Paula Carvalho é editora da Quatro Cinco Um, doutoranda em história pela UFF.

Como você organiza sua semana de trabalho? Você prefere ter vários projetos acontecendo ao mesmo tempo?
No momento está tudo meio caótico. Estou com vários projetos ao mesmo tempo não exatamente por opção, tem muitos projetos do trabalho para entregar e isso acaba deixando em segundo plano minha tese, por exemplo, o que vira um peso nas costas. Mas estou tentando não me cobrar muito justamente para não deixar a ansiedade tomar conta e me impedir de prosseguir. É um dia de cada vez e tento fazer o que dá para fazer no dia. Ao mesmo tempo não quero deixar passar certas oportunidades, certos convites que se relacionam a assuntos que me interessam mais, então muita coisa acaba acumulando. De toda forma, para me organizar eu faço uma “lista de tarefas analógica”, no papel mesmo, separada por dia e vou riscando conforme vou cumprindo as tarefas. Passei também a adotar o Google Agenda para não me perder nos meus horários e compromissos. Com o isolamento causado pela pandemia, o home office, a carga de trabalho, a minha memória já não é mais a mesma. É assim que tenho organizado a minha semana.
Ao dar início a um novo projeto, você planeja tudo antes ou apenas deixa fluir? Qual o mais difícil, escrever a primeira ou a última frase?
Planejo até certo ponto. Preciso sempre de estrutura. Estrutura é a chave de tudo. Com uma boa base é possível improvisar. Posso sempre voltar para algo seguro, que me aterra se estiver meio perdido se a estrutura estiver clara. Isso tanto para escrever matéria e capítulo de tese quanto para fazer roteiro de podcast ou uma entrevista. Antes de tudo, penso: “o que eu quero contar? O que eu preciso contar aqui? O que é relevante?”. Daí vou montando no próprio arquivo de Word (capítulo de tese), ou num dos mil caderninhos que eu tenho espalhados pela casa (roteiro de podcast), ou no bloco de notas do celular (matéria, resenha, textos mais curtos) o que eu quero/preciso contar. Porque, no final, é isso, o objetivo é contar uma história, os formatos é que são diferentes. O mesmo com entrevista: monto sempre uma bateria de perguntas para a qual sempre posso voltar, mas sigo o fluxo da conversa, não dá para ficar enrijecido no que você botou no papel. É preciso ter escuta, tanto para o entrevistado quanto para o texto que você está escrevendo, para o seu próprio corpo. Tudo isso vai contar uma história. E a escrita, que está dentro da gente, também tem que ser escutada e deixar ela seguir o seu fluxo. O que quero dizer que é assim: a tela em branco é como se fosse a terra e as palavras são como sementes que eu preciso plantar pra deixar ela crescer pra virar uma árvore, que é a escrita, o texto pronto. Para eu poder cultivar essa terra, preciso antes de matéria-prima; então leio um monte de coisa antes de começar a escrever. O texto precisa de um tempo para germinar. Daí, em vez de virar uma árvore, ele vira um rio, porque começa a querer fluir, até jorrar para fora. Então eu construo canais, que são a estrutura do texto, para poder controlar um pouco esse fluxo. Mas eu nunca interrompo o fluxo, deixo ele correr, só vou orientando aqui e ali para onde ele deve correr. Nunca sei, na verdade, onde ele vai terminar, nesse sentido, deixo o texto me levar para onde não sabia que deveria ir até chegar à última frase. Por isso, a primeira frase é sempre a mais difícil de escrever que a última. A primeira frase é a fundação de tudo. Se ela não estiver sólida o bastante, a construção toda cai, a água do rio jorra para tudo quanto é lado e a escrita não consegue germinar, seja por excesso ou falta de água. A última frase é a última. A árvore já cresceu, o rio já percorreu a maior parte do caminho.
Você segue uma rotina quando está escrevendo um livro? Você precisa de silêncio e um ambiente em particular para escrever?
A minha rotina de escrita é a menos saudável possível. Minha mãe fala que escrevo “obstinadamente”. Uma amiga me disse hoje mesmo o seguinte quando estava listando tudo o que ando fazendo e que ainda por cima tinha a tese pra terminar: “A sorte é que você escreve como uma maníaca”. E ela tem toda razão. Quando reuno a matéria-prima necessária para escrever parece que o bebê quer nascer, sabe, e a escrita precisa sair. Passo até mal fisicamente se não começo a escrever daí, porque ela quer vir para o mundo. Demora um pouquinho para sair, mas quando sai, jorra. É um trabalho de parto mesmo. Daí eu sento e só escrevo. Só como e durmo porque eu preciso fazer isso para poder escrever. Não consigo escrever com barulho, isso tem se tornado cada vez pior. Por isso acabo colocando música para abafar os barulhos do meu entorno, principalmente quando é texto longo, como livro e tese. Preciso de uma cadeira confortável, uma altura de mesa decente, uma tela de computador grande (um suporte pra bíblia é sempre bom para colocar os livros que eu vou copiar trechos e evitar maiores dores no pescoço) e que me deixem em paz. Fico mal humorada se fico sendo interrompida. O fluxo está ali, então quero aproveitar e seguir o fluxo. Em fevereiro escrevi a primeira versão (ainda a ser completada e emendada, obviamente) de um livro que vai ser lançado em 2022. Escrevi num momento péssimo, de lutos, no fim das minhas férias. Sabia que se não escrevesse ali, naquela hora, não ia conseguir escrever depois, pois minha energia seria dividida com o trabalho e eu não funciono assim. Escrevi então 70 páginas em 7 dias, 10 páginas de Word por dia. É sobre uma viajante chamada Isabelle Eberhardt, que se disfarçava, e até vivia, como homem muçulmano, Mahmoud Saadi era seu nome, na Argélia e Tunísia de fins do século 19 e começo do 20. Não é uma ficção, é mais um ensaio, não exatamente acadêmico, então tinha referências bibliográficas, conceitos complexos que eu não domino… Foi, digamos, um desgaste físico e emocional muito grande. Mas saiu, agora só falta refinar. Vir pro mundo é a parte mais difícil.
Você desenvolveu técnicas para lidar com a procrastinação? O que você faz quando se sente travada?
O meu maior estímulo é pensar: “vamos acabar logo com isso, vou ter que fazer mesmo, não é, então vamos lá”.
Qual dos seus textos deu mais trabalho para ser escrito? E qual você mais se orgulha de ter feito?
Os textos mais pessoais são o que dão mais trabalho para serem escritos. Uma resenha que escrevi para a revista Quatro Cinco Um de dois livros da Patti Smith (“O ano do macaco” e “Devoção”) foi muito difícil de escrever, porque eu tenho uma relação pessoal-afetiva-imaginária com a Patti Smith e é a coisa mais difícil escrever sobre algo que nos é muito próximo. Eu me orgulho muito de ter escrito partes do meu mestrado, que vão estar no meu doutorado. Mais especificamente o final do capítulo 2 em que falo sobre a “peregrinação dupla” a Meca do viajante Richard Francis Burton/Mirza Abdullah e da transformação que ocorre em Abdullah, o disfarce muçulmano de Burton – essa trasnformação pode ser comprovada textualmente pois Abdullah passa a ser chamado por Burton de Haji Abdullah, não mais de Mirza. Haji é o título dado a quem completou o hajj, nome em árabe da peregrinação a Meca. Enquanto eu escrevia essa parte, confesso, eu pensava: “quero que quem leia chore de tão bonito que é isso”. Também tenho muito orgulho do final do capítulo 3, que eu reflito sobre se é possível transformar no “outro”, que eu articulo o romance “O colecionador de mundos”, de Ilija Trojanow (que é sobre Burton), o romance “Kim”, de Rudyard Kipling, Lawrence da Arábia, Edward Said, Todorov e Bakhtin. Acho que nessas partes consigo articular rigor acadêmico com um viés literário. Acho bem bonito o que escrevi nessas partes. Duvido que eu escreva mais bonita que isso na vida. Também tenho muito orgulho das minhas notas de rodapé. Tenho tesão em escrever (e ler) belas notas de rodapé.
Como você escolhe os temas para seus livros? Você mantém uma leitora ideal em mente enquanto escreve?
Não posso dizer que eu tenha escolhido o tema do livro. Nunca pensei que alguém poderia ter interesse nas coisas que me interessam, que são meio bizarras, difíceis de serem rotuladas: esses viajantes que me fascinam, especialmente os “viajantes disfarçados”, que se achavam se transformar no outro. A editora Fósforo propôs que eu escrevesse um livro sobre a Isabelle Eberhardt, que eu ia estudar no doutorado (mas acabei cortando por algumas razões). Daí pensei: “talvez realmente outras pessoas possam se interessar por esse tema que me fascina há tempos!”, e fiquei muito animada com a possibilidade de ter interlocutores pra esse tema. O que eu penso quando escrevo qualquer coisa é que eu quero contar uma boa história, não importa o formato. Quero quem esteja lendo sinta prazer na leitura, que seja levado pela história, seja um artigo acadêmico ou um texto mais ensaístico. Já falei isso aqui antes: já me falaram que o meu mestrado parece ficção de tão incrível que é a história do Richard Burton e do “estilo literário” com que foi escrito. De novo, vejo como um grande elogio. Meu orientador do doutorado e minha banca de qualificação também disseram que, apesar de eu escrever muito (a qualificação ficou com 200 páginas), a leitura é rápida e fluida porque é gostoso de ler. Eu escrevo pensando em envolver qualquer leitor. Quero que ele/ela/elu fique tão fascinado quanto eu pela história que estou contando. Acho que esse encantamento meu transparece no texto.
Em que ponto você se sente à vontade para mostrar seus rascunhos para outras pessoas? Quem são as primeiras pessoas a ler seus manuscritos antes de eles seguirem para publicação?
Essa questão é difícil. Demoro muito para mostrar o que escrevo. Na Quatro Cinco Um confio muito na opinião do editor Mauricio Puls, gosto mostrar meus textos para ele e ouvir o que ele tem a dizer. Do meu livro mostrei uns rascunhos para duas amigas queridas quando estava muito perdida: a Letícia Coletti e a Laura Chagas. Elas me ajudaram a achar um norte bem no começo do livro, em um momento que eu não estava sentindo confiança no que estava saindo de mim naquele momento.
Você lembra do momento em que decidiu se dedicar à escrita? O que você gostaria de ter ouvido quando começou e ninguém te contou?
Eu sempre gostei de escrever, mas não se posso dizer que minha vida é dedicada à escrita. Não sou escritora, eu só escrevo. São coisas completamente diferentes. O que posso dizer é: escrita é prática, tem inspiração claro, mas muito esforço, inclusive físico. Escrita é trabalho como qualquer outro.
Que dificuldades você encontrou para desenvolver um estilo próprio? Alguma autora influenciou você mais do que outras?
Nunca pensei conscientemente em desenvolver um estilo próprio, só penso mesmo em contar uma boa história. “Cultura e imperialismo”, do Edward Said, me influenciou muito não no meu “estilo”, mas na minha forma de ver o mundo, me mostrou um “método” que tenho aplicado em grande parte da minha escrita e na minha análise de mundo e da História. É um livro excepcional.
Que livro você mais tem recomendado para as outras pessoas?
“O Ausente”, de Edimilson de Almeida Pereira. Um dos raros momentos em que eu disse: “Eu entendo (o Inocêncio, o protagonista)”.
“Bússola”, de Mathias Enard: Um dos raros momentos em que eu disse: “Alguém realmente me entende”. É a minha pesquisa cuspida e escarrada na forma de romance.
“A mulher submersa”, de Mar Becker. Poemas para se ler olhando para o abismo.
“O arador das águas”, de Hoda Barakat. Melhor livro que li este ano. Uma Sherazade de calças que não deu certo num Líbano distópico.
“Damas da lua”, de Jokha Alharthi. Um dos melhores livros de 2020. Um domínio da narrativa invejável.