Paulo César Gomes é doutor em História pela UFRJ, autor de ‘Liberdade vigiada. As relações entre a ditadura militar brasileira e o governo francês: do golpe à anistia’ (Record, 2019).
Como você começa o seu dia? Você tem uma rotina matinal?
Ao contrário da maior parte das pessoas, eu gosto muito de rotina, o que ajuda a me organizar. No entanto, a maneira como estabeleço minha rotina depende muito das obrigações profissionais que tenho a cumprir em cada momento da vida. Falo isso porque no cenário político atual do Brasil, como sabemos, a produção de conhecimento é muito desvalorizada. Assim, para um recém doutor como eu, para se sustentar minimamente, é preciso, na maior parte do tempo, se envolver em vários tipos de trabalho, algumas vezes remunerados, outras não.
Quando estou desenvolvendo um texto, seja um artigo, um texto por encomenda ou um livro, separo alguns dias da semana para me dedicar exclusivamente a essas atividades. Nesses dias, costumo preferir ler e fichar textos e fontes históricas logo quando acordo, isto é, as práticas mais relacionadas à pesquisa historiográfica. Acho que funciono melhor para leitura e pesquisa nesse período do dia até o almoço. Na parte da tarde, costumo resolver questões práticas do cotidiano, porque minha concentração nesse horário é péssima.
Em que hora do dia você sente que trabalha melhor? Você tem algum ritual de preparação para a escrita?
Com relação especificamente à escrita, costumo produzir melhor a partir do início da noite até de madrugada. Em épocas mais conturbadas, chego a ver o dia raiar. Assim que comecei a atuar como historiador, escrever era uma prática muito penosa. Não era raro ficar travado no primeiro parágrafo de um texto, escrevendo-o e reescrevendo-o incessantemente, sem conseguir avançar. Não escrevo com facilidade. Acho que o excesso de regras e métodos do texto historiográfico, embora sejam exigências necessárias, acabam tornando esse tipo de produção pouco fluída para historiadores inexperientes. Com o passar dos anos, fui desenvolvendo técnicas que tornaram o processo de escrita mais ágil. Ao invés de ficar preso em determinados trechos do texto, sobretudo nos parágrafos iniciais, vou escrevendo de maneira mais livre, de acordo com o fluxo de ideias associadas ao tema do texto que estou produzindo. Em seguida, volto ao que produzi e vou ajustando tudo, reformulando e adequando às regras exigidas. Hoje, não tenho dúvidas de que a prática é a melhor forma de aperfeiçoar a qualidade da escrita.
Você escreve um pouco todos os dias ou em períodos concentrados? Você tem uma meta de escrita diária?
Como disse anteriormente, não escrevo constantemente todos os dias, mas produzo de maneira concentrada sempre que estou envolvido em um projeto, independente de seu tamanho ou importância. Mesmo que as regras sejam distintas, busco ter o mesmo zelo em minha produção escrita tanto quando produzo um texto acadêmico quanto quando respondo a uma entrevista como esta. Portanto, como me organizo dessa maneira, acabo estabelecendo metas de escrita que variam de acordo com o período que estou vivendo e com o tipo de texto que preciso escrever. Além, obviamente, dos prazos que são estabelecidos para cada tipo de demanda.
Como é o seu processo de escrita? Uma vez que você compilou notas suficientes, é difícil começar? Como você se move da pesquisa para a escrita?
Aqui vou falar mais especificamente na minha produção historiográfica. Eu posso afirmar que 80% do tempo dedicado a uma empreitada no campo da História é usado para a parte da pesquisa, incluindo a elaboração do projeto, a leitura da bibliografia relacionada, além da coleta e leitura das fontes históricas. Todo esse trabalho gera um plano de redação, que guia a organização das notas que foram sendo elaboradas durante o período de pesquisa. Assim, se essa primeira etapa foi cumprida com rigor e está bem feita, a escrita acaba sendo mais fluida e menos trabalhosa. O esqueleto de um trabalho historiográfico é o plano de redação que, com aperfeiçoamentos, acaba se tornando o sumário do texto final. Cabe ressaltar que, para que esse mecanismo funcione a contento, o plano mencionado deve estar relacionado fisicamente às notas bibliográficas e às fontes históricas selecionadas para darem sustentação à tese que se quer defender. Até hoje, não tive acesso a nenhum manual de escrita tão impecável como o livro Como se faz uma tese, de Umberto Eco. Posso dizer que esse pequeno livro foi fundamental na minha formação como historiador e escritor. O livro Como escrever bem, de William Zinsser, um clássico nas redações jornalísticas nos EUA, é uma ótima referência para os escritores de não ficção e me ajudou enormemente a ter mais consciência da minha produção escrita.
Como você lida com as travas da escrita, como a procrastinação, o medo de não corresponder às expectativas e a ansiedade de trabalhar em projetos longos?
Talvez essas sejam as maiores barreiras que enfrentamos quando se almeja construir uma carreira acadêmica. As exigências são enormes e o retorno quase nunca é proporcional ao esforço empregado para atingir o nível de qualidade necessário para ser considerado um bom pesquisador. Esse tema é muito menos abordado do que deveria. Em muitos meios, falar da saúde mental de acadêmicos ainda é considerado um tabu. É cada vez mais comum que colegas busquem suporte psicológico e psiquiátrico para conseguir enfrentar com algum equilíbrio as inúmeras exigências do mundo acadêmico. Eu mesmo, no início do mestrado, senti necessidade de procurar apoio terapêutico e, ainda assim, durante o doutorado, acabei sendo diagnosticado com transtorno de ansiedade, o que me levou a ter que procurar ajuda psiquiátrica. Não é nada fácil lidar com tantas pressões, ainda mais em um período em que se vive uma total ausência de expectativas profissionais nas universidades. A realidade está mudando de modo muito veloz. Em contrapartida, nossa formação e profissão não têm conseguido acompanhar o mesmo ritmo.
Quantas vezes você revisa seus textos antes de sentir que eles estão prontos? Você mostra seus trabalhos para outras pessoas antes de publicá-los?
Eu perco as contas de quantas vezes reviso um texto antes de achar que está pronto para a finalidade a que se pretende. De fato, essa sensação nunca chega. Há um momento em que é preciso ser forte e definir que o ponto final deve ser colocado. Normalmente, essa decisão é muito influenciada pelos prazos. Com relação a mostrar meus textos para outras pessoas, não é muito comum, mas acontece eventualmente. Sobretudo quando se trata de um texto que será publicado. O excesso de releituras acaba nos deixando com uma espécie de cegueira que nos impede de ver erros ou imprecisões muito simples e até mesmo bobos.
Como é sua relação com a tecnologia? Você escreve seus primeiros rascunhos à mão ou no computador?
Eu sempre escrevo diretamente no computador. O meu grande pânico com a tecnologia é perder trabalhos produzidos por falhas das máquinas. Por isso, sempre salvo meus trabalhos diretamente em backups armazenados na nuvem. O que acontece comumente é estar na rua, ou em algum local sem acesso a um computador, e ocorrer de lembrar de alguma questão ou ter alguma reflexão que julgo importante. Quando isso acontece, é sempre importante ter algum bloco de notas para registrar o que vem à mente para não perder essas reflexões. Quando estamos mergulhados em um objeto de pesquisa, é muito frequente termos alguma ideia sobre o tema de estudo em horas mais inapropriadas, por isso é sempre bom estar preparado para essas possibilidades.
De onde vêm suas ideias? Há um conjunto de hábitos que você cultiva para se manter criativo?
Acho as ideias surgem ao estar constantemente a par das pesquisas que estão sendo realizadas em minhas áreas de pesquisa, que são a história do Brasil republicano, as questões políticas do Brasil recente e a divulgação do conhecimento histórico, a chamada História Pública. No mais, não tenho a menor dúvida de que para escrever bem e estimular a criatividade é fundamental ler muito, principalmente textos ficcionais, sejam clássicos ou contemporâneos. Eu sou um leitor voraz de literatura ficcional. Inclusive tenho muito mais prazer com esse tipo de leitura do que com historiografia. Do meu ponto de vista, os historiadores têm muito que aprender, tanto do ponto de vista técnico da escrita quanto da imaginação histórica, lendo mais ficção. Mesmo porque, como muitos teóricos têm afirmado, as linhas que separam ficção de História são muito tênues, embora existam.
O que você acha que mudou no seu processo de escrita ao longo dos anos? O que você diria a si mesmo se pudesse voltar à escrita de sua tese?
Eu acho que fiquei mais maduro e, com isso, ganhei mais segurança na escrita. Isso não significa dizer que eu não perceba claramente a necessidade de ainda caminhar muitos passos para realmente escrever bem. Se eu pudesse voltar ao momento em que estava elaborando meu projeto de tese de doutorado, eu diria a mim mesmo para ter menos medo e observar com mais atenção como os historiadores que admiro trabalham. De todo modo, mesmo que eu não tenha ficado completamente satisfeito com o resultado da minha tese, que agora está sendo publicada como livro, acho que, dentro dos limites de um trabalho acadêmico e do tempo disponível para realizá-lo, consegui atingir um resultado bastante razoável. Ao menos o suficiente para ter certeza de que é esse o tipo de trabalho que desejo continuar fazendo. Espero que o contexto político do país permita a realização desse desejo.
Que projeto você gostaria de fazer, mas ainda não começou? Que livro você gostaria de ler e ele ainda não existe?
Eu defendi minha tese de doutorado há muito pouco tempo, então ainda não consegui me pensar em nenhum projeto acadêmico de grande monta no qual eu gostaria de mergulhar. Essa questão também está sendo muito influenciada pela situação crítica da educação brasileira em todos os níveis. Não está sendo nada fácil conseguir bolsas que financiem pesquisas científicas, o que torna a vida dos pesquisadores, sobretudo os recém-formados, muito difícil. Quanto ao livro que gostaria de ler, sinceramente, não consigo responder. As pilhas de livros não lidos que estão na minha casa, afora as listas de livros que pretendo ler são tão enormes, que não consigo imaginar nenhum livro que eu queira ler e que ainda não tenha sido escrito. Mesmo porque para fazer esse tipo de afirmação tão peremptória seria necessário eu já ter lido muito mais do que já li.