidade. Obrigado por isso.