Paulo D’Auria é escritor.
Como você começa o seu dia? Você tem uma rotina matinal?
Caminhada, café da manhã e depois os afazeres do dia. Mas nem sempre. Muitas vezes a preguiça domina e a caminhada vai sendo adiada pra amanhã, pra depois, pra segunda-feira. Depois de um mês ou dois de preguiça, volto pra rotina por mais um mês ou dois. A rotina que mais gosto é exceção, inclui um filme depois do café. Mas é difícil ter a manhã livre para isso.
Em que hora do dia você sente que trabalha melhor? Você tem algum ritual de preparação para a escrita?
Já trabalhei melhor na madrugada, que costuma ser um período mais tranquilo e silencioso, mas de uns anos pra cá não consigo mais. Quando tento escrever de madrugada, sinto muita dificuldade de concentração. Então, agora, quando tenho um projeto mais longo, conto ou romance, tenho preferido a manhã ou a tarde. Já os poemas não pedem pra chegar, vêm a qualquer hora.
Você escreve um pouco todos os dias ou em períodos concentrados? Você tem uma meta de escrita diária?
Quando estou focado em um projeto mais longo, preciso de um período concentrado. Pesquisa, escrita, pesquisa, escrita, tudo junto e misturado por um mês, dois, três. Se não for assim, as ideias se perdem, não consigo pegar de volta a linha de raciocínio.
Não tenho meta diária de escrita, mas passei a escrever mais depois de ver Saramago dizer em uma entrevista, “Se eu escrever uma página por dia, ao final de um ano terei um livro de trezentas páginas”. Para mim, esse planejamento é necessário. Admiro quem escrever puramente por inspiração, mas não acredito muito nela.
Já os poemas, por serem esparsos, não pedem essa concentração de tempo. No entanto, mesmo os poemas estão sujeitos a períodos de baixa ou nenhuma produção. Pra mim a poesia está muito associada à leitura e ao ócio. Leitura de ficção e poesia, e também notícias do dia. Tudo é matéria prima, mas ela precisa ser mexida. Feito pão, se não sovar bem, não cresce. É preciso tratar bem a poesia pra ela corresponder e se corresponder com você. Em dias de muitas obrigações, escrevo pouco ou nada.
Uma coisa que mata a poesia em mim é a obrigação. Quando estou escrevendo um projeto do coletivo, diagramando um livro, ou qualquer outro trabalho que obedeça regras, itens, subitens, os poemas não vêm.
Como é o seu processo de escrita? Uma vez que você compilou notas suficientes, é difícil começar? Como você se move da pesquisa para a escrita?
Pesquiso e escrevo ao mesmo tempo, tenho uma memória péssima, e se deixar a escrita para depois da pesquisa, as informações da pesquisa se apagam da minha cabeça.
Aprendi fazendo faculdade de História que a escrita deve partir da pesquisa, e não o contrário. Quer dizer, não se deve pesquisar para corroborar sua teoria, mas sim pensar teorias a partir da pesquisa. No entanto, nunca fui um bom aluno, e como escrevo ficção, faço justamente o que o acadêmico não deve fazer: vou procurar o que corrobore as minhas viagens literárias. Acontece que, neste processo, a pesquisa enriquece a ideia inicial, descobrimos pessoas e acontecimentos dos quais não tínhamos a menor ideia, e eles viram novas histórias dentro da história, novas passagens, novos personagens.
Como você lida com as travas da escrita, como a procrastinação, o medo de não corresponder às expectativas e a ansiedade de trabalhar em projetos longos?
A procrastinação é inevitável, faz parte da arte de ser humano. A gente deixa chegar no limite e depois usa o prazo e a pressa como motivação. A ansiedade como motivação, escreve feito louco. É o ideal? Não. Mas é do jeito que sei fazer.
Os bloqueios, não ligo. São fases. Todo escritor tem. Se um dia o bloqueio for tão longo que eu não escreva mais, nunca mais, paciência. Aposentadoria e ponto. Artista também se aposenta. Já tenho alguma coisa escrita e sou feliz com essa pequena obra.
Mas tem outro tipo de trava, mais difícil de lidar, eu acho, no meio de um conto, quando a história para, parece não ter saída. As vezes a saída aparece do nada, no ônibus, no sonho, caminhando. Às vezes não aparece mais, fica a história pela metade.
Quantas vezes, por exemplo, já anotei uma ideia que me parecia ótima, mas não destravou, não deslanchou, e cada vez que eu relia a anotação parecia mais sem graça. Até que uma hora eu desisto delas e elas desistem de mim.
Quantas vezes você revisa seus textos antes de sentir que eles estão prontos? Você mostra seus trabalhos para outras pessoas antes de publicá-los?
“Escrever é reescrever”. Sempre que vou dar uma oficina, gosto de começar com esta frase famosa, batida até, mas verdadeira. Muita gente que começa a escrever tem a ilusão da genialidade, a imagem do poeta romântico que escreve de supetão, por pura inspiração. Um poema ou outro, pode ser que saia assim, ditado pelas musas, mas não é regra. A boa escrita precisa de revisão. É não só pelos erros de português, mas pelo estilo, porque sempre tem um jeito melhor de dizer o que você escreveu de supetão. E se você é escritor, precisa estar sempre atrás do jeito melhor de dizer, assim como um fotógrafo está sempre em busca do melhor ângulo.
Reviso até não aguentar mais. A revisão é cansativa, embaça a vista. Chega uma hora que não vejo mais nada, erro nenhum, é aí que paro. Normalmente essa revisão pelo cansaço dá conta do estilo, mas não da gramática. Com o texto publicado, os erros aparecem. A verdade é que depois da revisão do autor, é muito importante uma revisão profissional, e, depois, uma nova revisão do autor.
Eu mostro meus trabalhos pra poucas pessoas, pra Cissa Lourenço, que também é poeta e minha esposa, pra minha irmã, revisora, e só. Queria e sinto que precisaria mostrar pra mais pessoas antes de publicar, mas acabo ficando constrangido de pedir essa leitura para os amigos.
Como é sua relação com a tecnologia? Você escreve seus primeiros rascunhos à mão ou no computador?
Relação de neurose total. Sempre no computador ou no celular, muitas vezes direto na rede social. A caneta e o papel me dão preguiça. O que faço no papel, no caso de um romance, são os diagramas das ideias. O desenvolvimento da ideia geral, os desdobramentos, vou anotando e organizando por capítulos em um papel. Fica bem mais fácil de desenvolver a escrita assim. Ticando o que já foi escrito. Permite, inclusive, escrever o capítulo 8 antes do 2, no caso de um bloqueio no capítulo 2.
De onde vêm suas ideias? Há um conjunto de hábitos que você cultiva para se manter criativo?
Como eu já disse, da leitura de ficção, de poesia e das notícias do dia. Difícil mesmo é vir do nada. Quase não acredito em inspiração. Tem quem diga que as ideias estão no ar, que é preciso estar atendo para pegá-las. Acredito mais nisso. Manter as antenas ligadas. Fora isso, não. Nenhuma técnica especial para manter a criatividade.
O que você acha que mudou no seu processo de escrita ao longo dos anos? O que você diria a si mesmo se pudesse voltar à escrita de seus primeiros textos?
Eu diria: “Desista, você não tem jeito pra coisa!”
Muita coisa mudou, comecei a escrever muito cedo, na 6ª ou 7ª série, influenciado por amigos que escreviam também. Mas revirando os escritos antigos, percebi que meus textos eram fracos até os 18 ou 20 anos pelo menos. A gente lê, se espelha, mas não percebe como está abaixo do nível enquanto alguém não der um toque. A troca de textos entre amigos é fundamental. Para isso, procure entrar em um coletivo de poesia, eu sou dos Poetas do Tietê há 10 anos, e a troca de textos e opiniões entre nós era uma constante no início do coletivo, essas conversas me ajudaram muito a desenvolver minha escrita.
As oficinas de escrita também podem ajudar muito quem está começando. Mas é preciso saber ouvir críticas. Tem gente que acha que sabe tudo, gênio autoproclamados, isso atrapalha demais. Eu acredito que a arte de um modo geral, e a escrita incluída aí, é pra quem quiser ser artista ou escritor. Não tem essa de gênio, não. É prática e persistência.
Que projeto você gostaria de fazer, mas ainda não começou? Que livro você gostaria de ler e ele ainda não existe?
Eu gostaria de fazer um livro de contos baseados nos relatos de Freud, e outro baseado na Bíblia, mas sem religiosidade, lendo a Bíblia como o livro de crônicas que, basicamente, é. Um retrato de seu tempo. Mas esses dois projetos são pra quando eu não tiver mais que dividir meu tempo e concentração com nada mais. São para um escritor velhinho de manta de lã sobre as pernas.
O livro que eu gostaria de ler é da coleção História da Vida Privada: “O fim do patriarcado: como as mulheres e os LGBTQ+ revolucionaram o mundo pelo amor e pelo afeto”. Espero ler em breve.