Paulo Roberto Farias é ator e escritor, autor de “A tessitura da noite” (Multifoco, 2013) e “Deixa eu te falar da noite” (Caos&Letras, 2021).

Como você começa o seu dia? Você tem uma rotina matinal?
Não tenho nenhuma rotina de escrita. A escrita pra mim é muito livre nesse sentido, não consigo programar. O teatro sim. Quando estou trabalhando no processo de criação de algum espetáculo, como ator, sou muito regrado, uma disciplina que se faz necessária para estar em cena. Ao contrário da escrita, não consigo fazer teatro sozinho, preciso das outras pessoas. Ter horários fixos de ensaio também ajuda muito. E sobretudo, no teatro, não tenho como procrastinar, a presença das outras pessoas me coloca em ação contínua. Queria muito ser assim também quando escrevo. Acho lindo isso do teatro: a gente não faz sozinho. E acho lindo isso da escrita também: a gente faz sozinho. E muito do prazer que sinto nesses dois lugares vem justamente disso: aquele espetáculo só se fez possível porque estive intrinsecamente ligado àquelas pessoas; aquele livro se fez possível apesar da solidão da escrita.
Em que hora do dia você sente que trabalha melhor? Você tem algum ritual de preparação para a escrita?
Eu até gostaria de ser mais organizado, manter algum tipo de ritual. Cada livro que escrevi impôs o seu próprio processo. O primeiro, a novela A tessitura da noite (Multifoco, 2013) foi escrito ao longo de três anos, grande parte à mão, às vezes interrompendo a escrita por dias e até meses. Já meu último livro, o romance Deixa eu te falar da noite (Caos&Letras, 2021) exigiu uma escrita diária. A escrita vinha num fluxo contínuo, era quase impossível não escrever, tamanha a força da voz da narradora. Essa voz se impunha e eu parava pra escrever a qualquer hora do dia. Nunca antes experimentei tamanho prazer no processo de escrita. Então só consigo pensar nessa preparação depois que o livro fica pronto, como quem revê e analisa o processo.
Você escreve um pouco todos os dias ou em períodos concentrados? Você tem uma meta de escrita diária?
Não escrevo todos os dias, não consigo me impor essa prática. Sinceramente, acho até violento essa imposição de escrever diariamente, um troço que a gente herda do capitalismo, como se a gente tivesse a obrigação de bater ponto. Mesmo quando o texto exige escrita diária, como no último livro, não me coloco meta de quantidade de páginas. Leio todos os dias, isso sim, não suporto ficar sem leitura. E penso a escrita também, diariamente, a minha e a dos livros que estou lendo.
Como é o seu processo de escrita? Uma vez que você compilou notas suficientes, é difícil começar? Como você se move da pesquisa para a escrita?
Quando sinto o impulso pra escrever, o começo do texto vem rápido, quase fácil. Acho mais difícil o que vem depois, a ação de deixar o texto de pé, dar corpo, seguir escrevendo, não desistir. A pesquisa, em geral, vem durante a escrita, ela não pode frear o impulso da criação. Não pesquiso antes, para escrever só depois, eu misturo: pesquiso enquanto escrevo.
Como você lida com as travas da escrita, como a procrastinação, o medo de não corresponder às expectativas e a ansiedade de trabalhar em projetos longos?
Não sei como eu lido, muito mal provavelmente. Sou ansioso, procrastino muito, travo quase sempre, sou um criador nato de expectativas. Mas vou escrevendo apesar de mim mesmo. Aos trancos e barrancos, tentando me tirar do caminho.
Quantas vezes você revisa seus textos antes de sentir que eles estão prontos? Você mostra seus trabalhos para outras pessoas antes de publicá-los?
Reviso muitas vezes, perco a conta. Sou bastante neurótico até em relação à revisão. Morro de medo de reler o livro depois de publicado, fico apavorado pensando que posso encontrar algum erro fatal que passou despercebido nas inúmeras revisões. Tenho sempre amigos que são leitores antes da publicação, é parte importante do processo. No caso do último livro, essa partilha foi ainda mais radical: eu lia em voz alta para amigos e familiares diariamente os capítulos escritos, e essa escuta foi fazendo parte indissociável da construção do livro, era condição até para que eu seguisse escrevendo.
Como é sua relação com a tecnologia? Você escreve seus primeiros rascunhos à mão ou no computador?
Atualmente eu escrevo a lápis em cadernos, e também uso o bloco de notas do celular. Isso para as anotações, insigths, frases soltas, ideias para os capítulos seguintes. Mas quando vou trabalhar no texto de fato, não abro mão do computador.
De onde vêm suas ideias? Há um conjunto de hábitos que você cultiva para se manter criativo?
As ideias vêm de algum lugar inconsciente que mistura tudo, as vivências, as experiências estéticas, a dor, o prazer intenso: e vira isso, uma escrita, um texto, e cabe tanta vida ali que a gente mesmo se surpreende. Os sonhos são fonte de inspiração pra mim, eu fico besta que a imaginação flui sem nosso próprio empenho. O corpo sonha, ficcionaliza, sozinho. E também o teatro, a prática do corpo em ação na cena; a literatura, o cinema, são todos alimentos fundamentais do impulso criativo.
O que você acha que mudou no seu processo de escrita ao longo dos anos? O que você diria a si mesmo se pudesse voltar à escrita de seus primeiros textos?
Sem dúvida, a autocrítica. Na adolescência, por exemplo, eu escrevia sem me julgar, escrevia porque me dava prazer escrever. Hoje eu me cobro muito mais, exijo tanto que às vezes endureço, às vezes nem vou ao texto, tamanha a cobrança que me imponho. Talvez o Paulo adolescente é quem deva dar um conselho ao Paulo de hoje: Escreva pra se alegrar, vai brincar um pouco com a tua escrita, te diverte!
Que projeto você gostaria de fazer, mas ainda não começou? Que livro você gostaria de ler e ele ainda não existe?
O livro que comecei a escrever no ano passado e não consegui dar continuidade. Quero muito voltar a ele nos próximos meses. Ainda preciso descobrir o tom, a voz do narrador, e resolver questões relacionadas ao tempo da narrativa. Mas confesso que tenho muito medo desse livro, não sei se dou conta. Ele lida com memórias muito doloridas da minha infância, sobre os abusos sexuais que sofri, e se relaciona ainda com a descoberta da sexualidade prematura de um menino gay. Preciso também encontrar a medida entre a minha experiência pessoal e a voz desse personagem ficcional. Um livro que vai me exigir muito trabalho.