Paulo Ferreira da Cunha é Professor Catedrático da Faculdade de Direito da Universidade do Porto e Membro do Comité ad hoc para o Tribunal Constitucional Internacional.
Como você começa o seu dia? Você tem uma rotina matinal?
Acordo com sono, normalmente. Não tenho, como Saint-Simon, um vallet de chambre que me abra os reposteiros, anuncie que é dia, e que tenho grandes coisas a fazer. Tenho todos os dias que me convencer eu próprio de que devo prosseguir a luta, a cada amanhecer.
Não, não tenho rotina matinal… Embora haja sempre algumas rotinas, que contudo são sem história. Acho sempre divertidos os cafés da manhã dos filmes… Os meus não são assim. Mas gostaria, sim (numa vida alternativa), com calmas e mordomias… E um belo jornal (não muito volumoso e incómodo de abrir e segurar) para ler… Hoje os jornais em geral só trazem desgraças… E nem sequer sou muito especialmente fã de suco de laranja, a mais visível cor dessas mesas dos filmes…
Em que hora do dia você sente que trabalha melhor? Você tem algum ritual de preparação para a escrita?
Penso que sou realmente um trabalhador em campanha, de alguma forma escrevo numa tenda simbólica, como nómada que sou… Embora involuntariamente. “Em tempo de guerra, não se limpam armas”.
Conheço algumas pessoas, nem muito distantes, com rituais complicados. E evidentemente lembro-me sempre de Maquiavel, que se vestia nobremente para escrever, num quarto específico, creio que em tons de verde. Eu escrevo em qualquer lugar, munido do meu caderninho mágico e da minha caneta (que é uma espécie de amuleto; mas posso escrever com qualquer uma)… A inspiração vem onde vem, quando vem. Mesmo a dormir vem. E nesse caso é mais complicado, porque é preciso acordar e cumprir as ordens… escrevendo. De manhã, se não me levanto e obedeço, já não me lembro.
Você escreve um pouco todos os dias ou em períodos concentrados? Você tem uma meta de escrita diária?
Acabo por escrever quase todos os dias. Mas não é algo previsto ou programado. Não há nenhuma meta diária. Mas acontece que tenho sempre muitos pedidos de coisas para escrever, e mesmo sem inspiração, acabo por ter de cumprir prazos. O trabalhador intelectual nas minhas áreas humanísticas é servo de muitos senhores, e com agenda muito apertada de escritos, palestras, etc. Umberto Eco lembrava que as pessoas em geral não levam a sério estes tipos de trabalhos, e no fundo acham que é tudo diletantismo de ociosos, que sempre arranjam tempo para mais coisas… Por isso, também, 99% desses trabalhos não são remunerados. Mesmo que tenhamos que gastar mundos e fundos a comprar livros para nos documentarmos, ou a viajar para consultar obras raras, por exemplo…
Como é o seu processo de escrita? Uma vez que você compilou notas suficientes, é difícil começar? Como você se move da pesquisa para a escrita?
São comigo coisas mais ou menos simultâneas. Nunca as notas são suficientes. Vai-se, por vezes, improvisando alguns textos que deveriam ser reescritos no futuro. Mas acabo por usá-los quase como saíram da pena, de um jato, ainda em estado provisório, teoricamente provisório. E depois vão-se juntando mais coisas. Tenho, felizmente (fui construindo-os ao longo de todos estes anos), dois enormes ficheiros, um informatizado e outro em fichas de cartolina, que me são de uma utilidade inestimável.
A falta de tempo e de tranquilidade (porque se pesquisa e escreve ao mesmo tempo que se leciona, e se gerem mil corveias burocráticas e afins) obrigam a que tudo seja um tanto prematuro. Mas c’est la vie… Não se pode aspirar a nenhuma perfeição se se quer fazer as coisas nesta sociedade apressada e coisificadora, produtivista. Veja-se tantos génios parados diante do papel branco, que não conseguem fazer as suas teses… Não sei se o futuro os poupará, a menos que sejam abastados. Claro que o inverso também é um preço a pagar: também temos quem escreva coisas que não lembram ao diabo, da pior qualidade. E não há muito quem seja capaz de ver a diferença… Entre a pura mistificação, tão em voga, e o não fazer nada por estar a meditar e a ler mais bibliografia, ou meramente a apurar o estilo, há que ousar ir escrevendo, como é possível. Com rigor, com audácia, com profissionalismo…
Como você lida com as travas da escrita, como a procrastinação, o medo de não corresponder às expectativas e a ansiedade de trabalhar em projetos longos?
Não me posso dar a esses luxos. Nunca pude. Com respeito por quem tem dessas dificuldades, eu sou um trabalhador que tem de encarar os desafios, sempre. E apresentar resultados, sempre. Decidi isso no meu exame oral da 4.ª série da instrução primária. Pensei que não podia dar-me ao luxo sequer do nervosismo em exames. Faz-se o melhor que se pode, o melhor mesmo, concorre-se o mais cedo que se pode aos lugares que abrem. E sempre. Os outros que nos julguem. E há quem goste muito e quem odeie, claro. Por razões objetivas e subjetivas, depende. Como em tudo.
Quantas vezes você revisa seus textos antes de sentir que eles estão prontos? Você mostra seus trabalhos para outras pessoas antes de publicá-los?
Depende muito. Com o tempo, acho que revejo cada vez mais, porque tenho algum medo sobretudo de gralhas. Mas não compensa muito. Normalmente não há muitas gralhas no que escrevo. Lá escapa uma ou outra… Só há poucos anos dou os meus textos a rever a colegas… Mas os resultados dessa nova fase ainda estão em avaliação. São poucos casos… Infelizmente, apesar de ter muitos amigos na profissão (espalhados pelo mundo), durante toda a vida senti que não tinha verdadeiramente uma escola, não pertencia a uma escola de pensamento. Isso dificulta muito as coisas. Mas pode ser que isso venha a mudar, sobretudo com os temas que tenho lançado, de direito fraterno humanista, constitucionalismo moderno global, neojusnaturalismo crítico, etc. Mas o tema do mestre e do discípulo, dos colegas e das escolas é dos mais complexos e delicados…
Como é sua relação com a tecnologia? Você escreve seus primeiros rascunhos à mão ou no computador?
Procuro que a tecnologia não me domine, mas permaneça senhor dela. Por isso não sou, por exemplo, um viciado nas mil e uma formas de comunicação instantânea, mas obviamente tento comunicar… mesmo. Não apenas ir falando e tagarelando…
Textos científicos normalmente escrevo-os no computador, a menos que tenha tido alguma inspiração fora dos meus vários escritórios e casas (são muitos, entre o Porto e São Paulo), e escrito no meu caderninho… Mas já me ocorreu muitas vezes escrever poesia diretamente no computador, na minha página do Facebook.
De onde vêm suas ideias? Há um conjunto de hábitos que você cultiva para se manter criativo?
As ideias surgem naturalmente da observação do real, seja do quotidiano, seja da comunicação social, seja dos livros que leio. Outra coisa que alimenta a inspiração é a minha escrita de ficção e a pintura, que também cultivo. Aos sábados de manhã, em São Paulo, é sagrado o meu espaço de pintura…
No seu elogio na sala dos Capelos por ocasião do meu doutoramento solene em Coimbra (em Paris, onde também me doutorei, não há doutoramento solene com elogio do doutor), o Prof. Dr. Pinto Bronze disse simpaticamente que eu era algo como um hiper-reativo, sendo por tudo interpelado. E é verdade. Há coisas que mexem comigo, e que me obrigam a pensar e a dizer algo. Não tenho hábitos especiais para me manter criativo. Por vezes até gostava de ter umas feriazinhas da criatividade… Porém, é certo que com os anos vou reagindo menos. Por exemplo, cada vez mais acho desinteressante a polémica no Facebook. E nem respondo muitas vezes. Com o tempo (isso aconteceu com o próprio Confúcio, parece), sem deixarmos de acalentar os nossos ideais, começamos a aprender com as desilusões. E a regir menos…
O que você acha que mudou no seu processo de escrita ao longo dos anos? O que você diria a si mesmo se pudesse voltar à escrita de sua tese?
Mudou mais pressa, mais frenezim. Os prazos são mais curtos, as solicitações muito mais. E também as encomendas, para publicar em revistas convenientes, bem cotadas, e sobre certos temas. Não posso dizer que isso seja muito mais que um desafio que procuro cumprir muito bem, porque gosto de desafios que sei que posso vencer, embora com muito trabalho e algumas desilusões… Escrevi muitas teses. Pensando nelas, acho que todas tiverem o seu tempo, mas que todas continuam em coro a ser vozes do meu pensamento. Apenas a tese francesa retoquei um tanto, e não editei exatamente como a fiz (antes deu lugar, muito depois, a dois livros). Todas as outras foram editadas qua tale, e embora não as leia há uns tempos de fio a pavio, não creio que valesse a pena mudar nada. Como não são teses de direito positivo mutabilíssimo, creio que todas são ainda atuais. Mas, evidentemente, se hoje eu tivesse mesmo que escrever uma tese, faria um texto de 50 páginas, resumindo o meu testemunho sobre o Direito. Convidaram-me do México a fazer uma síntese do meu pensamento e percuros em 30 páginas. Gostei dessa autognose. Esperemos que saia em breve… Mas não é uma tese…
Que projeto você gostaria de fazer, mas ainda não começou? Que livro você gostaria de ler e ele ainda não existe?
Não sou nada de adiar coisas. Projeto incumprido é uma espinha na garganta. Começo todos os projetos que quero começar, e só não levo um projeto ao seu termo (coisa raríssima) se ele é muito longo e se entretanto ocorreu que o deva trocar por outro, melhor. Mas nem me lembro de nenhum caso concreto. Essa é a teoria. Tenho contudo muitos projetos em mãos. Por exemplo, creio que terei no prelo uma dezena de livros, em vários países. A edição anda muito lenta, nos últimos anos. Mas acabarão por sair…
Outros projetos são coisas coletivas, que implicam o concurso de muitas pessoas: por exemplo, a criação de uma Corte Constitucional Internacional. Esse projeto pode ter um tijolinho meu, mas é uma construção de muitas pessoas. Continuo a trabalhar muito para esse projeto… Mas depende de muitas pessoas, e da Fortuna, a deusa da Sorte…
Não penso num livro que gostasse de ler e que não exista. Se eu tivesse esse livro na cabeça, acabaria por tentar escrevê-lo, ou sugeri-lo a quem o pudesse fazer melhor… Tenho tantos livros que eu gostaria de escrever, que não tenho tempo para pensar nesse livro…
Sou, realmente, um leitor, e creio que um bom leitor. Acarinho o que leio, faço milhares de fichas. Mas como sou um intelectual em campanha, e tenho que atuar, acabo por ter de escrever, preferencialmente escrever. Às vezes invejo aqueles que não precisam de escrever, e vivem tranquilamente sem peso na consciência não redigindo uma só linha. Eu não conseguiria viver sem cumprir esse dever… E agora é mesmo um dever sério, esse publish or perish. Acho que é uma regressão civilizacional. Só devia escrever quem sentisse esse chamamento. Escrever para sobreviver na carreira académica é triste. E não melhora o nível das publicações…