Paulo Vicente Cruz é jornalista e escritor, autor de “Enquanto os gigantes dançam”(Quelônio, 2021).

Como você começa o seu dia? Você tem uma rotina matinal?
Não posso dizer que a minha rotina da manhã é rígida. Tento priorizar determinadas práticas, na medida das possibilidades. Sendo assim, a primeira coisa que procuro fazer depois da higiene matinal é abrir a janela do quarto no qual trabalho e ficar alguns minutos observando a vista em silêncio. Esse tempo breve de quietude é precioso para mim, porque compensa a overdose de estímulos, a velocidade e a violência da rotina diária. No mundo em que vivemos, aproveitar todos os momentos possíveis de exercício de lentidão é importante. Tem um verso que gosto muito em uma música do Gilberto Gil chamada Cada Tempo em Seu Lugar: “Se eu ando o tempo todo a jato, ao menos que eu seja o último a sair do avião”.
Quando posso, pratico um pouco de exercício em casa, depois desses minutos de calma matinal. Mas nem sempre o tempo permite e não tenho a disciplina necessária pra manter a regularidade, pra ser honesto. Na realidade, acordo cedo diariamente em função de minhas obrigações profissionais, mas não saio da cama super disposto. Preciso de um tempo (e de café) pra aquecer os motores. Admiro quem já acorda às 5h, 6h ou 7h da manhã com todo o gás. É engraçado como frequentemente pela manhã penso em como organizamos a nossa vida em sociedade. A gente faz o que não quer, não hora que não deseja e ainda carrega alguma culpa, se por algum motivo falhamos nessa dinâmica. Criamos um mundo em que preferimos o controle à felicidade. A gente definiu como norma o absurdo.
Em que hora do dia você sente que trabalha melhor? Você tem algum ritual de preparação para a escrita?
Apesar do discurso de resistência às primeiras horas da manhã, me dou o direito à contradição. Diria que a manhã é que é um bom período para escrever. Mas simplesmente não posso dedicar a manhã inteira para isso. Então, se pretendo escrever algo mais longo, faço isso à noite e aos finais de semana. Funciono bem trabalhando até determinada hora da noite. Depois de meia noite, o rendimento cai.
Você escreve um pouco todos os dias ou em períodos concentrados? Você tem uma meta de escrita diária?
Ainda não posso dedicar a maior parte do meu tempo à atividade literária. Por isso, preciso de algum método para manter a arte pulsante na vida. Embora tenha desistido de ser rigoroso, tento escrever algo todos os dias em meu caderno de notas pela manhã, antes de minhas outras atividades de trabalho. Quando não dá, faço à noite. Nem que seja uma frase. São esses pequenos textos que vão sendo desenvolvidos depois, nos momentos em que posso de fato me dedicar à escrita. Essa tem sido a estratégia até o momento.
Como é o seu processo de escrita? Uma vez que você compilou notas suficientes, é difícil começar? Como você se move da pesquisa para a escrita?
Apesar de ser uma pessoa metódica, meu processo de escrita não obedece à mesma lógica desse traço de personalidade que se manifesta em outras dimensões da minha vida. Tenho minhas anotações, leituras e observações sobre o cotidiano. Uma vez que essas coisas estão maturadas a ponto de me gerar incômodos que precisam ser expressos, parto para escrita. Geralmente, começo com um trecho já bem elaborado que é construção desse acúmulo e depois é ação em cadeia e associações em sequência. Posso dizer que isso é como fiz até agora, não significa que vou fazer assim sempre.
Como você lida com as travas da escrita, como a procrastinação, o medo de não corresponder às expectativas e a ansiedade de trabalhar em projetos longos?
Nas condições em que escrevo, tenho tentado ser generoso comigo mesmo, quando não é possível produzir. Embora também não deixe de ter como referência o fato de que muita gente produziu e produz em condições muito mais adversas. Esse é um farol que serve para não me paralisar. Tenho no meu espaço de trabalho um quadro pintado por meu avô materno. Ele era pintor de paredes e, no tempo que sobrava, se dedicava a pintura artística. Coloquei o quadro nesse cômodo para lembrar sempre da importância de cultivar as coisas que são caras para nós, mesmo diante das necessidades e urgências que tendem a nos embrutecer.
Sobre a procrastinação, é importante não deixar que ela controle o processo. Mas às vezes faz parte. Tento preencher esse espaço com coisas que alimentem o exercício da escrita e estimulem a sensibilidade: leio, pesquiso sobre artistas que me interessam, vejo filmes clássicos que não tinha visto ou conhecia. Tudo é tempo de escrita. Tudo é matéria de literatura e elemento do processo. A literatura não é uma coisa apartada da vida. Tem outra coisa. O texto é uma coisa insistente. Quando começo um texto, não consigo aquietar até concluir de alguma forma. Vira quase um alívio terminar e me liberar dessa perseguição.
Em relação ao medo de não corresponder expectativas, o que posso dizer é que nunca tenho certeza sobre a possibilidade daquilo que escrevo impactar e mover as pessoas. Desejo ser lido e mobilizar quem lê de alguma maneira. Isso me gera alguma ansiedade. Mas isso é diferente do receio de não atender ao que eventualmente esperam de um texto. A arte que me importa demanda essa coragem de quem a produz: dizer o que acredita que deve ser dito, da forma que acredita que faz sentido dizer e assumindo o que se diz.
Finalmente, sobre a angústia para trabalhar projetos longos. Estou no momento desse enfrentamento, no esforço de construção do método e da forma para partir para uma narrativa longa, depois de meu livro de contos que abriu muitas possibilidades.
Quantas vezes você revisa seus textos antes de sentir que eles estão prontos? Você mostra seus trabalhos para outras pessoas antes de publicá-los?
Até cansar. Tem um momento em que entrego para pessoas de meu círculo fechado e próximo de afeto, capaz de criticar sem pudor, se algo incomodar. Não significa necessariamente que vá mudar algo, mas faz com que faça escolhas a partir da opinião de alguém em quem confio nos critérios de avaliação. Já cometi a inconveniência de iniciante de mostrar para autores(as) que admiro. Mas hoje em dia, entendo as implicações disso.
Como é sua relação com a tecnologia? Você escreve seus primeiros rascunhos à mão ou no computador?
Como mencionei antes, meu processo começa com notas e textos menores escritos em um caderno, à lápis. Mas quando parto para o desenvolvimento, faço diretamente no computador. Digito com muita rapidez e isso ajuda no fluxo de ideias. Também há a facilidade de fazer e desfazer rapidamente, trocar trechos de lugar… Não sou avesso à tecnologia. Também não sou contrário a uma dimensão artesanal dos processos.
De onde vêm suas ideias? Há um conjunto de hábitos que você cultiva para se manter criativo?
As ideias estão em toda parte. Como mencionei antes, a literatura é parte da vida. Penso em termos literários o tempo todo. Olho para as experiências vividas, para as cenas testemunhadas, para as leituras, para as relações pessoais como elementos para a literatura. Recentemente relendo o romance Sula, da Tony Morrison, me senti contemplado com algo ela diz no prefácio da edição que tenho. Menciona que sua sensibilidade é extremamente política e veementemente estética.
Sobre a criatividade, mais do que cultivar um conjunto de hábitos, acho que é importante ter em mente sempre uma forma de olhar para o mundo. Acho que quem tem a pretensão de se expressar artisticamente deve sempre desconfiar dos primeiros sentidos das coisas, buscar outras possibilidades de interpretação e ter calma para refrear a ansiedade de responder imediatamente aos estímulos. Olhar demoradamente para vida. Não acho que exista fórmula mágica para a criatividade. Não dá para burocratizar a vida dessa forma. Lidar com a instabilidade é mais desafiador, mas mais interessante.
O que você acha que mudou no seu processo de escrita ao longo dos anos? O que você diria a si mesmo se pudesse voltar à escrita de seus primeiros textos?
Eu não colocaria o foco no processo. Quem mudou fui eu. Tenho acúmulos que me permitem escrever de forma que me satisfaça mais. Sou capaz de nomear melhor as experiências e de fazer leituras mais criativas sobre elas. Por isso, se eu tivesse que dizer alguma coisa pra mim mesmo no passado, aconselharia simplesmente a viver e a ter paciência. Escutar o que as nossas experiências têm a dizer e o que nós temos a dizer a nós mesmos leva tempo. Tem artistas que fazem isso brilhantemente em idade precoce, para outros e outras leva tempo.
Que projeto você gostaria de fazer, mas ainda não começou? Que livro você gostaria de ler e ele ainda não existe?
Meu romance é o próximo projeto que ainda está por ser escrito. Quanto ao livro que gostaria de ler, acho que já existe, mas ainda não encontrei. Existe muita literatura sendo produzida e nem um décimo disso chega a nós. Artistas independentes e editoras pequenas têm dificuldade de chegar a um número maior de pessoas. Também há muita gente incrível que não consegue fazer circular seu trabalho da forma que merece. Por isso, não posso dizer que o livro que quero ler ainda não existe. Talvez já esteja no mundo. Esse processo de busca também faz parte do nosso trabalho artístico e de renovação do olhar no encontro de novas miradas. Sei que existe a máxima de que você deve escrever o livro que gostaria de ler, mas acho que o nosso esforço deve ser de conexão com a alteridade. A surpresa é algo que a gente encontra nas outras pessoas e que elas também encontram em nós. Espero encontrar o livro que procuro escrito por alguém e que eu proporcione o mesmo para outra pessoa.
* Entrevista publicada em 10 de julho de 2022.